O "pensamento único" e o novo "jeitinho" legislativo: a investida dos "donos do poder" contra a população vulnerável

28/04/2015

Por Salah Khaled Jr – 28/04/2015

Sérgio Buarque de Holanda cunhou uma frase que se tornou famosa: "a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido". Como ele apontou, ela foi importada por uma aristocracia rural e semifeudal que tratou de acomodá-la aos seus direitos e privilégios. Desse modo, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos foram incorporados à situação tradicional, ainda que como fachada ou decoração externa.[i] Os reflexo é notório: o velho patrimonialismo com que as elites brasileiras sempre usaram a coisa pública. Não é por acaso que Raimundo Faoro consagrou a expressão "donos do poder".

O código de navegação que permite o tráfego nesse mar de "favores" e de leis que não "pegam" ou valem apenas para alguns (seja quando protegem ou quando punem) é a cordialidade no sentido buarqueano do termo: uma necessidade de intimidade com os poderosos, de pertencimento a uma família ampliada, que resulta na promiscuidade das relações pessoais e sociais, no sentido de que são mediadas antes pelo conhecimento e pelas relações que se tem do que por regras impessoais válidas para todos.[ii]

O elemento central que garante o mando e o desmando de quem exerce o poder em nome próprio e dos que lhe são próximos não é outro que o famigerado jeitinho, categoria chave para a compreensão da distorção que permeia nossa dinâmica social desde o longínquo passado colonial. Keith Rosenn escreveu sobre o "jeito" na cultura jurídica brasileira: uma prática de desvio das normas legais para alcançar um dado fim desejado, que se tornou uma verdadeira instituição paralegal. [iii] Segundo Luciano Oliveira, não estamos aqui às voltas com restos anacrônicos do passado. Para ele, "[...] não se trata apenas de uma crise de conjuntura, mas de um imaginário de longa duração que faz com que a nossa cultura conviva sem maiores questionamentos com diferenças abomináveis de tratamento".[iv]

Sem dúvida, a realidade concreta vivida pelos brasileiros está ainda muito distante do projeto delineado pela Constituição Cidadã. Não há exagero algum aqui: em pleno Estado Democrático de Direito, ainda enfrentamos enormes dificuldades para superar os inúmeros obstáculos à concretização da Constituição, particularmente no que diz respeito a quem está fora dos círculos privilegiados nos quais são tomadas as decisões sobre o que vale e não vale e sobre o que pega e não pega.

Embora não deva ser tomada como livro sagrado e infalível – todo texto tem seus limites –, a Constituição de 1988 representou e continua a representar uma janela de oportunidade significativa para rejeição do nosso legado autoritário. Produto de circunstâncias históricas muito peculiares, de certo modo pode ser dito que só temos uma Constituição tão libertária e democrática por causa da ditadura, que manteve represadas por duas décadas as energias dedicadas ao reconhecimento da diversidade do corpo social. A CR representa a possibilidade de oxigenação plural para um país acostumado historicamente com a ruptura autoritária da democracia e com a continuidade do mandonismo e do compadrio.

No entanto, como sabemos, seu déficit de efetividade é assustador. As razões são muitas. Mas uma delas é de particular interesse: a convergência entre tradição autoritária e ideologia neoliberal. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aponta que "dentre os obstáculos à concretização da Constituição da República seguramente um dos mais significativos é a tentativa de remeter tudo àquilo que Ignacio Ramonet chamou de 'pensamento único', ou seja o pensamento economicista/neoliberal, tomado como receituário epistêmico ao mundo globalizado". Jacinto refere que "o problema é que ele é confortável e hoje, em grande escala, já não demanda um engajamento. Ao contrário, tomado como modelo epistêmico carrega consigo os omissos e, portanto, a extravagante maioria: vai-se por força inercial! Chega a ser paradoxal: de um lado omissão e distanciamento asséptico (eis a chamada morte das ideologias); de outro, quiçá para compensar ou tentar responder à realidade, um mundo de competição, onde não se tem olhos para os outros, onde se consome a ética".[v]

Nessa lógica, "alguns poucos ganham muito e muitos perdem", como observou o autor. Na defesa de uma unidade impossível, "fala alto o exército de desavisados, que não se dão conta das consequências – engajados de corpo e alma na defesa de algo por eles não dominado, a não ser uns poucos e de pequenos setores – e, se dão, no mais das vezes, gozam do momento de glória vivida sob a desgraça alheia".[vi]

E como gozam. Os primeiros meses de 2015 ficarão marcados na história do país pelo investida selvagem contra os direitos fundamentais da população vulnerável. Terceirização e redução da maioridade penal fazem parte de um movimento conjunto, cujo sentido é dado por um pensamento proposto como único, mas que claramente remete ao receituário neoliberal a que serve. Trata-se de uma investida perversa, que visa deliberadamente reconduzir o país ao seu passado autoritário e promover a verticalização das relações sociais: de um lado, a legislação trabalhista é apontada como entrave ao desenvolvimento do país, como se fosse um arcaísmo a ser superado; de outro lado, a redução da maioridade penal é vendida como medida capacitada para a realização de milagres que jamais teria como proporcionar. Em outras palavras, estamos diante de uma iniciativa orientada pelo que há de mais perverso em termos de política social e econômica: estado social mínimo e estado penal máximo é o projeto capitaneado por essa intenção de subjugação do outro. A estratégia consiste em ampliar o espectro de criminalização da pobreza e vulnerar o trabalhador diante da extração de forças típica da face mais perversa da dinâmica capitalista. Viva a competição! Está dada a largada!

E o que aparentemente possibilita isso não é outra coisa que o jeitinho, institucionalizado como prática legislativa aceitável por um Congresso de perfil nitidamente conservador, que remete aos piores exemplos da nossa democracia tragicamente adaptada de forma seletiva aos trópicos. Paralegalidade não como exceção, mas como regra à la carte de atuação.

