O poder judiciário na formulação de políticas públicas

01/09/2019

Conceituar política pública não é tarefa fácil, entretanto, é possível significa-la como sendo uma medida da atuação do Estado na efetivação das garantias e dos direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito. Para Eros Graus:[1] “a expressão política pública designa atuação do Estado, desde a pressuposição de uma demarcada separação entre Estado e Sociedade”. Continua afirmando que “a expressão políticas pública designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social”.

Fica evidente que o Estado moderno mudou com o constitucionalismo, passando a exercer o papel de promotor da ordem social.  O estabelecimento de uma ordem social justa e igualitária, por sua vez, depende da promoção de políticas públicas que sejam capazes de efetivar os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição. Portanto, no novo formato de Estado, não pasta reconhecer formalmente um direito, antes de tudo é necessário efetiva-lo.

Pela visão coetânea da separação das funções de poder do Estado, a efetivação das políticas públicas competiria ao órgão executivo, contudo, com a possibilidade de participação do judiciário, na forma da Constituição.

A participação do Judiciário na efetivação dos direitos constitucionais tem despertado um enorme debate, já que, para muitos a ação do Judiciário na substituição da função normativa do Legislativo e na função de gestão administrativa e orçamentaria do Executivo representa uma grave violação do Estado Democrático de Direito.

A admissão para que o Judiciário, através dos juízes, possa se imiscuir nas ações reservadas aos membros legitimamente eleitos pelo voto popular, retoma o dilema do julgamento do caso Marbury versus Madison da Corte Americana; pondo em discussão, além dos limites da atuação do Judiciário, os respectivos impactos para o Legislativo e para o Executivo no planejamento e execução de políticas públicas.

Em que pese os argumentos contrários, os membros do Judiciário não são eleitos para legislar ou para administrar o orçamento público. Admitir o contrário significa, invariavelmente, permitir uma ação arbitrária e uma violação insanável ao Estado Democrático de Direito.

Analisando as circunstâncias de fato e de direito da função Executiva do Estado, resta evidente pelo texto constitucional que a elaboração da peça orçamentaria e a definição da aplicação dos recursos públicos é uma atividade reservada ao chefe do Executivo e não aos magistrados.

Atualmente, em razão do vasto movimento que defende a judicialização das políticas públicas, não é raro encontrar o Executivo sem orçamento para executar políticas públicas planejadas em razão de gastos realizados por conta de decisões judiciais que invadem o mérito administrativo e usurpam do gestor o direito de administrar e executar o orçamento público.

O Superior Tribunal de Justiça retrata o posicionamento no Resp 169.876/SP, Rel Ministro Franciulli Netto, 2003:

“Ação civil pública. Poder discricionário. Administração. Trata-se de ação civil pública em que o Ministério Público pleiteia que a municipalidade destine um imóvel para instalação de abrigo e elaboração de programas de proteção à criança e aos adolescentes carentes, que restou negada nas instâncias ordinárias”.

Da leitura do inteiro teor do Acordão é possível verificar que a Corte negou o provimento ao recurso do Ministério Público, com fulcro no princípio da discricionariedade, garantindo a liberdade de gestão do Executivo quanto ao uso das verbas orçamentárias e o que deve ou não ter prioridade na execução das políticas públicas, ou seja, a decisão acabou por não permitir a intervenção do Judiciário na gestão do Executivo.

Entretanto, caso a decisão fosse diferente e o Superior Tribunal de Justiça desse provimento ao recurso do Ministério Público, quem estaria atuando na produção de políticas públicas, os membros do Judiciário ou os membros do Executivo?

A pergunta é pertinente, pois, a discussão acerca dos atores envolvidos na produção de políticas públicas não considera, ao menos de forma direta, a participação do Judiciário. Os três modelos teóricos de estudo sobre os atores da produção de políticas públicas - múltiplos fluxos, equilíbrio pontuado e coalizões de interesses; não incluem o Judiciário ou os seus membros como participantes ou como promotores de políticas públicas.

No excelente texto de Ana Claudia N. Capella e Felipe Gonçalves Brasil, denominado de Subsistemas, comunidades e redes: articulando ideias e interesses na formulação de políticas públicas,[2] os autores não relacionam o Judiciário, embora admitam que a investigação sobre política pública também se apresenta com resultados incompletos quando limitada ao estudo do comportamento de atores do Executivo e do Legislativo. A incompletude decorre, embora não se possa fixar como uma única verdade, pela desconsideração do fenômeno da judicialização das políticas públicas, uma vez que a nova formatação da relação entre os poderes do Estado considera constitucional e legitima a expansão do direito, através da atuação de juízes, no suprimento de lacunas legislativas, no controle e na produção de políticas públicas.

A nova relação de freios e contrapesos, em vigor, legitima que o Judiciário possa ir além da lei, estando autorizado a atuar ativamente na implementação dos direitos e as garantias fundamentais. Assim, no plano real, o judiciário cria políticas públicas, como é o caso da decisão que reconheceu como entidade familiar a União Homoafetiva[3], determinando o reconhecimento de direitos assemelhados às uniões entre pessoas de sexo distinto, usurpando a atribuição típica do Legislativo.

A imersão do judiciário na promoção de políticas públicas é assumida como uma dimensão constitucional pelo Min. Celso de Mello[4], assim resumida: “ADPF. Políticas Públicas. Intervenção Judicial. Reserva do Possível. ADPF n.º 45. Arguição de descumprimento de preceito constitucional. A questão da legitimidade constituição do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configura hipótese de abusividade governamental. Dimensão política constitucional atribuída ao STF (...)”. (g.n.)

Com a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, o Judiciário deixa de ser coadjuvante e passa a ser um ator principal na cena política do Brasil, tornando a revisão judicial um instrumento para criação de políticas pública (quando houver ausência) e para efetivação de políticas públicas (quando houver, porém, com execução insatisfatória).

 

Conclusão

A verificação do local do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas, tomando por consideração o processo de judicialização da política e o respectivo papel exercido pelo Poder Judiciário na tripartição dos poderes da República Brasileira e um desafio do Estado Democrático de Direito, exigindo uma revisão do dogma da separação de poderes.

Importante frisar, que em função da atividade do Judiciário ser exercida (a) por juízes que estão espalhados por todo o território brasileiro; (b) por juízes que exercem atividade sem subordinação hierárquica, estando submetido apenas às regras jurídicas; (c) por juízes que são proibidos de realizar política partidária; (d) por juízes que chegam na carreira, com exceção do quinto constitucional, pelo concurso e não pelo voto popular; é praticamente impossível mensurar os impactos nas políticas públicas causados pelos magistrados, com uma única variação, exclusiva no caso do Supremo Tribunal Federal, mesmo usando os subsistemas, as redes e as comunidades.

Em um mundo cada vez mais fluido, ancorado em um sistema econômico iníquo, é cada vez mais complexo pretender isolar a produção de políticas públicas em padrões teóricos. O Judiciário é, atualmente, um caso a ser estudado, pois, não há clareza de que dentre os atores que compõem os subsistemas, as redes e as comunidades, estejam os membros do Judiciário. 

 

Notas e Referências

[1] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000. 

[2] Disponível em https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/1223/727. Acesso em 10 de ago. 2019.

[3] ADPF 132 e ADI 4.277 Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277RL.pdf. Acesso em 29 de ago. 2019.

[4] Informativo STF. 345. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp. Acesso em 10 de ago. 2019.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

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