Somos o terceiro país que mais encarcera no mundo. Vivemos em uma sociedade que transita por uma aparente violência cotidiana, dentro e fora do sistema prisional, que desmotiva um observador desatento, quanto ao futuro das próximas gerações.
Essa realidade não é apenas nacional. Está presente na maioria dos países.
A resposta para essa “onda de criminalidade” foi e continua sendo o Direito Penal. É por meio da tipificação de condutas, do aumento das penas e do encarceramento provisório[1] que se busca “combater” a violência/criminalidade.
O mais grave não é o uso equivocado do Direito Penal para essa finalidade, mas acreditar que ele serve para isso. É um pensamento mágico sobre a eficácia do Direito Penal com finalidade preventiva.
O pensamento mágico “é uma característica das crianças, das chamadas culturas primitivas e também nossa, quando regredimos e estamos vulneráveis”. Todos nós “inconscientemente, criamos um comportamento ritualizado para afastar as forças negras e nebulosas. Quando nossos rituais não funcionam, nossa angústia aumenta”[2].
Nos parece muito esclarecedora a passagem acima. Nossa vulnerabilidade frente à violência, justamente por não a compreender (causas e motivos), faz com que acreditamos que um terceiro (Estado), por meio de um conjunto de leis irá nos manter em segurança. Esse sistema criado é fundamentado em uma ideia de ameaça, em que se acredita que a punição prevista em um tipo penal possa desmotivar alguém na prática do delito.
Agimos como “crianças”, acreditando em um “salvador” um “super-herói” que virá nos salvar do agressor, que sempre é o outro, nunca eu. Esta crença nos faz até mesmo aceitarmos que nossos direitos e garantias sejam diminuídos, desrespeitados, em nome de uma suposta proteção, que nunca vem.
Há toda uma ritualística discursiva estabelecida pelos catedráticos e estudiosos da dogmática penal (função da pena, ressocialização, prevenção etc.). Explica Hollis que “esses rituais são talismãs mágicos contra a insuportável ideia de que estamos em um universo estranho e nem sempre amigável”.[3]
Insistimos em trilhar esse caminho absolutamente equivocado. É preciso compreender e aceitar que o Direito Penal sempre chega atrasado, após a prática do fato ilícito e parar de acreditar que por meio da criminalização e simples punição os delitos irão diminuir. Temos mais de 1.600 tipos penais no Brasil e nem por isso a sensação de segurança ou a prática de crimes diminuiu.
Essa estrutura do Direito Penal tradicional busca apenas retribuir/punir pelo ilícito praticado. Não acreditem na ressocialização via encarceramento, isso é “pensamento mágico”. Quem minimamente estuda o sistema sabe que o encarceramento gera ainda mais violência.
Mas tudo isso já foi dito centenas de vezes nos livros de criminologia e em estudos sérios sobre o simbolismo do Direito Penal.
Porém o que pouco se fala é da ingenuidade dos juristas/políticos que querem “enfrentar” o ilícito por meio do punitivismo, como se o discurso sobre violência fosse um monopólio do Direito Penal.
Ingênuos. O Direito pouco sabe sobre a violência. Especificamente o Direito Penal, por muitos visto como um “talismã”, mais serve para criar violência. Quem quer compreender a violência ou o desvio precisa transitar pela criminologia, sociologia, psicologia, filosofia e tantos outros saberes que buscam compreender o comportamento humano, seja na sua individualidade ou coletivamente.
Para tentar entender a violência/desvio, precisamos observar o comportamento humano e para isso o Direito é um “analfabeto funcional”.
A partir desta premissa, percebe-se facilmente que o punitivismo não irá mudar o cenário atual, pois o que é feito com o preso senão separá-lo do convívio social sem possibilitar qualquer oportunidade de entender o porquê da prática do desvio?
Para James Hollis, “como e por que nosso sistema penal é tão ineficaz, pode ficar parcialmente claro aqui. Até mesmo as palavras penitenciária e reformatório se baseiam na ideia de que se uma pessoa for exilada do apoio psicológico do aspecto coletivo, que ele seria ‘penitente’ e que a ‘reforma’ moral ocorreria. Mas o sistema que temos é na verdade punitivo e raramente aborda a questão de como uma pessoa legitimamente condenada pode ser ajudada a se tornar consciente do mal que praticou e assumir a responsabilidade pelos seus atos, em vez de culpar a sociedade ou simplesmente a má sorte.”[4]
E esse é o norte que um sistema que busque prevenir o desvio deve seguir. Como fazer com que o sujeito tenha consciência do ato praticado e assuma a responsabilidade a partir da compreensão das causas que o motivaram a agir daquela forma?
