Por Ricardo Lucas Calderón* - 24/07/2015
“O leite alimenta o corpo; o afeto alimenta a alma.”
Içami Tiba
A família contemporânea vivencia um processo de transição paradigmática, pelo qual se percebe um paulatino decréscimo de influências externas (da religião, do Estado, dos interesses do grupo social) e um crescente espaço destinado à realização existencial afetiva dos seus integrantes. No decorrer da modernidade [1] o espaço conferido à subjetividade e à afetividade alargou-se e verticalizou-se a tal ponto que, no último quarto do século XX, já era possível sustentar a afetividade como vetor das relações pessoais.
A partir da segunda metade do século passado a sociedade contemporânea apresentou características que sinalizaram o momento de uma outra e peculiar modernidade. As marcas deste período passaram a ser a complexidade, a fragmentalidade e uma constante instabilidade. Estes fatores disseminaram-se no meio social e também influenciaram os relacionamentos familiares.
Um vasto mosaico de entidades familiares foi reconhecido, uniões livres (homo e heteroafetivas) e parentescos vincados apenas por laços afetivos passaram a ser vistos com maior dignidade. A igualdade e a liberdade foram gradativamente conferidas aos relacionamentos e alteraram o quadro de estabilidade anterior, uma vez que a qualidade dos vínculos passou a ser objeto de análise constante. Estas consequências acabaram por gerar diversas uniões, separações, novas uniões em um quadro de combinações e recombinações sem precedentes. A instabilidade alcançou os relacionamentos familiares, outrora tidos como exemplos de segurança e de estabilidade.
O Direito, permeável à realidade que lhe é subjacente, sofreu o influxo dessa mudança, sendo cada vez mais demandado por conflitos indicadores deste outro cenário que se apresentava. A cultura jurídica brasileira, entretanto, ainda está baseada em um Direito de matriz moderna, precipuamente formal, com forte relevância da lei na definição do que se entende por Direito, em vista do que o diálogo com esta pulsante realidade em movimento não foi tranquilo.
A legislação expressa não tratava de muitas situações existenciais afetivas que eram postas para análise do Direito, de modo que uma interpretação que restasse limitada à estrutura codificada trazia dificuldades na tutela destes novéis conflitos. Ainda assim, doutrina e jurisprudência não se furtaram a constatar a afetividade imanente a tais relações pessoais e passaram a conferir respostas a estas demandas mesmo sem expressa previsão legislativa.
Foi nessa dualidade entre uma alteração paradigmática nas relações familiares da sociedade e um discurso jurídico ainda muito formal e apegado à lei que se desenvolveu o reconhecimento da afetividade pelo direito brasileiro.
Os aportes advindos com a constitucionalização do direito privado e os novos ares trazidos pelos debates metodológicos sobre a forma de realização do Direito na contemporaneidade influenciaram fortemente a cultura jurídica brasileira das últimas décadas. Ao mesmo tempo o movimento de repersonalização do direito civil sustentou que a pessoa concreta deve ser o centro das suas preocupações. Na esteira disso emergiu a doutrina do direito civil-constitucional, que argumentou no sentido de que os institutos de direito civil deveriam ser vistos sempre sob o prisma da Constituição, que está no vértice do ordenamento. Com isso, houve uma perceptível aproximação do Direito com os dados de realidade, o que o levou ao encontro da afetividade quando do trato das relações interpessoais.
Os princípios constitucionais de liberdade, igualdade, dignidade e solidariedade incidiram no direito de família, permitindo a releitura de diversas categorias jurídicas, muitas delas mais aptas às demandas da plural e fluida sociedade do presente. A aproximação com a experiência concreta fez o Direito perceber a relevância que era socialmente conferida à afetividade, mesmo com o paralelo avanço de técnicas científicas que favoreciam a descoberta dos vínculos biológicos.
Houve um movimento crescente na defesa do reconhecimento da ligação afetiva como suficiente nas relações familiares, já que apenas os elos matrimoniais, biológicos e registrais não davam conta das variadas situações que se apresentaram. A partir da distinção entre o papel de pai/mãe das figuras dos ascendentes genéticos restou mais claramente perceptível a relevância que era conferida à afetividade, bem como se desnudaram diversas possibilidades oriundas de tal concepção. Legislação, jurisprudência e doutrina progressivamente trataram da temática, embora não sem enfrentar resistências e sobressaltos.
