O presente artigo pretende realizar dois objetivos. O primeiro é o de delimitar o que seja o paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito. O segundo é o de estabelecer as relações entre essa noção de Estado Democrático de Direito e a perspectiva pós-positivista da compreensão das relações jurídicas nesse limiar do século XXI, com particular ênfase no chamado fenômeno da judicialização da política.
O Estado de Direito pode ser concebido em sua acepção clássica por uma abrangente pretensão: a de que todo o âmbito estatal esteja presidido por normas jurídicas, que o poder estatal e a atividade por ele desenvolvida se ajustem ao que é determinado pelas prescrições legais. Além disso, uma vez obtida a vigência dessa fórmula, pretendeu-se tornar o seu alcance mais preciso, afirmando-se que através dela o Direito seria respeitoso com as liberdades individuais tuteladas pela Administração Pública[1]. Como expõe Friedrich Von Hayek, ressaltando a previsibilidade das condutas firmada por uma normatividade estabelecida, de modo que os indivíduos possam pautar por elas sua liberdade de agir:
A característica que mais claramente distingue um país livre de um país submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios conhecidos como o Estado de Direito. Deixando de lado os termos técnicos, isso significa que todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas - as quais tornam possível prever com razoável grau de certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com base nesse conhecimento[2].
Assim, um governo submetido ao Estado de Direito seria o contrário de um governo arbitrário. A elaboração pelo Estado de normas fixas, claras e estáveis seria o único meio que teriam os indivíduos de não serem submetidos às incertezas do imprevisível.
Porém, claramente, tal formulação clássica é insuficiente para a conformação da ideia de um Estado de Direito. Um Estado de Direito desse tipo seria compatível com um regime autoritário zeloso da disposição livre dos assuntos individuais e assecuratório de um grau de segurança e certeza para os cidadãos. No regime nacional-socialista, por exemplo, o homem é garantido em seu “vínculo social”. O Direito se dirige ao homem não como pessoa individual, isolado como indivíduo, mas como pessoa concreta, como empresário, como trabalhador, empregado ou representante de comércio, etc. O Direito registra o homem em suas relações sociais, em seu papel social. O indivíduo se caracteriza pelo pertencimento a uma determinada comunidade de raça e sangue e tem nelas garantidas suas funções individuais e sociais como empresário, obreiro, arrendador, arrendatário, empregado etc. Seu papel social e sua função social (determinada pelos deveres inerentes ao seu papel social) são ressaltados e assegurados pelo Direito. Assim, um regime autoritário não obstante, é capaz de assegurar um critério uniforme de aplicação do Direito consoante a lei, ainda que autoritariamente elaborada (tem um critério legal do justo e do injusto) e é assecuratório da previsibilidade das condutas (compreendida nos valores maiores da comunidade)[3].
Trata-se, então, de uma definição insuficiente do que se poderia conceber como um Estado de Direito. Do mesmo modo é insuficiente a definição preconizada pelo chamado Estado Liberal de Direito.
O Estado Liberal de Direito caracteriza-se pela difusão da ideia de direitos fundamentais, da separação de poderes, bem como, do império das leis, próprias dos movimentos constitucionalistas que impulsionaram o mundo ocidental a partir da Magna Charta Libertatum de 1215.
Nesse paradigma – o do Estado Liberal –, há uma divisão bem evidente entre o que é público, ligado às coisas do Estado (direitos à comunidade estatal: cidadania, segurança jurídica, representação política etc.) e o privado, mormente, a vida, a liberdade, a individualidade familiar, a propriedade, o mercado (trabalho e emprego capital) etc. Essa separação dicotômica (público/privado) era garantida por intermédio do Estado, que lançando mão do império das leis, garantia a certeza das relações sociais por meio do exercício estrito da legalidade.
Com a definição precisa do espaço privado e do espaço público, o indivíduo guiado pelo ideal da liberdade busca no espaço público a possibilidade de materializar as conquistas implementadas no âmbito do Estado que assumiu a feição de não interventor. Nesse contexto, o indivíduo, na busca de interesses próprios, procura encontrar sua felicidade, por isso o Estado tem por propósito garantir as liberdades individuais necessárias a esse empreendimento personalíssimo. Assim, verifica-se que o Estado de Direito é caracterizado por ser um Estado mínimo, objetivando acautelar tão somente a ordem social e a segurança pública, conforme leciona Canotilho:
(...) o Estado de direito é um Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança públicas (“Estado polícia”, “Estado gendarme”, “Estado guarda nocturno”), remetendo-se os domínios económicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos, mas do respeito de uma esfera de liberdade individual[4].
Deve o Estado, por meio do direito posto, garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo, rompendo-se, via de consequência, com a anterior concepção de Estado (pré-moderno), no qual, até a felicidade dos indivíduos era uma atribuição estatal.
A igualdade de todos diante da lei é consagrada. Formalmente, todos são iguais perante a lei, ou são iguais no sentido de todos se apresentarem agora como proprietários, no mínimo, de si próprios, e, assim, formalmente, todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujeitos de direito, devendo-se pôr fim aos odiosos privilégios de nascimento.
Os indivíduos que outrora eram coisificados, agora contam com a elevação de sua dignidade pessoal à de sujeitos de direitos, mormente, com a realização de contratos de compra e venda de sua força de trabalho. Consagra-se a vida, a liberdade e a propriedade como valores máximos. Por outro lado, no âmbito da esfera pública, convencionam-se direitos perante o Estado e direitos à comunidade estatal: status de membro (nacionalidade), igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segurança pública, direitos políticos etc.”.
O constitucionalismo moderno surge com o tema central da fundação e legitimação do poder político, assim como a constitucionalização das liberdades. A idéia, na era moderna, é impor limites ao Leviatã e garantir os direitos individuais.
