O PARADOXO DO CARANGUEJO: REQUIEM À DURAÇÃO NÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO CRIMINAL

08/01/2018

1. INTRODUÇÃO: O TEMPO, A MORA, O CARANGUEJO E OS PROCESSOS-CRIME

No reino animal, o caranguejo ostenta uma forma de locomoção que desafia o senso comum, já que, malgrado fisicamente habilitado para caminhar em frente, desloca-se de forma mais lépida e costumeira lateralmente.

O “Paradoxo do Caranguejo” – mover-se com mais habilidade para os lados que longitudinalmente – serve, assim, como alegoria para descrever fenômenos em que, a despeito da ação dos sujeitos, não há avanço ou regressão em relação ao ponto final da “linha do tempo”, mas apenas um movimento estacionário e lateral.

Lamentavelmente, na esfera do Direito Processual Penal, o “Paradoxo do Caranguejo” se amolda à situação extremamente comum na prática forense: processos criminais que, estando o acusado preso ou em liberdade, não avançam em direção ao provimento final, senão ladeiam, com atos retardados, inúteis ou despropositados dos sujeitos processuais, perpetuando a sua existência sem que haja solução acerca do status libertatis.

A realidade do Poder Judiciário brasileiro é de processos-crime demorados, com duração média de três anos e um mês apenas para a solução da fase de conhecimento, conforme estatística do Conselho Nacional de Justiça (Justiça em Números, 2017). 

Esse cenário, além de representar ataque à missão fundamental do instrumento do processo – o acesso à Justiça – assume contornos ainda mais graves, dado que o trâmite ralentado estende a degradação do acusado, por um lado, e, por outro, não entrega à sociedade uma resposta acerca do exercício da Ação Penal.

Obviamente, não se ignora que a jurisprudência pátria reconhece força ao princípio constitucional da razoável duração do processo para constatar a ilegalidade da prisão cautelar, mas esta aplicação é deveras limitada, não sendo estendida à contenção de outras hipóteses de morosidade da persecução penal.

É este solo de vagaroso exercício de tutela jurisdicional semeado com a quase inaplicação do princípio constitucional objeto de estudo, portanto, o terreno fértil para germinar o debate sobre sua (in)aptidão para o controle concreto da demora na persectuio criminis in iudicio, o que se passa a fazer.

2.O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

No Brasil, a estreia da preocupação com a morosidade processual se deu na “Lei da Boa Razão”, de 18 de agosto de 1769, que previa multas aplicáveis a advogados que atuassem de forma a retardar o trâmite processual.

Após, ainda que de forma tímida, as Constituições Federais de 1937 e 1946 continuaram a prever normas contra a morosidade processual, somente tendo havido extirpação constitucional do tema pela outorgada Constituição Federal de 1967, mantida mesmo com o advento da Emenda Constitucional n.º 1/1969.

A Constituição de 1988, inobstante não tenha consagrado o princípio em testilha de forma expressa na redação original, passou a o contemplar com a Emenda Constitucional n.º 45/2004, que acrescentou o inciso LXXVIII ao catálogo maior de direitos e garantias fundamentais:

TÍTULO II

DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO I

DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) 

Paralelamente, no plano internacional, a Convenção Europeia de Direitos do Homem (1950), assentou, em prol da pessoa presa, o direito “de ser julgada num prazo razoável” (artigo 5.º, item 3), disposição cujo espírito foi ampliado na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969, artigo 7, item 5).

Todas as disposições constitucionais e convencionais acerca da razoável duração do processo, entretanto, não estampam um prazo definido em dias, meses e/ou anos que sirva como parâmetro para aferição, o que revela ter sido adotada a doutrina do “não prazo”, vale dizer, um conceito amplo e abstrato de duração razoável concretizável pelo exegeta, com atenção às peculiaridades do caso concreto.

Deixamos para outra oportunidade a definição de como se determina o “prazo razoável” bem como seus termos inicial e final, interessando-os aqui apenas definir o efeito da procrastinação processual-penal.

De início, verifica-se que a norma constitucional não cogita de qualquer sanção ou desdobramento jurídico na hipótese de duração não razoável do processo – assumindo contorno imperfeito, na classificação de Maria Helena Diniz[i].

A despeito disto, advogamos que compreender que a norma é “letra morta” parece insuficiente, até porque não deveria causar espécie a abstração do princípio da duração razoável do processo, considerando que o os princípios são marcados exatamente pela abertura semântica, conforme registra Humberto Ávila[ii]:

O seu elemento essencial é a indeterminação estrutural: princípios são prescrições finalísticas com elevado grau de generalidade material, sem consequências específicas previamente determinadas. 