James sugere a teoria dos 3 erres: Reconhecimento, Recompensa e Remissão (perdão).
O Reconhecimento diz respeito à conscientização do sujeito sobre o ato praticado e do dano causado a ele próprio (EU) ou uma outra pessoa.
A Recompensa, que só faz sentido se houve um reconhecimento e arrependimento genuíno, pode ser real, quando seja possível, ou apenas simbólico, “não sendo menos real por causa disso, porém claramente um ato de retorno psicológico por aquilo que foi tomado”.[5]
E quando o reconhecimento é genuíno e a recompensa efetiva ou simbólica ocorreu, aí é possível vivenciar a Remissão, que se baseia no “arrependimento” ou “na expansão da consciência”, que obriga a pessoa a reconhecer a “própria sombra, mas ao fazer isso, ao se responsabilizar por ela, a pessoa começa a agir no mundo de uma maneira diferente”[6]
Esse saudável reconhecimento da culpa/responsabilidade foi apresentado por Jung, e não significa uma fuga ou negação, mas um processo de individuação, que tem por tarefa a totalidade do indivíduo e não a bondade, a pureza ou a felicidade. É o enfrentamento ao EGO, num diálogo entre ele e o EU verdadeiro, que Jung chama de SELF.
Em resumo, “parte do legítimo desenvolvimento do indivíduo é o reconhecimento adequado da culpa, o que significa a aceitação da responsabilidade pelas consequências da própria escolha, por mais inconsciente que ela tenha sido na ocasião”[7]
Como o Direito pode contribuir para isso?
Sabemos que muitos atos geradores de violência escondem uma traição, seja nas relações amorosas ou negociais. Estes atos considerados como crime, autorizam, muitas vezes, uma condenação e o encarceramento do sujeito. O ato a ser julgado é o efeito de uma causa que, muitas vezes, nenhum dos envolvidos tem consciência de que foi o motor propulsor do desvio.
Apenas como exemplo singelo, trazemos esta hipótese da traição que motiva um delito e autoriza a condenação de alguém, que perdendo sua liberdade passa a conviver em um sistema prisional, sem qualquer possibilidade de tirar algum proveito desta situação, eis que o modelo tradicional não está preparado para dar algo diferente da retribuição e vingança.
Mas seria possível este sujeito aprender com o ato praticado? Vejamos o que escreveu Carotenuto:
A experiência da traição, traduzida em termos psicológicos, proporciona a oportunidade de vivenciarmos um dos processos mais fundamentais da vida psíquica, a integração da ambivalência, incluindo os sentimentos amor-ódio existentes em todos os relacionamentos. É preciso enfatizar novamente que essa experiência não envolve apenas aquele que geralmente leva a culpa, mas também o traído, que inconscientemente desencadeou os eventos que provocaram a traição.[8]
Pelo modelo tradicional de justiça e pelas estruturas do sistema prisional, essa expectativa dificilmente se concretizaria. Contudo há uma nova abordagem do Direito, a partir de uma percepção sistêmica e restaurativa, onde o sujeito, suas relações e não a conduta é o foco principal.
Essa visão sistêmica e restaurativa do Direito Penal pode ser expressada a partir da Justiça Restaurativa e do que se denomina de Direito Penal Sistêmico.[9]
Essas abordagens, que visam a CULTURA DA PAZ, investigam as causas do conflito, na perspectiva de que a violência é um ato social normal e que pode ser transformado. O conflito é visto como um efeito, um sintoma que está chamando a atenção dos envolvidos sobre alguma questão que precisa ser vista e compreendida.
A imersão ao autoconhecimento é uma necessidade urgente do indivíduo, que precisa saber dialogar com o EGO com o SELF, na busca da individuação.
Saber que as motivações da violência são, quase sempre, nossas sombras projetadas inconscientemente no outro é primordial. O que não suportamos ou negamos em nós, projetamos no outro, sendo, muitas vezes, a propulsão do conflito.
Superar o pensamento mágico do Direito Penal é um convite a um discurso adulto e não infantilizado.
E para isso apresentamos alguns dados obtidos ao longo de dois anos e meio de implementação de Projetos junto ao Sistema Prisional Catarinense.
No ano de 2017, iniciamos um projeto pioneiro de aplicação das Constelações Sistêmicas na Casa do Albergado Irmã Maria Uliano, cujo público alvo era composto por homens, com vício em álcool e que tinham praticado ato de violência.
O projeto partiu das seguintes hipóteses de pesquisa:
1) O vício é um dos fatores que levam a prática dos delitos;
2) O vício era motivado pela ausência paterna, assim ao tratar a origem sistêmica do vício, que conduzia à prática do delito, poderíamos incidir na redução da reincidência.