Mas também essa forma de Estado não pode ser considerada um Estado de Direito na acepção contemporânea. Para que se configure um verdadeiro Estado de Direito são necessários mais requisitos do que a, por si só importante, submissão à lei. A lei não pode ser qualquer modalidade de lei, mas sim aquela que conta com o assentimento dos governados (além disso, aquela que se elaborou com a participação deles). Também não caracteriza simplesmente o Estado de Direito a simples enunciação de um sistema político com divisão de poderes, mas sim que existam sistemas de controle que respeitem e garantam efetivamente os direitos e as liberdades fundamentais.
Em outras palavras, deve existir um substrato mínimo material para todos assecuratório das liberdades fundamentais. Se de um lado o homem alcançou o ideal de liberdade em face do Estado, mormente com a implementação de um documento formal que lhe garantia formalmente uma gama de direitos individuais, por outro, essa garantia reduzia-se ao campo meramente formal, pois, no paradigma constitucional do Estado Liberal de direito, a condição humana não melhorou muito em relação à noção pré-moderna.
O paradigma liberal, marcado pela expansão capitalista e, por conseguinte, pela grande exploração do homem pelo homem, o que ocasionou a miséria, a fome e profundas desigualdades sociais, nos demonstra que a concretização da igualdade se apresentava como algo muito distante, tendo em vista a omissão do Estado perante aos problemas econômicos e sociais. Como expõe José Luiz Quadros de Magalhães:
Esse individualismo dos séculos XVII e XVIII corporificado no Estado Liberal e a atitude de omissão do Estado diante dos problemas sociais e econômicos conduziu os homens a um capitalismo desumano e escravisador. O século XIX conheceu desajustamentos e misérias sociais que a Revolução Industrial agravou e que o Liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis. Combatida pelo pensamento marxista e pelo extremismo violento e fascista, a liberal-democracia viu-se encurralada. O Estado não mais podia continuar se omitindo perante os problemas sociais e econômicos[5]
A ordem liberal é posta em xeque com o surgimento de ideias socialistas, comunistas e anarquistas, que a um só tempo, animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles reforça com a luta pelos direitos coletivos e sociais.
Com o desenvolvimento do movimento democrático e o surgimento de um capitalismo monopolista, o aumento das demandas sociais e políticas, além da Primeira Guerra Mundial, abrolha-se a crise da sociedade liberal, possibilitando o surgimento de uma nova fase do constitucionalismo – agora social – com alicerce na Constituição da República de Weimar, e em razão disso, inaugura-se o paradigma constitucional do Estado Social de Direito ou Welfare State.
O conceito de Welfare State ou Estado Social de Direito[6] nasce com base na concepção de que existem direitos sociais indissociáveis à existência de qualquer cidadão. Segundo esta concepção, todo o indivíduo tem o direito, desde seu nascimento, a um conjunto de bens e serviços que devem ser fornecidos diretamente através do Estado, ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos contemplam cobertura de saúde e educação em todos os níveis, auxílio ao desempregado, garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para sustentação dos filhos, etc.
Segundo Sônia Draibe[7] são características comuns das definições de Welfare State as seguintes:
- a tendência do Estado de modificar o livre funcionamento do mercado;
- o princípio de substituição do rendimento em caso de perda temporária ou definitiva da capacidade de obtê-lo, para a prevenção dos riscos próprios inerentes à economia de mercado (velhice, doenças, maternidade, desemprego);
- a garantia, mesmo para os excluídos do mercado de trabalho, de uma renda mínima a um nível considerado suficiente para a satisfação das necessidades sociais e culturais essenciais.
Essa última característica de práticas universalistas de garantia de uma renda mínima caracteriza somente as tendências recentes de proteção social e não o Welfare State em sua concepção mais abstrata.
O Estado Social de Direito procura equilibrar as relações econômicas e sociais, pois já estava superada àquela ideia de que a simples normatização de leis pudesse garantir a efetividade dos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e propriedade. Sob o paradigma social, o Estado empenha-se por materializar os direitos individuais, considerados fundamentais, consagrados pelas Declarações e Constituições. Assim sendo, o Estado tem por objetivo principal assegurar aos indivíduos os direitos sociais, preocupando-se, por conseguinte, em garantir à coletividade “uma ordem jurídica materialmente justa”[8].
Para Claus Offe[9] o Welfare State é essencialmente um fenômeno das sociedades capitalistas avançadas, as quais (sem exceção) criam estruturalmente problemas endêmicos e necessidades não-atendidas. Neste contexto, o Welfare State seria uma tentativa de compensar os novos problemas criados por estas sociedades. Assim, a emergência dos Estados de Bem-Estar não apenas não representa uma mudança estrutural das sociedades capitalistas, mas seria essencialmente uma resposta funcional a seu desenvolvimento:
O Welfare State não pode lidar diretamente com as necessidades humanas fundamentais; ele pode apenas tentar compensar os novos problemas que são criados na vaga do crescimento industrial. (p. 482).
Segundo Offe, o desenvolvimento do capitalismo gera problemas sociais, tais como: necessidade de moradia para os trabalhadores concentrados pela indústria, necessidade de qualificação permanente da força de trabalho, desagregação familiar, etc. Ou seja, em seu desenvolvimento, o capitalismo destrói formas anteriores de vida social (ou instituições sociais), gerando disfuncionalidades, as quais se expressam sob a forma de problemas sociais.