Demais disto, a Constituição, distante de ser uma vitrine estanque de normas, ostenta poder transformador e, na expressão de Konrad Hesse, força normativa.

Sob outro aspecto, no âmbito do estudo de Direitos Humanos, a doutrina de escol afirma serem três as categorias de medidas repressoras da duração não razoável de procedimento ou processo criminal em que o acusado esteja em liberdade, a saber, instrumentos compensatórios, processuais e punitivos.

No sistema normativo brasileiro, tem-se no artigo 93, inciso II, alínea “e”, da Constituição da República, exemplo de cominação punitiva; na atenuante inominada do artigo 66 do Código Penal, oportunidade para técnica compensatória penal; e, na responsabilidade civil do Estado, espaço de compensação cível.

Diferentemente das medidas punitivas e das compensatórias, no entanto, a medida processual não encontra previsão expressa no Código de Processo Penal, propondo o Aury Lopes Júnior[iii] de todo modo a sua aplicação, por incidência direta do texto constitucional:

A extinção do feito é a solução mais adequada, em termos processuais, na medida em que, reconhecida a ilegitimidade do poder punitivo pela própria desídia do Estado, o processo deve findar. Sua continuação, além do prazo razoável, não é mais legítima e vulnera o Princípio da Legalidade, fundante do Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e categóricos – incluindo-se o limite temporal – ao exercício do poder penal estatal. 

Inobstante a solução sugerida pelo mestre gaúcho, a ausência de previsão de texto legal expresso enseja larga resistência à aplicação da medida processual pelos juízes brasileiros, apesar de, contraditoriamente, ser uníssono o reconhecimento da ilegalidade da prisão cautelar que ultrapassa a razoável duração, tanto pelo Supremo Tribunal Federal (v.g. HC148028/SP) quanto pelo Superior Tribunal de Justiça (v.g. HC220.218/RJ).

Aliás, em adição, recentemente a Corte da Cidadania editou verbete de súmula que reconhece a aplicação do princípio sub oculis para ensejar nulidade em processo administrativo disciplinar (Súmula 592 do STJ).

Ora, ubi eadem ratio ibi idem ius!

Se o princípio constitucional em voga se presta para macular de ilegalidade a custódia cautelar, instrumento de segundo grau (ou do instrumento do processo), também deve servir para inquinar o processo ou procedimento penal retardatário, como, a propósito, também já tem sido reconhecido de forma tímida pela jurisprudência quanto a inquéritos policiais (STJ, HC n.º 96.666/MA e RHC n.º 61.451/MG).

De mais a mais, o argumento de que a abstração despe a norma da razoável duração do processo de efetividade é superado tanto pela afirmação da força normativa da Constituição quanto pela circunstância de haver, segundo se entende, disposições infraconstitucionais vigentes que concretizam o princípio.

É que a combinação dos artigos 3.º e 648, inciso I, do Código de Processo Penal com o 485 do Novo Código de Processo Civil, supletivamente aplicável, viabiliza, à nossa ótica, a incidência imediata do princípio constitucional em comento, inclusive com o efeito medida processual de fulminação do processo-crime.

Art. 3.º. A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. 

Art. 647.  Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. 

Art. 648.  A coação considerar-se-á ilegal:

I - quando não houver justa causa; 

Art. 485.  O juiz não resolverá o mérito quando:

[...]

II - o processo ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;

III - por não promover os atos e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias; 

Aclarando o raciocínio, o que se sustenta a partir dos dispositivos acima transcritos é que as balizas encunhadas no Novo Código de Processo Civil, verdadeiras expressões da norma da razoável duração, podem e devem ser emprestadas ao âmbito processual penal, servindo de rol exemplificativo de hipóteses de incidência do princípio em estudo no combate à morosidade na seara criminal.

Na linha aqui defendida, parece-nos haver a vantagem de que são utilizados parâmetros temporais concretos, assentados pelo legislador, o que, salvo melhor juízo, supera a resistência majoritária relacionada à abstração da norma constitucional em voga.

Finalmente, conclui-se que, à míngua dos esforços hermenêuticos para alargar a aplicação do princípio da razoável duração do processo, a sua efetividade não será alcançada pelo simples reconhecimento das forças sancionadora, compensatória e processual, afigurando-se imprescindível, em paráfrase ao mestre Rui Barbosa, que os sujeitos processuais não tardem na prática de ato, evitando que os autos penem feito almas no purgatório.

 

[i] DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, 1.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 103.

[ii] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores 2011, p.128

[iii] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 15.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Caranguejo // Foto de: Valdiney Pimenta // Sem alterações

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