As alterações processadas no ordenamento brasileiro indicaram certa sensibilidade, ainda que tímida, a esta transição paradigmática. O direito civil clássico, retratado pelo Código de 1916, silenciava sobre o tema, restando apegado às noções de família legítima e atrelando os vínculos familiares apenas a elos matrimoniais, biológicos ou registrais (com a adoção como parentesco civil). A Constituição de 1988, na esteira das extensas alterações processadas na família, iniciou o reconhecimento legal da afetividade, uma vez que está implícita em diversas das suas disposições. O Código de 2002 tratou do tema de forma pontual. A legislação esparsa recente passou a dar sinais de crescente inclusão da afetividade de forma expressa nos textos de lei.
A jurisprudência teve papel fundamental nesta construção, pois os tribunais há muito fazem remissões à socioafetividade como suficiente vínculo parental. Atualmente, a extensão conferida à afetividade tem contribuído para outras leituras de diversos temas do direito de família (definição de entidade familiar, parentesco, guarda, adoção, alienação parental etc.). Até mesmo os Tribunais Superiores têm tratado da afetividade em várias decisões judiciais, demonstrando sua acolhida quando do acertamento de casos concretos.
Os juristas passaram a sustentar que o Direito deveria, de algum modo, valorar a afetividade, o que encontrou respaldo, não obstante persistam entendimentos em sentido contrário. O debate doutrinário que está presente, neste particular, envolve a decisão se o Direito deve ou não reconhecer a afetividade e, em sendo positiva a resposta, se esta deve ser considerada um princípio ou deve ser apenas vista como um valor relevante.
A doutrina se divide em três principais correntes: a) a primeira argumenta que a afetividade deve ser reconhecida e pode ser classificada como um princípio jurídico; b) a segunda alega que deve ser assimilada pelo Direito, mas apenas como um valor relevante; c) já a terceira corrente sustenta que a afetividade não deve ser valorada juridicamente (entende que o afeto é um sentimento, o que seria estranho ao Direito).
Em outras palavras: a problemática central atinente ao tema da afetividade envolve atualmente o seu reconhecimento (ou não) pelo Direito e a possibilidade de sua inclusão na categoria de princípio. Esta discussão traz subjacente a própria visão de Direito que se adota, as formas de expressão que se lhe reconhece, o conceito e o papel de princípio no sistema e, ainda, a escolha de alguns posicionamentos hermenêuticos que refletem na análise. Todas estas opções influenciam a maneira como se apreende a relação entre a família (como manifestação social) e o Direito que pretende regulá-la.
O entendimento da questão acima posta sinaliza, de algum modo, uma forma de ver o direito de família na atualidade, cuja resposta pode ser relevante para diversas outras construções teórico-práticas. Isso porque, a família do presente está tão imbricada com a noção de afetividade que o seu reconhecimento (ou não) pelo Direito pode trazer consequências de diversas ordens (como se viu no recente caso do reconhecimento judicial das uniões homoafetivas).
Uma análise das alterações que se processaram no direito de família brasileiro nos últimos anos permite perceber que vivenciamos uma alteração paradigmática: da égide da legitimidade, que imperava no direito de família clássico (bem retratado pelo Código Civil de 1016), ao paradigma da afetividade, vetor central do direito de família contemporâneo (retratado pelo Código Civil de 2002 e leis esparsas subsequentes).
No balanço entre os limites e as possibilidades advindos da leitura jurídica da afetividade é possível afirmar que suas projeções jurídicas podem contribuir para um renovado porvir do direito de família brasileiro, como objeto de construção e reconstrução constante. É o que se espera.
Nas palavras do professor e hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin
Do reconhecimento do afeto que constitui o âmago das relações familiares à imperiosa superação de um modelo único e estanque de família, cujo alicerce maior se verifica em um Código que ignora a realidade que o circunda, emerge, nesta oportunidade, um trabalho primoroso, que apreende a pluralidade das fontes normativas e vence o reducionismo codificador.(...) Destarte, com os olhos no futuro, mas sem descurar da realidade fática e normativa do presente, o autor briosamente investiga a família como espaço para a livre realização correlacional de seus integrantes, as novas formas de convivência familiar e como essas questões vertem novos desafios para o Direito frente à racionalidade da contemporânea estrutura jurídica brasileira, cujo legado positivista convive com a busca pela superação do formalismo. (...) Eis que se apresenta à comunidade jurídica um hodierno e salutar contributo à coeva feição do Direito da(s) Família(s). [2]
Notas e Referências:
* Conforme exposto na obra: CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[1] Aqui compreendida como o período do final do século XVIII até meados do século XX.
[2] Trechos do prefácio do professor Luiz Edson Fachin na obra “CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013”.
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR. Pós-graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil. Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ISAE Curitiba e Universidade Positivo. Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst. Pesquisador do grupo de estudos e pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFam. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR. Advogado em Curitiba; sócio do escritório Calderón Associados.
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