O Welfare State representa, portanto, formas de compensação, um preço a ser pago ao desenvolvimento industrial. Mais que funcional, o Welfare State é um desdobramento necessário da dinâmica de evolução destas sociedades, uma vez que há pequena margem para escolhas. Isto é, segundo o autor, a emergência de programas sociais não é resultado de escolhas, porque as alternativas de políticas são pequenas. São as condições econômicas e sociais que determinaram a emergência do Welfare State, e não opções feitas no campo do político:
(...) padrões ideológicos não são apenas ausentes, mas eles seriam inaplicáveis mesmo se existissem, porque a margem para políticas alternativas "viáveis" é muito pequena para permitir escolhas baseadas em princípios. É exatamente esta situação que melhor descreve o desenvolvimento do Welfare State. Plataformas dos partidos e resultados eleitorais parecem não ter influência na percentagem do orçamento estatal que é gasto para fins de Welfare ou em novos programas de Welfare que são criados. Muito mais importantes como determinantes das políticas ("policies") são variáveis econômicas tais como o crescimento da produtividade, a extensão da mobilidade social, o nível tecnológico das indústrias básicas, o tamanho e composição da força-de-trabalho, a estrutura de idade da população e outros indicadores macroeconômicos e macrosociológicos. (p. 484).
Claus Offe nega explicitamente determinantes de ordem política na emergência dos programas sociais, dizendo que a decisão política no Welfare State está fadada a ser bastante reduzida. Ao contrário, aqueles programas expressam a natureza do Welfare State, qual seja, um contínuo processo de adaptação aos problemas sociais postos pelo desenvolvimento do capitalismo:
A lógica do Welfare State não é a realização de algum objetivo humano intrinsecamente válido, mas antes a prevenção de um problema social potencialmente desastroso. (...) Esta maneira tecnocrática e absolutamente apolítica de reagir a pressões sociais emergentes condena o Welfare State a um infindável e errático processo de auto-adaptação. (p. 485).
Portanto, podemos compreender o Estado Social de Direito ou Welfare State como um aspecto funcional do desenvolvimento do modo de produção capitalista, em que os programas sociais seriam fundamentalmente uma forma de corrigir/compensar disfuncionalidades, expressas no plano social, da operação do sistema capitalista.
Destarte, verifica-se o Estado assumindo atividades privadas, exercidas, antes, somente pelo particular, vê-se, aqui, então, o nascimento dos direitos sociais, que redefiniram os conceitos de igualdade e liberdade. Assim dispõe Luiz Moreira:
O Estado social e democrático de direito caracteriza-se pela constitucionalização das relações de classe. Exemplos empíricos dessa juridicização são as garantias trabalhistas e de seguridade social. E essa onda de juridicização, como nas etapas anteriores, obedece a uma tentativa de equilibrar em termos jurídicos a disputa que ocorre no âmbito da ação. E, nesse caso, as normas jurídicas têm a função de manter, em níveis razoáveis, o conflito entre classes sociais. Ora, a função específica das garantias oferecidas pelo Estado democrático e social é absolver os efeitos externos de uma produção baseada na mão-de-obra assalariada[10].
No paradigma do Estado Social de Direito o Estado amplia suas funções, vez que intervém nas esferas privadas para garantir a efetividade dos direitos sociais. Tem-se, portanto, uma ideia de tutela do Estado ao cidadão, pois aquele passa a estar presente em todos os setores da vida humana, transformando-se no centro da vida política, jurídica, social e econômica.
A preocupação do Estado em materializar os direitos enseja novos métodos de interpretar o texto normativo, nos quais permite ao juiz uma maior liberdade quando construir uma decisão. Assim, não mais se admite uma interpretação na qual fica o julgador adstrito à literalidade da norma, faz-se necessário, por conseguinte, uma interpretação que atualize o texto da lei:
(...) ao Estado social de direito (Welfare State) interessam as lacunas da lei para o juiz livremente decidir habilidosamente em parâmetros de conveniência (Common Law) os conflitos que possam colocar em desequilíbrio o sistema social a ser mantido em suas bases de tradição e autoridade[11].
O Estado Social de Direito, no entanto, não consegue, seja no plano fático, seja no plano epistemológico, cumprir suas ambiciosas promessas. No plano fático a extensão de direitos sociais a todos, com os crescentes custos das prestações sociais positivas como encargo do Estado logo se mostram inviáveis de serem asseguradas com a extensão preconizada. Do mesmo modo, o Estado incorre, em geral, em um acentuado custo de operacionalização para a extensão de tais direitos, com a formação de uma ineficiente estrutura burocrática, de custos astronômicos.
Essa inviabilidade fática do atendimento das prestações sociais positivas preconizadas acarreta a chamada ineficácia dos direitos sociais. No plano epistemológico, sob a ótica do paradigma social, os conflitos, sociais e econômicos, devem ser pacificados a qualquer custo pelo Estado-juiz, ainda que não observe os preceitos fundamentais dispostos na Constituição. Neste aspecto, as decisões judiciais não têm amparo constitucional, vez que são fundamentadas em “fins metajurídicos de justiça ou clamor social”[12]. Assim sendo, o direito não contempla com os requisitos de legitimidade e validade, qual seja, positivação e fundamentação (observância aos princípios constitucionais). Se os direitos sociais não podem ser extensíveis a todos, embora sejam formalmente assegurados, ao juiz cabe decidir, discricionariamente, a quem serão concedidos (àqueles que têm condição de acessar efetivamente o Judiciário), aprofundando-se a crise de legitimidade de tais direitos sociais.
Portanto, o Estado Social de Direito também não pode ser considerado um verdadeiro Estado de Direito. Só pode ser considerado um Estado de Direito aquele no qual sejam assegurados com efetividade a participação política na formação da vontade do Estado e os direitos e liberdades fundamentais. Se os indivíduos são alienados de tal participação por um paternalismo da estrutura social, política e jurídica do próprio Estado que passa a tutelar tais interesses individuais e se os direitos sociais considerados fundamentais não podem ser assegurados pela inexequibilidade de sua excessiva abrangência, não há que se falar também aqui em Estado de Direito efetivo.
