O PODER JUDICIÁRIO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

10/07/2020

Considerando o hodierno panorama de instabilidade do país - precipuamente no tocante ao viés político-administrativo -, causado em grande parte pela pandemia do COVID-19 e pelas divergências administrativas dos Chefes do Poder Executivo das diferentes esferas da federação, faz-se importante analisar o papel do Judiciário quando provocado a resolver questões eminentemente afetas àquele Poder.

Antes de avançarmos, entretanto, é necessário que duas premissas sejam erigidas para que o raciocínio almejado seja alcançado: uma conceitual e uma interpretativa. Valho-me, aqui, de uma analogia às palavras do professor Ronald Dworkin[1]:

“Se o termo ‘democracia’ significa duas coisas completamente diferentes para mim e para você, nossa discussão para saber se a democracia exige que os cidadãos tenham igual interesse nos resultados não tem sentido: nenhum dos dois ouve o que o outro está dizendo. [...] Temos em comum um conceito interpretativo quando a melhor explicação do nosso comportamento coletivo no uso desse conceito entende que seu uso correto depende da melhor justificativa do papel que ele desempenha para nós.”

Tradução livre dos trechos:

“If you and I mean something entirely different by ‘democracy’, then our discussion about whether democracy requires that citizens have an equal stake is pointless: we are simply talking past one another.” [..] “We share an interpretative concept when our collective behavior in using that concept is best explained by taking its correct use to depend on the best justification of the role it plays for us.”

Assim sendo, inicialmente me atenho a esquadrinhar, de modo simplificado, o arranjo constitucional relacionado às competências administrativas com o fito de firmar a premissa conceitual.

Diferentemente da competência legislativa concorrente - na qual a União limita-se a estabelecer normas gerais, agindo os Estados e os Municípios de modo suplementar, com base nos artigos 24 e 30, respectivamente, da Constituição Federal -, na competência material comum há um federalismo cooperativo, o qual é regido pela aplicação do critério da preponderância dos interesses[2].

De acordo com o supracitado critério, à União cabe editar normas de interesse nacional, aos Estados as de cunho regional, restando aos Municípios a atenção no tocante aos interesses locais. Compreendida tal divisão, passemos ao segundo pressuposto, o qual está diretamente ligado aos conceitos de política de Estado, políticas de governo e políticas públicas.

Buscando não fugir demasiadamente do escopo do presente trabalho, em linhas gerais, pode-se dizer que as políticas de Estado possuem um caráter perene, pois constituem diretrizes constitucionais que devem ser perseguidas pelo administrador público - antes vistas como normas meramente programáticas. As políticas de governo, a seu turno, são constituídas por visões atinentes ao grupo eleito em determinado período, corriqueiramente ligadas à sua ideologia. Por fim, as políticas públicas são instrumentos de concretização dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, mormente na área social.

Aqui repousa nossa premissa interpretativa: as duas últimas devem sempre respeitar as primeiras, uma vez que estas foram impostas pelo poder constituinte originário.

Balizadas tais marcas de partida e adentrando à questão da judicialização das políticas públicas, obrigatoriamente precisamos perpassar pelo comportamento do gestor público.

A rigor, é vedado que o Judiciário interfira em políticas públicas, principalmente naquilo que envolve aspectos de discricionariedade legislativa ou administrativa. Não obstante, é estreme de dúvidas que em havendo omissão do gestor, ao Poder Judiciário é lícito se imiscuir na matéria.

Tal ingerência, todavia, vem se alastrando ao longo dos últimos anos, inclusive abrangendo atuações administrativas não acometidas por omissões, mas conteúdo afeto à discricionariedade do mérito administrativo - sendo possível citar, a título de exemplo, decisão que determinou a realização de obras em estabelecimentos prisionais[3], afastando o argumento de reserva do possível.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica algumas das razões que contribuem para o crescente movimento chamado de judicialização das políticas públicas - in verbis[4]: “Existem diferentes fatores que vêm contribuindo para isso. De um lado, a inércia do Poder Público, a sua ineficiência, a ausência ou deficiência no planejamento, a corrupção, os desvios de finalidade na definição de prioridades [...].”

Os que saem em égide dessa prática proclamam que o Judiciário está garantindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais, o chamado mínimo existencial. Neste momento, me parece perfeita a colocação do professor José dos Santos Carvalho Filho[5] sobre o assunto:

“No aspecto pragmático, a sociedade aplaude tais decisões, mas, no aspecto jurídico e político, é imperioso, por cautela, que se conheçam os limites dentro dos quais pode legitimar-se essa judicialização, sem ofensa ao axioma constitucional da separação dos poderes”.

Já se pode perceber que o nó górdio surge, em realidade, quando o Poder Executivo não se omite, mas, ao revés, age em uma direção que culmina por gerar o inconformismo de algum dos legitimados para as ações passíveis de judicializar o tema. Trazendo o imbróglio para os dias de hoje, o ponto nevrálgico passa a ser a política pública de combate à pandemia do COVID-19.

A maior indagação referente ao tema reside no questionamento acerca da possibilidade de o Poder Judiciário controlar a opção de flexibilização das regras de isolamento social e de abertura do comércio, feita por administradores públicos.

A priori, em não havendo omissão do administrador público, mas uma escolha consciente, ou seja, uma ponderação entre saúde de um lado e economia do outro, não há de se falar em desrespeito ou controle da decisão, pois não se pode permitir que o Poder Judiciário substitua o gestor público no processo de tomada de decisões políticas quando da formulação de medidas regulatórias - por mais discutível que tal formulação seja.

Ademais, não se pode olvidar que o Poder Judiciário carece de representatividade democrática, atraindo o dever de autocontenção quando de seu atuar. Em outras palavras, é defeso aquiescer que um ativismo judicial disfarçado de constitucionalismo da efetividade prevaleça, pois tal movimento fere de morte a separação das funções do poder.

Pensa-se que a única forma de excepcionar a diretiva supra é a partir da comprovação de que a ponderação em comento não atinge sua finalidade, o que apenas se afigura viável mediante a confirmação de não preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais – hipótese em que o Judiciário seria legitimamente chamado a desempenhar seu papel contramajoritário.

Ocorre que, a prima facie, ao se considerar o choque entre saúde e economia, pode parecer óbvia a resposta, porém, em uma análise mais detida percebe-se o diametralmente oposto, pois a economia em frangalhos funciona como um prisma no qual suas facetas refletem negativa e diretamente em aspectos sensíveis da sociedade, gerando mais desemprego e miséria – e, por corolário, aumentando-se o abismo social.

Não tenho a pretensão de resolver a tormentosa questão, porém, parece ressoar evidente que a garantia de proteção do núcleo essencial de direitos fundamentais reconduz à posições indisponíveis às intervenções dos poderes estatais. Apesar disso, não há como afirmar categoricamente que a opção pelo vetor economia resulte necessariamente em maiores danos à sociedade, única e exclusivamente em razão da saúde encontrar-se do outro lado da balança.

Como decorrência lógica da apresentada exegese, o que irrompe à percepção é um autêntico cenário envolvendo escolhas trágicas. Assim sendo, não se afigura lícito aceitar a interferência judicial na decisão do gestor público, sob pena de institucionalizar-se o ativismo judicial.

 

Notas e Referências

[1] DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. The Belknap Press of Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts. London, England, 2011.

[2] Neste sentido: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 804.

[3] STF, Recurso Extraordinário 592.581/RS, Min. Ricardo Lewandoswki, em 13.8.2015.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 833.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 57.

 

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