Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
O indulto presidencial de caráter coletivo, culturalmente denominado indulto de Natal pois publicado em data próxima por decreto do Presidente da República[1], embora não restrito a um por ano[2][3], tem natureza para atingir número indeterminado de condenados, sendo uma das vertentes da clementia principis. Trata-se, portanto, como afirmado pelo Suprema Corte, de instrumento de política colocado à disposição do Estado para reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade.[4]
O escopo desse instituto pode ser amplo a critério da conveniência do seu emissor ficando restrito apenas os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os crimes definidos como hediondos por opção do constituinte[5]. O indulto se caracteriza como ato de governo integrando a categoria de ato administrativo, devendo, portanto, observar os cinco elementos como sujeito, objeto, forma finalidade e motivo.
Para o direito penal no caso do indulto natalino importa observarmos a sua finalidade, podendo ser definido como o objeto pretendido com a edição do decreto e qual o resultado específico pretendido. A atenção deve ser dispensada para verificar se o exercício deste ato discricionário está sendo utilizado para atingir o maior número de pessoas privadas de liberdade.
E essa preocupação está estampada na realidade do sistema carcerário brasileiro que conta atualmente com 852 mil pessoas em cumprimento de pena, sendo que destas 711 mil pessoas cumprem pena em celas físicas[6]. O país possui um déficit de vagas no sistema penitenciário de 354 mil, tendo esse cenário levado o Supremo Tribunal Federal[7] a considerar o sistema penitenciário brasileiro como Estado de coisas Inconstitucional no ano de 2015.
Decorrido quase uma década do emblemático voto do Min. Marco Aurélio que afirmou existir a ocorrência de violação massiva de direitos fundamentais dos presos, resultante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, considerado o quadro de superlotação carcerária e das condições degradantes das prisões do país, nada mudou neste cenário para reduzir a situação degradante das cadeias públicas brasileiras.
Ao contrário, a política criminal adotada é voltada para aumentar a população carcerária com a edição da lei 13.694/2019, apelidada de projeto anticrime, que enrijeceu o art. 112 da lei de execução penal levando a percentuais elevadíssimos o tempo de cumprimento de pena para progressão de regime, chegando ao patamar de 70% no caso de reincidência de crime hediondo, com vedação de livramento condicional.
Neste mesmo campo da política criminal a recente lei nº 14.843/2024 acabou com o direito de o apenado obter a saída temporária para visitar a sua família, agravando o cumprimento da pena em notória violação ao artigo 3º das regras de Mandela.
Para Diego de Azevedo Simão a “visita à família tem por objetivo a manutenção dos vínculos familiares e afetivos entre a pessoa privada de liberdade e as pessoas com quem possuem vínculo consanguíneo e afetivo”[8]. A visita à família deve ainda ser preservada ao apenado na medida em que a Constituição da República assegura no art. 226 a família como base da sociedade e deve receber a proteção do Estado.
No Estado do Rio de Janeiro a população carcerária ultrapassada 46 mil presos para, tendo apenas 28 mil vagas. O cenário no Estado era tão ruim que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em decisão datada de 22 de novembro de 2018, proibiu o ingresso de novos presos no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no complexo de Gericinó, em Bangú, e determinou o cômputo em dobro de cada de privação de liberdade cumprido no estabelecimento.
E a tendência da população carcerária só tende a aumentar com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal[9] ao fixar o tema 1068 de repercussão geral que a soberania do tribunal do júri justifica a prisão imediata para os condenados pelo Júri, independentemente da pena aplicada e da decisão transitar em julgado.
Esse cenário de caos nas cadeias públicas e que certamente será agravado com o aumento da população carcerária ocasionado pelo recrudescimento das recentes leis introduzidas em nosso ordenamento jurídico e pela decisão do Supremo Tribunal Federal, necessita de contrapeso para reduzir a superpopulação carcerária de modo a atingir a finalidade do tratamento penitenciário que é a ressocialização.
O regramento internacional que estabeleceu as regras mínimas para tratamento dos presos conhecido como Regras de Mandela[10], oficializada pelas Nações Unidas em 1995, dispõe na regra 91 que “O tratamento de presos sentenciados ao encarceramento ou a medida similar deve ter como propósito, até onde a sentença permitir, criar nos presos a vontade de levar uma vida de acordo com a lei e autossuficiente após sua soltura e capacitá‑los a isso, além de desenvolver seu senso de responsabilidade e autorrespeito.”.
Um sistema penitenciário em situações degradantes, com superpopulação, sem condições de higiene, trabalho e sem visita ao núcleo familiar, já reconhecido como Estado de coisas inconstitucional, não atinge o objetivo da ressocialização e muito menos de capacitar o apenado criando a vontade de respeitar as leis penais.
O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça criarem recentemente o comitê para enfrentar violação de direitos no sistema prisional por meio da portaria conjunta MJSP/CNJ nº 8, de 16 de abril de 2024.[11] Dentre as atribuições do comitê merece especial destaque o art. 3º, inciso III, que trata do “o fomento e a qualificação de políticas de alternativas penais e monitoração eletrônica de pessoas, bem como a articulação de estratégias de justiça restaurativa, como forma de racionalizar a porta de entrada do sistema prisional”.
Essa preocupação do CNJ e do MJ de fomentar a porta de entrada, aliada ao já declarado Estado de coisas inconstitucional declarando o descumprimento das regras mínimas para tratamento dos presos, justificam a edição de um decreto de indulto mais amplo, devendo se restringir apenas aos crimes hediondos e aqueles cuja impossibilidade decorre do próprio texto constitucional.
A clementia principis deve servir para moderar a força oposta do legislador de forma a não permitir a aumento significativo a população carcerária, impedindo que o país alcance o número assombroso de 1.000.000 (um milhão) de presos, permitindo a comutação da pena aos apenados condenados por crimes sem violência ao grave ameaça sem qualquer limitador máximo de pena, bem como aqueles condenados por tráfico privilegiado, levando em conta que a grande massa da população está condenada por tráfico de drogas.
Está nas mãos do chefe do Poder Executivo exercer o contrapeso ao Estado de coisas inconstitucional balanceando a população carcerária e os anseios da sociedade por uma sociedade cumpridora das regras penais.
Notas e referências:
[1] Cf. Art. 84, XII, da Constituição Federal.
[2] Decreto de 12/04/2017. Indulto especial do dia das mães editado pelo Presidente Michel Temer.
[3] Decreto nº 9.370 de 11/05/2018. Indulto especial do dia das mães editado pelo Presidente Michel Temer.
[4] ADI 2.795-MC/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 08.05.2003. DJ 20.06.2003.
[5] Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal.
[6] https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/cidadania-nos-presidios/#:~:text=Os%20dados%20apresentados%20revelam%20que,mil%20vagas%20no%20sistema%20carcer%C3%A1rio.
[7] STF, ADPF 347 MC, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. em 09/09/2015.
[8] Simão, Diego de Azevedo. Lei de execução penal comentada e anotada – 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2022. P. 400.
[9] Recurso Extraordinário nº 1235340.
[10] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf. Acesso em 18/09/2024.
[11] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/04/portaria-conjunta-mjspxcnj.pdf
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