Cabe então aqui o exame do terceiro paradigma de Estado de Direito que procura dar conta desse paradoxo que é o chamado Estado Democrático de Direito. A perspectiva mais consentânea do Estado Democrático de Direito é aquela que o define como uma nova análise dos institutos jurídicos constitucionais dos Estados anteriores, implicando em uma redefinição de Estado perante a ordem constitucional. No Estado Social de Direito as decisões judiciais ficavam ao arbítrio do julgador. Ao juiz, de acordo com seus conceitos de justiça, bem estar coletivo e paz social, caberia proferir as decisões, ainda que não amparada pelos princípios constitucionais. Os princípios constitucionais foram, não poucas vezes, desrespeitados/inobservados, pois a decisão resultava das convicções íntimas e subjetivas do julgador.
Diante disto, os indivíduos perceberam que não mais poderiam entregar toda a sua busca pela felicidade a um Estado Soberano, o qual aparece como macrossujeito abarcador de uma hipotética unidade cívica. Uma nova definição de Estado se impunha, definição esta na qual a ótica democrática fosse a vertente primordial da construção e da realização do Direito. Este novo paradigma de Estado, o democrático, requer um modelo de sociedade aberta com uma teoria discursiva do Direito. Neste sentido, os partícipes da procedimentalidade instaurada são responsáveis pela construção da decisão. No Estado Democrático de Direito, os cidadãos participam discursivamente na elaboração da decisão, são, pois, ao mesmo tempo, autores e destinatários do provimento final.
Elias Díaz no seu livro clássico “Estado de Derecho y sociedad democrática” apresenta essa nova visão de Estado Democrático de Direito:
No todo Estado es Estado de Derecho. Por supuesto, es cierto que todo Estado crea y utiliza un Derecho, que todo Estado funciona con un sistema normativo jurídico. Difícilmente cabría pensar hoy un Estado sin Derecho, un Estado sin un sistema de legalidad. Y sin embargo, decimos, no todo Estado es Estado de Derecho; la existencia de un orden jurídico, de un sistema de legalidad, no autoriza a hablar sin más de Estado de Derecho.
Designar como tal a todo Estado, por el simple hecho de que se sirve de un sistema normativo jurídico, constituye una imprecisión conceptual y real que sólo lleva —a veces intencionadamente— al confusionismo. Cabe adoptar como punto de partida la siguiente tesis: el Estado de Derecho es el Estado sometido al Derecho, o mejor, el Estado cuyo poder y actividad vienen regulados y controlados por la ley... El Estado de Derecho como Estado con poder regulado y limitado por la ley se contrapone a cualquier forma de Estado absoluto y totalitario, como Estados con poder ilimitado, en el sentido de no controlado jurídicamente o, al menos, insuficientemente regulado y sometido al Derecho[13].
Segundo esse autor o império da lei, o controle jurídico do poder estatal e a segurança frente à arbitrariedade são os traços definitórios do Estado Democrático de Direito. São, portanto, assim delimitadas as características mais básicas e indispensáveis a todo Estado Democrático de Direito:
a) império da lei: lei como expressão da vontade geral;
b) divisão de Poderes: executivo, legislativo e judiciário;
c) legalidade da Administração: atuação segundo a lei e suficiente controle judicial;
d) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídica formal e efetiva realização material[14].
Sob a ótica do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, somente é legítimo o provimento final se construído por todos os partícipes envolvidos no procedimento, devendo este espaço procedimental ser orientado pelos princípios do sistema democrático. De acordo com Habermas:
(...) o princípio da democracia pressupõe preliminarmente a possibilidade da decisão racional de questões práticas, mais precisamente, a possibilidade de todas as fundamentações, a serem realizadas em discursos (e negociações reguladas pelo procedimento), das quais depende a legitimidade das leis. (...) Partindo do pressuposto de que uma formação política racional da opinião e da vontade é possível, o princípio da democracia simplesmente afirma como esta pode ser institucionalizada – através de um sistema de direitos que garante a cada um igual participação num processo de normatização jurídica, já garantindo em seus pressupostos comunicativos. (...) o princípio da democracia refere-se ao nível da institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se
realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito[15].
Estaríamos, portanto, no âmbito daquilo que se denomina um direito pós-positivista, no dizer de Luís Roberto Barroso, uma compreensão do direito que se apresenta
como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer que essas três dimensões se influenciam mutuamente também quando da aplicação do Direito, e não apenas quando de sua elaboração. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética”[16] .
Em que medida, porém, a quarta característica dos princípios do Estado Democrático de Direito na concepção de Elias Díaz, a efetiva realização material dos direitos e liberdades fundamentais compõe a realização concreta do Estado Democrático de Direito? Todos os direitos prestacionais abarcados nas Declarações de Direitos devem ser efetivados para que se possa falar na materialização do Estado Democrático de Direito? Como garantir tal desiderato, se, por vezes, os exercícios dos direitos prestacionais são contraditórios entre si? Este é o problema do Estado Democrático de Direito e nessa acepção é que seu conceito se conecta com a chamada judicialização da política.