Para que pudéssemos atingir nosso objetivo, foi desenvolvido um modelo de atendimento, que pode ser denominado de restaurativo sistêmico, pois integra preceitos oriundos da Justiça Restaurativa e também da prática sistêmica.
De forma objetiva podemos dizer que o atendimento restaurativo sistêmico inicia com a Acolhida do Preso, sempre de forma empática e respeitando as Ordens da Ajuda de Bert Hellinger; passa-se, então, à segunda etapa na qual é realizada a Escuta Ativa Restaurativa Sistêmica, guiada pelas Perguntas Restaurativas Sistêmicas, conduzindo o preso à tomada de consciência sobre seus vínculos e padrões intergeracionais, assim como a dinâmica simbiótica entre vítima-agressor; na terceira etapa, utilizando os recursos sistêmicos, mas sem perder o foco na abordagem restaurativa, são realizados movimentos de liberação dos laços e emaranhamentos do preso, sempre que possível; por fim, o atendimento encerra com uma espécie de check-list daquilo que foi trabalhado e comprometimento do preso em fazer diferente, sempre após a tomada de consciência e responsabilização do mesmo.
Trata-se de um processo complexo para o qual é necessário estar capacitado na abordagem restaurativa-sistêmica, sendo que o passo a passo acima é apresentado apenas para ilustrar o nosso método de atendimento.
Alguns dados importantes sobre o projeto, que sentimos a necessidade em compartilhar:
a) Número de atendimentos individuais realizados: 73 atendimentos
b) Sexo dos atendidos: masculino
c) Faixa etária dos atendidos: 23 - 65 anos
d) Substâncias que consumiam:
e) Número médio de atendimentos realizados ao mesmo indivíduo: 1,5 %
f) Atendimentos realizados com egressos e suas famílias: 2 Círculos Restaurativos Sistêmicos (Círculo da Reintegração) com Egressos no ano de 2019.
g) Nos círculos foram identificados os seguintes padrões:
vinculação com o sistema carcerário, compreendido como um lugar seguro e de acolhida; conflitos e desequilíbrio na relação do casal, pois em decorrência do tempo encarcerado, da ausência do seio familiar, passou a não se sentir como tendo um lugar na relação de casal, além de ter deixado de ser o provedor da família, lugar esse assumido pela esposa; dificuldade de exercer sua função de pai, pois em decorrência da ausência e do contexto de prisão, deixou de ser respeitado pela companheira, que pratica alienação parental, desqualificando o companheiro.
h) Reincidência: até o presente momento nenhum dos presos que se submeteram ao Atendimento Restaurativo sistêmico voltaram a ser presos, o que nos daria um percentual de 100% de não reincidência, todavia como não é possível monitorar 100% dos atendimentos, são dados que ainda precisam mais tempo e estudo por parte da equipe;
i) principais desordens sistêmicas encontradas:
j) principais benefícios relatados pelos presos:
Esses são alguns dados apresentados de forma sucinta sobre o projeto Constelações Sistêmicas na Casa do Albergado Irmã Maria Uliano.
Os atendimentos foram feitos pelos profissionais e professores Márcia, Fabiano e Everaldo e também por alguns de nossos alunos, que já estão utilizando na prática todo o conhecimento adquirido nos cursos de capacitação sobre Justiça Restaurativa Sistêmica.
Indicamos para leitura e aprofundamento no tema as obras JUSTIÇA RESTAURATIVA SISTÊMICA[10], DIREITO SISTÊMICO[11] e CONSTELAÇÃO SISTÊMICA NA EXECUÇÃO PENAL[12], que abordam de forma sistêmica e restaurativa as relações sociais e conflituosas, oportunizando caminhos diferentes e que certamente são mais eficientes na prevenção de práticas delitivas do que o tradicional Direito Penal.
Notas e Referências
[1] No Brasil com a antecipação da execução da pena mesmo antes do trânsito em julgado.
[2] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 150.
[3] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 150.
[4] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 37.
[5] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 34.
[6] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 35.
[7] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 31.
[8] CAROTENUTO, Aldo. Eros e Patos: amor e sofrimento. São Paulo: Paulus. 1994. p. 81.
[9] Ver sobre o tema em OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Direito penal sistêmico: a aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao direito penal. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/direito-penal-sistemico-a-aplicacao-das-leis-sistemicas-de-bert-hellinger-ao-direito-penal-1508161307. Acessado em 09 de outubro de 2019.
[10] OLDONI, Fabiano; OLDONI, Everaldo Luiz; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Manuscritos Editora: Joinville, 2018.
[11] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; GIRARDI, Maria Fernanda G. 2 ed. Manuscritos Editora: Joinville, 2019.
[12] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Manuscritos Editora: Joinville, 2018.
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