Podemos facilmente identificar nas duas situações referidas como o jeitinho pode operar de forma ardilosa para permitir que o chamado poder reformador ultrapasse os limites de um poder de direito, submetido a diversas limitações. O poder constituinte derivado é um poder de direito, não é um poder soberano: não é um fato político que se impõe historicamente e que não sofre qualquer limitação da ordem jurídica preexistente. Mesmo que ele tenha a função de adaptar o texto constitucional a novos ambientes políticos e sociais, deve assegurar a continuidade e identidade da Constituição.[vii] Não pode operar como um poder criativo que imita a liberdade divina e reescreve mandamentos constitucionais fragilizando e eliminando direitos fundamentais.

Todos sabemos – ou deveríamos saber – que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Será mesmo? A saída pela direita que o jeitinho encontra para o impasse é bastante singela: como a maioridade penal está definida no art. 228 da CF/88, tudo se resolve com um positivismo nauseante e sem sentido, que acaba dando o sentido, como disse Jacinto em outras circunstâncias.  Muitos ardilosamente preferem ignorar que o próprio STF já reconheceu que existem direitos protegidos pela cláusula do inciso IV do § 4º do art. 60 que não se encontram expressos no elenco do art. 5º, inclusive e notadamente por força de seu § 2º, cuja redação indica que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Mas o jeitinho tudo permite, tudo autoriza. É um verdadeiro deus ex-machina a serviço do mandonismo. A escolha da agenda neoliberal que pauta a redução da maioridade penal é simples: ignorar todos os tratados de direitos internacionais dos quais o Brasil é signatário – e que exigem a ampliação dos mecanismos de proteção a crianças e adolescentes –, extrapolar completamente os limites do poder constituinte derivado e fazer terra arrasada de uma cláusula pétrea, como se fosse areia que escorre pelos dedos de uma criança.  O mais irônico de tudo é que a autorização para que essa anomalia legislativa virasse realidade discutível no Legislativo partiu da CCJ: uma Comissão de Constituição e Justiça que aparentemente não entende nada de Constituição e muito menos de justiça. Mas de jeitinho ela entende. E como entende!

Mas o ataque não se restringe ao âmbito da ampliação da esfera de imputabilidade penal. Estamos testemunhando uma manobra ardilosa que potencialmente pode fazer da CLT e dos próprios direitos sociais trabalhistas reconhecidos constitucionalmente um mero ornamento retórico reservado para alguns privilegiados, conformando uma verdadeira precarização deliberada da situação dos trabalhadores neste país, para atender aos anseios deste Deus tão exigente que é o mercado. Flexibilização da forma, abandono da rigidez de legislação e simplificação de sistemas tidos como complexos são características de uma argumentação voltada para os interesses do empresariado. Tudo em nome do "livre mercado" e da "mão invisível" que o regula. Pensamento mágico difundido como único, e vocacionado para a destruição. Trata-se de uma gravíssima lesão social de direitos trabalhistas, como já apontaram os ministros do TST (ver aqui).  Alguns dirão que não há qualquer limite constitucional para que a terceirização vire regra e a legislação trabalhista vire privilégio de alguns sortudos. Tenho certeza que são os mesmos que diriam que "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais" bem como "promover o bem de todos" não é nada mais que perfumaria sem qualquer força normativa. Meu mais profundo desprezo e asco a eles.

O pior de tudo é que isso é autorizado e legitimado com verniz de verdade por quem adere ao discurso hegemônico e violento de ocasião. Como disse Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, "eis por que se têm como 'deuses'. Com ar olímpico, ignoram os outros. Isso no Direito é um caos; e vem comandado, em larga escala, por alguns constitucionalistas, em grande parte marcados pela 'omissão' e engajamento espontâneo decorrente da precitada 'força inercial' como num 'se deixar ir pela onda'. Eles, porém, têm prestado um grande desserviço à Constituição, sempre com as devidas exceções.[viii]

Enquanto não formos capazes de efetivamente levar direitos a sério, nossa única cláusula pétrea será o amaldiçoado jeitinho e estaremos condenados a continuar convivendo com uma democracia que não passa de um mal-entendido, conduzida pelos desígnios dos que se intitulam donos do poder. Do alto de sua torre de marfim, os parlamentares sabem muito bem a que deuses servem. Como sempre, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho dita o tom: "é preciso não deixar de atacar e denunciar todos aqueles que, em nome do 'pensamento único', têm a pretensão de 'dizer a verdade', enganados sobre a CR naquilo que lhe é fundamental, ou seja, a diferença e a pluralidade". É preciso resistir. DIGA NÃO. NÃO PASSARÃO! Boa semana!


Notas e Referências:

[i] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.160.

[ii] OLIVEIRA, Luciano. A lei é o que o senhor major quiser! Algumas achagas sociológicas. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (coords). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p.125.

[iii] ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.12.

[iv] OLIVEIRA, Luciano. A lei é o que o senhor major quiser! Algumas achagas sociológicas. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (coords). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p.129

[v] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O furo inevitável do pensamento único. In: OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; MEZZAROBA, Orides. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. pp. 170-171.

[vi] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O furo inevitável do pensamento único. In: OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; MEZZAROBA, Orides. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. pp. 171-172.

[vii] BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.147-149.

[viii] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O furo inevitável do pensamento único. In: OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; MEZZAROBA, Orides. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Constituição e Estado Social: os obstáculos à concretização da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. pp. 171-172.


salah-colunista Salah Hassan Khaled Junior é doutor e mestre em Ciências Criminais, mestre em História e especialista em História do Brasil. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande, professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


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