O Estado Democrático de Direito como condição prévia para a plena consecução da judicialização da política implica que essa judicialização da política (e das relações sociais) pode ser definida como uma nova tendência da democracia contemporânea, própria do sistema democrático procedural, caracterizada por uma política de direitos, pela pressão dos grupos de interesses no jogo democrático e, primordialmente, pelo ativismo judicial. Como bem coloca John Ferejohn:
(...)observa-se um profundo deslocamento do poder do Legislativo para tribunais e outras instituições jurídicas. Tal deslocamento - que recebeu o nome de judicialização - tem ocorrido em escala mais ou menos global. O espetáculo dos juízes italianos pondo abaixo o sistema de troca-troca de gabinetes estabelecido na Itália no pós-guerra, magistrados franceses caçando primeiros-ministros e presidentes, e até mesmo juízes tomando a iniciativa de prender e julgar ex-ditadores e líderes militares, são os aspectos mais visíveis dessa tendência. Mesmo a intervenção da Suprema Corte americana na disputa eleitoral em Bush v. Gore é outra manifestação bastante conhecida desta tendência[17].
Diante da ineficácia do Estado Social de Direito e de sua incerteza na alocação social dos recursos o Poder Judiciário transforma-se em um espaço público de solução de conflitos e de distribuição da justiça:
Uma economia de mercado aberto descentraliza os fóruns de resolução de disputa. Enquanto o governo era o grande investidor nas sociedades latino-americanas, que controlava os preços, os sindicatos e a maioria dos empregos, os partidos políticos e as instituições do Executivo e Legislativo eram os fóruns mais importantes onde se colocavam as expectativas e as soluções dos conflitos entre os grupos sociais. Os conflitos mais importantes que surgem hoje em dia na América Latina normalmente não acabam mais em exigências para o governo mudar o modo como os benefícios sociais são distribuídos. Ao contrário, os agentes privados se confrontam no mercado ou nos tribunais. [...] Durante o século XX na América Latina, os governos, os partidos políticos e várias instituições públicas usaram a linguagem da justiça social e da dignidade humana. Os não-privilegiados aprenderam por mais de 50 anos como se integrar à sociedade e conseguir os benefícios sociais por meio desses canais políticos. Mas hoje esses canais políticos perderam muito de seu peso. O Judiciário, que com certeza não tem sido na tradição latino-americana um fórum importante para os não-privilegiados apresentarem as suas reivindicações, pode tornar-se, finalmente, sob as novas condições, um lugar importante para integrar a justiça social[18].
Esse novo papel do Poder Judiciário na democracia traz, no entanto, contradições no que se refere à concretização do conceito de Estado Democrático de Direito. Esse conceito se ampara na materialidade de todos os direitos e garantias fundamentais, inclusive, também, na efetivação dos direitos sociais, como garantia da realização da igualdade entre os indivíduos?
Como conceber, afinal, se estamos ou não diante de um Estado Democrático de Direito?
Direitos e garantias fundamentais em um Estado Democrático de Direito devem ser compreendidos a um só tempo de maneira holística em um sentido histórico e restritos em sua abrangência. Deste modo, com a devida análise histórica da evolução do Estado, se constata que o elemento primordial do Estado de Direito é a certeza e segurança dos cidadãos quanto à atuação do poder político, como bem destaca Karl Larenz:
Donde existen relaciones de este tipo (relaciones de poder), se produce en todos los tiempos el peligro del abuso, peligro que tiene fundamentos muy profundos en la naturaleza humana. El poder sobre otros, aunque sea un pedacito de poder, constituye para muchos hombres una tentación para aumentar con su ejercicio arbitrario su amor propio, para ensancharlo más allá de los límites establecidos y para envidiarlo por sí mismo[19]
Trata-se, assim, do princípio da limitação e do controle do poder. É a prevenção da arbitrariedade e do abuso de poder, vinculando o poder na sua atuação ao Direito. A divisão dos poderes (funções do Estado) se apresenta então, historicamente, como o meio mais eficaz para evitar um uso arbitrário das faculdades que as leis outorgam aos poderes públicos.
Nesse mesmo diapasão, de limitação e controle do poder, se incluem, consoante Larenz, a inadmissibilidade das leis retroativas (mormente em direito penal, nulla poena sine lege), a vinculação da Administração ao Direito e a concessão a todos os cidadãos de uma ampla tutela jurídica. A isso se acrescem os princípios processuais do Estado de Direito: a imparcialidade do juiz e o princípio do contraditório.
A abrangência dos direitos em um Estado Democrático de Direito está condicionada a esse papel de garantia da submissão dos poderes ao império da lei e de limitação do poder do Estado. Como assinala Benjamin Constant o “objetivo de los modernos es la seguridad de los disfrutes privados, y llaman libertad a las garantías concedidas por las instituciones a esos disfrutes”[20].
Deste modo, em um conceito de Estado Democrático de Direito que tenha efetividade e não seja uma quimera simplesmente programática, a materialidade dos direitos prestacionais deve ser aquela necessária para a segurança dos desfrutes privados, alcançáveis pelos indivíduos de maneira autônoma.
Portanto, o Estado de Direito não pode ser delimitado somente como aquele que garante a liberdade de um ponto de vista formal, o império da lei, nem, por outro lado, como um Estado igualitário onde a liberdade de escolha de cada cidadão acerca do seu próprio projeto de vida, não esteja assegurada.
Há que se fazer assim uma delimitação conceitual. Para que exista um Estado Democrático de Direito é necessário que existam as condições políticas para que todos, inclusive o Estado, estejam efetivamente submetidos ao Direito e o controle do poder político deste esteja assegurado. Isso envolve direitos políticos e liberdades e as condições materiais assecuratórias para o exercício de tais liberdades.
Esse Estado de Direito não se confunde, entretanto, com um Estado prestacional. A excessiva intervenção estatal, com fins igualitários, pode, em determinadas circunstâncias, em perigo a liberdade. Do mesmo modo, as liberdades, sem um marco de igualdade de oportunidades sociais e econômicas se convertem em fórmulas vazias. O Estado Democrático de Direito deve ser, primordialmente, uma forma de organizar o Estado onde todos tenham a potencialidade de se expressar e influir na formação da vontade política desse Estado. A partir daí, adentramos no campo da decisão democrática dos cidadãos acerca de uma modalidade mais social ou mais liberal de Estado de Direito, o campo por excelência da judicialização da política.
Os seres humanos diferem de modo significativo uns dos outros. Essas diferenças podem ser tanto por características externas como pelas circunstâncias nas quais cada um se encontra. Uns nascem com maior riqueza, outros não; alguns herdam certas responsabilidades que fazem parte de seu encargo, outros não; alguns nascem em ambientes mais hostis podendo afetar sua saúde e bem-estar, outros também não. Divergimos também, além das características externas (ou seja, de acordo com os ambientes natural e social que cada um se encontra), em nossas características pessoais como sexo, idade, aptidão física e mental e características internas como propensão à doença e assim por diante.
Isto significa que nossas características físicas e sociais nos fazem pessoas extremamente diferentes, fazemos parte de uma sociedade diversificada e a sociedade a qual pertencemos nos oferecerá oportunidades diferentes quanto ao que podemos ou não fazer.
Compreender o campo da judicialização da política, significa entender, com Amartya Sem, que a maioria das discussões sobre a desigualdade se concentra em torno da desigualdade de renda, o que acaba por não explicar toda a extensão da desigualdade real de oportunidades. Aquilo que as pessoas podem ou não fazer ou realizar não depende exclusivamente de suas rendas, mas também de inúmeras características físicas e sociais que acabam por afetar suas vidas.
Para Amartya Sen os homens apresentam necessidades diferentes e a simples igualdade de renda ou de bens primários falha ao tratar a variação destas necessidades como iguais. Ao tentar buscar uma explicação sobre as inúmeras variáveis que afetam a nossa igualdade de bem-estar ou satisfação de necessidades, o autor vai além da idéia de renda e busca mostrar como estas variáveis afetam a vida que podemos levar e a liberdade que podemos desfrutar.
Embora níveis de salário e remuneração façam parte da análise da desigualdade, eles não esgotam toda a questão. Um exemplo disso são as diferenças entre as liberdades desfrutadas por ambos os sexos em diferentes regiões, ou seja, na divisão de atividades desenvolvidas dentro das famílias, educação recebida, e liberdades permitidas dentre os diferentes membros componentes da mesma família.
Amartya Sen nos mostra que é a incapacidade de adquirir bens e não os bens em si mesmos que contribuem para a fome e a desigualdade. Neste sentido, a explicação em torno da diferença de funcionamentos e da desigualdade de capacidades (por exemplo, escapar de doenças, evitar mutilações no corpo, ser livre para buscar carreiras independentes etc.), deve ser apreciada fugindo da questão da discussão em torno de renda recebida, bens primários e recurso recebidos por integrantes de uma mesma família:
Quando deslocamos nossa atenção de mercadorias e rendas para funcionamentos e capacidades, o quadro relativo pode mudar radicalmente. A diferença parece relacionar-se, em grande medida, com as diferenças nas condições sociais, educacionais e epidemiológicas. (...) Portanto, esta distinção entre privação de renda e de capacidade para realizar funcionamentos elementares tem relevância também para a política pública - tanto para o desenvolvimento quanto para a erradicação da pobreza e da desigualdade[21].
O autor não nega que uma renda diminuta acaba por dificultar o desenvolvimento das capacidades de um indivíduo, mas essa variável, embora importante, se mostra como um valor fundamentalmente instrumental, por facilitar o acesso a um conjunto de funcionamentos e o desenvolvimento de capacidades:
O que a perspectiva da capacidade faz na análise da pobreza é melhorar o entendimento da natureza e das causas da pobreza e privação desviando a atenção principal dos meios (e de um meio específico que geralmente recebe atenção exclusiva, ou seja, a renda) para os fins que as pessoas têm razão para buscar e, correspondentemente, para as liberdades de poder alcançar esses fins[22].
Desenvolver capacidades é assim, fundamental, para atingir o desiderato da felicidade dos indivíduos, mas não se confunde com a ideia de um Estado Democrático de Direito. Um conceito mais delimitado de Estado de Direito no plano jurídico-político é perfeitamente compatível e desejável com a realização de um Estado Social de Direito, mas não se confunde com ele.
É no campo da judicialização da política, compreendida em senso amplo, que se articula a realização das tarefas sociais que hoje se consideram imprescindíveis para uma vida humana digna, compatível com o pleno desenvolvimento das capacidades dos indivíduos: segurança social, educação básica, proteção frente ao desemprego, cuidados sanitários e pensões mínimas.
É preciso considerar o espaço social da judicialização da política. Uma das principais dimensões do Estado de Direito diz respeito ao fato de que só se pode falar em justiça se as necessidades básicas dos homens estão, de alguma forma, atendidas. Consoante o entendimento da justiça social[23], esta tem por fundamento garantir a consecução do bem de todas as pessoas, consideradas não em suas individualidades, mas, sim, como membros de um todo social harmônico, voltado à cooperação mútua para a realização da felicidade geral. Aí está embutida a firme ideia de dignidade inerente a toda humanidade (em substituição à ideia pré-moderna de honra), como único parâmetro de avaliação do homem condizente com a igualdade liberal. Partindo da premissa de que todos os seres humanos detêm uma valia idêntica perante a lei, todos os indivíduos guardam dignidade própria que determina, necessariamente, que sejam dadas a eles todas as condições materiais e imateriais indispensáveis para a existência plena.
Existe um relativo consenso de que não há vida digna, nem auto respeito, nem possibilidade de exercício de capacidades individuais e coletivas sem que determinadas condições básicas estejam satisfeitas. A discussão gira em torno de quais condições seriam essas. Trata-se apenas de comer, beber, dormir e se abrigar? Sem dúvida que não, pois essas satisfações apenas garantem ao homem condições para a sua sobrevivência biológica. Por isso, admiti-las como suficientes seria o mesmo que comparar os homens aos animais, que certamente também necessitam dessas mesmas coisas para se manterem vivos. As necessidades humanas, ao contrário, requerem atendimentos para além da dimensão biológica ou natural. Para os homens, as necessidades de comer, beber, dormir, abrigar-se, não constituem um fim em si mesmo. Envolvem, entre outros aspectos, a produção de instrumentos em um processo que se dá permeado de interações sociais, divisão de tarefas, organização do espaço. Com isso se quer dizer que o atendimento às necessidades humanas engloba também aspectos psicológicos, culturais e sociais.
Essas necessidades básicas, segundo Marx, são necessidades comuns a todos os homens, e, por outro, essas necessidades são produto do meio e da cultura em que vivem esses homens, variáveis, portanto:
A extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de satisfazê-las são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatores, em grande parte do grau de civilização de um país e, particularmente, das condições em que se formou a classe dos trabalhadores livres, com seus hábitos e exigências peculiares [24].
A distinção entre necessidades básicas e necessidades não-básicas, pode ser compreendida em Pereira[25] que identifica a chave dessa distinção como sendo a ocorrência ou não de “sérios prejuízos à vida material dos homens e à atuação destes” como sujeitos, caso essas necessidades não sejam satisfeitas. Em outros termos, necessidades humanas básicas são aquelas que devem ser satisfeitas como condição necessária para evitar sérios e prolongados prejuízos à saúde física e à cidadania, fato que não ocorre com a não satisfação de preferências. Em vista da associação entre necessidades humanas básicas e sérios prejuízos, cabe definir estes últimos:
Sérios prejuízos são impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de participação ativa e crítica. São, portanto, danos cujos efeitos nocivos independem da vontade de quem os padece e do lugar ou da cultura em que se verificam[26] (PEREIRA, 2000, p. 67).
Dessa definição, um aspecto se revela como muito relevante: “sobrevivência”, não apenas no sentido físico, mas também social. Assim, chega-se ao significado de necessidades como o déficit de condição para a vida e para a ação humana livre e crítica.
Autonomia é a capacidade dos indivíduos de formular estratégias para a consecução de seus objetivos e interesses, conscientemente identificados e, ainda, de colocá-las em prática sem opressões. Tal significado envolve o reconhecimento, pelo indivíduo e pelos outros, de ele ser capaz de realizar algo e responsabilizar-se por essa ação. Nesse sentido, três atributos são fundamentais para o exercício pleno da autonomia: habilidade cognitiva, saúde mental e oportunidade de participação.
A habilidade cognitiva refere-se exatamente à capacidade do indivíduo de entender o mundo a sua volta e as regras sociais estabelecidas pela cultura a que pertence. A saúde mental, por seu turno, significa a condição necessária para que a ação se dê em condições racionais, pois um déficit de saúde mental criará inaptidão para lidar com coisas particulares e coletivas de forma autônoma e discernida. A loucura seria o extremo desse déficit. Já a oportunidade de participação envolve o grau em que a autonomia pode ser incrementada a partir de novas opções de ação, socialmente relevantes. Todos os seres humanos, em qualquer cultura, são instados a desempenhar papéis sociais comuns, como o de pais, donos de casa, trabalhadores e cidadãos. Ampliar esse leque de competências depende de oportunidades, ou seja, de disponibilidade de meios objetivos para tanto.
A existência de necessidades comuns não significa estratégias iguais para a sua satisfação. Habilidade cognitiva, saúde física e mental e autonomia podem ser obtidas de diversas formas. Há uma série de bens, serviços e relações sociais, que em maior ou menor extensão, são capazes de satisfazer as necessidades básicas. Em vista disso, podemos identificar um conjunto de necessidades intermediárias que, se satisfeitas, contribuem para o aumento da habilidade cognitiva, saúde física e mental e da autonomia: 1. alimentação nutritiva e água potável; 2. habitação adequada; 3. ambiente de trabalho seguro; 4. ambiente físico saudável; 5. cuidados apropriados de saúde; 6. proteção à infância; 7. relações primárias significativas; 8. segurança física; 9. segurança econômica; 10. educação básica; 11. educação para o planejamento familiar, pré e pós natal adequados.
Não há uma ordem de importância dentre essas necessidades intermediárias. Todas são essenciais para a garantia da saúde física e mental e da autonomia. Em alguns, como alimentação e moradia, as especificidades culturais e de respostas a eles endereçados são fatores importantes; mas o fato é que se eles não forem atendidos causarão sérios danos à saúde física e mental das pessoas, prejudicando seu desenvolvimento e participação sociais, de forma ativa e crítica.
Esse é o espaço social da judicialização da política. Possibilitar que, no campo da atuação do Poder Judiciário, esses valores e necessidades sejam, de algum modo, satisfeitos. E, mais do que isso, reconhecidos como direitos, se incorporem ao exercício da cidadania. O Estado Democrático de Direito na acepção delimitada acima descrita possibilita isso, o espaço social, a arena, onde esses interesses e necessidades se manifestam. Mas, não se confunde, enquanto conceito, nem com esse espaço social, nem com seu processo de realização, a judicialização da política.
Podemos concluir assim que o paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito se caracteriza por ser um Estado de Direito em um contexto pós-positivista, marcado por uma reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; pela reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; pela formação de uma nova hermenêutica; e pelo desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido se apresenta como parte da realização de tal Estado de Direito a consecução dos direitos fundamentais dos indivíduos. Mas a questão primordial a saber é: a quais direitos fundamentais estamos nos referindo, só aos direitos políticos e às liberdades públicas ou ao conjunto de direitos materiais econômicos e sociais reconhecidos, via de regra, nas Declarações de Direitos? Se também são reconhecidos direitos materiais, de que natureza são esses direitos e como se definem as contradições entre os diversos exercícios de tais direitos pelos indivíduos?
A noção preconizada nesse texto é a de que, na contemporaneidade, deve ser delimitado aquilo que se compreende pelo conceito de Estado Democrático de Direito, para que este possa subsistir como um conceito útil e operacional. O Estado Democrático de Direito deve ser aquele capaz de submeter o exercício das funções do Estado ao Direito, limitá-lo, controlá-lo e assegurar valores como a autonomia, a liberdade e a igualdade naquelas circunstâncias onde possam imperar a fome, a insegurança ou a ignorância.
Mas, ao mesmo tempo deve evitar a intervenção excessiva do Estado, mesmo que com objetivos igualitários, em tudo aquilo que ponha em risco valores como a responsabilidade, o esforço e mérito individuais, o desenvolvimento da autonomia e o talante moral dos cidadãos.
As disputas em torno de maior enfoque liberal ou social do Estado não devem ser compreendidas como definidoras do Estado Democrático de Direito, mas sim como disputas legítimas dos cidadãos no espaço social público, através de um processo de resolução de conflitos legítimo que é o da judicialização da política. Formas de institucionalização do bem-estar social devem passar por esse crivo de efetividade de políticas públicas, como direitos a serem buscados e perseguidos, mas também para o controle de tudo aquilo que estas tiverem de alienantes, burocráticas e insuficientes.
A precisão conceitual assim alcançada será útil não apenas para o reforço das características democráticas do Estado, mas também para a melhor configuração da necessária reforma do Welfare State dentro de um procedimento de liberdade e garantias processuais de direitos a prestações positivas.
Notas e Referências:
[1] VERDU, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 1.
[2] HAYEK, Friedrich August Von. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p. 96.
[3] TORRE, Massimo La. La lucha contra el derecho subjetivo: Karl Larenz y la teoria nacionalsocialista del derecho. Madri: Dykinson, 2008, pp. 342-351, passim.
[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 97.
[5] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, v 1, p. 44.
[6] Em Política Social, escrito em 1965, Marshall procura dar conta da origem do Estado Social de Direito na Inglaterra, bem como de sua evolução no pós-guerra, notadamente na década de 50 e início da década de 60. Para o autor, o Estado Social de Direito naquele país tem início em meados da era Vitoriana, qual seja, no último quartel do século XIX. Era de prosperidade e confiança, teria marcado o início da adoção de medidas de política social: leis de assistência aos indigentes, leis de proteção aos trabalhadores da indústria, medidas contra a pobreza, etc. Em tais medidas, estaria o embrião daquilo que, mais tarde, após a Segunda Grande Guerra, seria conhecido como welfare state.
A razão para o surgimento destas medidas, as quais legariam à sociedade inglesa do século XX um aparelho estatal administrativamente preparado para garantir o bem-estar social a seus cidadãos, está no impulso dado às sociedades pela industrialização. Uma vez re-harmonizada e re-adaptada ao novo "modo de vida", após a pacificação dos conflitos que haviam acompanhado a origem da produção em escala industrial, a sociedade inglesa abraçou essa tarefa de desenvolver suas potencialidades (e) colocou em movimento forças inerentes ao próprio sistema que levaram, por processos lógicos e naturais, à sua transformação em algo totalmente imprevisto e incomum. Este é um conceito central nesta explicação: a origem e desenvolvimento do Estado Social de Direito fazem parte de um processo que é definido fundamentalmente pela evolução lógica e natural da ordem social em si mesma (MARSHALL, Thomas H. Política social. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 12-97).
[7] DRAIBE, Sônia Miriam. O “Welfare State” no Brasil: características e perspectivas. In: ANPOCS. Ciências Sociais Hoje, 1989. São Paulo: Vértice e ANPOCS, 1989, p. 18.
[8] SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e novos paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 289.
[9] OFFE, Claus. Advanced capitalism and the Welfare State. In: Politics and Society, v. 4, p. 479-488, 1972, pp. 482-485.
[10] MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 3 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 58.
[11] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 99.
[12] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p. 135.
[13] DÍAZ, Elias. Estado de Derecho y sociedad democrática. 4. ed. Madri: Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1972, p. 13.
[14] DÍAZ, Elias. op. cit., p. 29.
[15] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a faticidade e validade. v. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 145/146.
[16] BARROSO, Luís Roberto. Vinte Anos da Constituição Brasileira de 1988: O Estado a que Chegamos. In: Retrospectiva dos 20 Anos da Constituição Federal. AGRA, Walber de Moura (coord.). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381-382.
[17] FEREJOHN, John. Judicializing politics, politicizing law. Hoover Digest, nº 1, 2003, p. 46.
[18] SUTIL, Jorge Correa. Reformas judiciárias na América Latina. In. PINHEIRO, Paulo Sergio et alli (orgs.). Democracia, violência e injustiça. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 287 e 295.
[19] LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Madri: Civitas, 1985, p. 151.
[20] CONSTANT, Benjamin. De la libertad de los antiguos comparada con la de los modernos. In: CONSTANT, Benjamin. Escritos políticos. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 269.
[21] SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. São Paulo: Record, 2001, p. 194.
[22] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo : Cia das Letras, 2000, p. 112.
[23] CASTILHO, Ricardo. Justiça social e distributiva: desafios para concretizar os direitos sociais. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 37.
[24] MARX, Karl. O Capital. Livro 1. v. II. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 191.
[25] PEREIRA, Potyara A. P. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. São Paulo: Cortez, 2000, p. 66-67.
[26] PEREIRA, Potyara A. P. op. cit., p. 67.
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