O papel (higiênico) da Sustentabilidade

19/08/2015

Por Aline Gostinski e Antonio Marcos Gavazzoni - 19/08/2015

Se tem algo que pode representar a problemática da sustentabilidade[1], das corporações, do desenvolvimento econômico, das desigualdades sociais, do avanço da ciência e da tecnologia, e a crise ambiental, é o papel higiênico, esse objeto quase esquecido no dia a dia das pessoas e que só é valorizado quando acaba. A verdade é que o papel higiênico é uma daquelas coisas que não nos causam empolgação alguma, já faz parte do nosso cotidiano desde sempre, apesar de ser mais um produto símbolo de status, com grife e tudo mais; independentemente da classe social do indivíduo, somente quando falta o papel é que nos damos conta de sua importância.

Antes do papel higiênico ser inventado, a “limpeza” era feita de forma criativa, adaptada a cada cultura e local, por exemplo: na Inglaterra na época dos vikings eram utilizados pedaços de lã de carneiro; já na Índia se utilizava apenas a mão esquerda e água; no Havaí, casca de coco; nos Estados Unidos utilizavam a concha do mexilhão, areia e espigas de milho; os Esquimós usavam gelo e musgos da tundra; e assim durante milhares de anos, a humanidade se virou como pode para cumprir esta inescapável tarefa.[2]

Já são aproximadamente 3,5 milhões de anos de evolução cultural da humanidade, nesse tempo o homem se tornou um ser social, modificou sua forma de viver e se relacionar produzindo também modificações no meio natural, cuja intensidade acompanhou essa evolução; porém chegou-se atualmente na crise mais dramática de todo esse momento evolucionário: a crise moral[3]. Vê-se todos os dias uma crise de identidade generalizada, onde as pessoas não sabem mais que valores assumir, qual sua responsabilidade frente a esse quadro degradante, tanto do meio ambiente como do próprio homem, e sentem constantemente a pressão velada para a adoção da cultura hegemônica globalizada[4].

Não se tem mais uma noção clara do valor das coisas e das pessoas – se é que um dia já tivemos. Mas o que o papel higiênico tem a ver com isso? Bom, ele já foi um símbolo de segregação também, foi um artefato inicialmente produzido para poucos – na verdade para uma pessoa apenas, na China, em 1391 temos o primeiro registro da produção de papel para uso no toalete; na época foram feitas grandes folhas para o uso do imperador. Somente em 1890 a empresa americana Scott Paper Company (é, essa mesma!) começou a comercializar o papel da forma como conhecemos hoje, em rolos.[5]

Corporações e grandes empresas são as maiores responsáveis pela degradação ambiental e cultural em que a humanidade se encontra. Primeiro impondo um ritmo de consumo alienante e alienado, conquistado através de engenhosas técnicas, como a obsolescência programada, a obsolescência perceptiva, as campanhas de marketing, os mitos[6], e uma infinidade de outras técnicas; sempre atualizadas e eficientes para garantir mais e mais lucro.

De fato, a questão econômica é parte indissociável de qualquer questão humana, mesmo que em última análise; a engenhosidade do dinheiro reside em simples fatos como por exemplo: um agricultor poder comprar um carro, sem precisar levar dezenas de sacos de soja para a concessionária; mas seu alcance e poder destrutivo, por outro lado, não são nada simples[7]. O sistema econômico é quem dita as regras da vida ou morte no planeta e a sustentabilidade se compreendida na sua real essência bate de frente com o sistema. E como diria o Capitão Nascimento[8]: “o sistema parceiro, é foda”!

A sociedade mundial foi sitiada por grandes corporações que de tempos em tempos criam um mito novo para manter o controle sobre o senso comum, e a bola da vez é a sustentabilidade. O sentimento de culpa incutido nas pessoas, as cobranças por atitudes “ecologicamente corretas”, as campanhas de conscientização, o drama mundial, são todas ações pensadas pelos grandes grupos financeiros para vender um “produto novo”, produto esse, produzido, em regra, de forma lesiva ao meio ambiente e ao equilíbrio social. Não podemos “pedir para sair” desse sistema, que escraviza as mentes desde o nascimento, nos cumpre então tentar encontrar uma maneira de nos adaptar ao sistema para que possamos garantir uma vida digna para todos, não só para quem detêm o comando ou se aproveita dele.

Voltando ao caso do papel higiênico, é possível produzi-lo com materiais reciclados ou com restos de madeira até, porém alguns indivíduos têm tanto dinheiro, e conseguem atender tantas “necessidades”, das mais básicas às mais extravagantes – não todas porque o mercado sempre criará uma necessidade nova – que uma delas é utilizar um papel higiênico “super-macio” feito de árvores centenárias das raras florestas do Canadá!

Pode-se acreditar que a bunda deles seja mais delicada que a das “outras” pessoas… Mas não é isso não, a lógica é bem mais complexa, alguns indivíduos pensam: porque eu vou utilizar um papel higiênico feito com material reciclável se eu posso pagar por um papel higiênico super-macio, feito de algumas raras florestas antigas, e que, de acordo com a publicidade, vai me deixar bonito, atraente, mais alto, sensual, e ainda mais inteligente? Isso não é piada, acontece realmente! As florestas centenárias do Canadá estão sendo dizimadas para garantir a produção de papel higiênico para a população dos Estados Unidos limparem suas bundas economicamente privilegiadas.[9]

Enquanto isso, milhares de pessoas, especialmente crianças, morrem de desnutrição, fome e sede e até por doenças banais como cólera. O relatório The State of Food Insecurity in the World 2014, sobre segurança alimentar, apresentado no dia 16 de setembro de 2014 na ONU, mostrou que aproximadamente 805 milhões de pessoas no mundo passam fome, isso representa uma pessoa em cada nove no mundo sem ter o que comer[10]. Mas quem estaria disposto a abrir mão do seu papel higiênico “super-macio” para dar condições de vida a um pobre qualquer?

O papel higiênico, que no Brasil custa de 2 a 3 reais em média, produto descartável e utilizado diariamente, pode chegar a um preço de US$17,00 (aproximadamente R$ 40,00) por um rolo do chamado Hanebisho, feito a partir da melhor fibra de madeira do Canadá, que é tratada com a água do rio Nyodo, o mais limpo do Japão[11], e tudo isso para que? Já comentamos: para o uso dos economicamente privilegiados...

Com a globalização as gritantes desigualdades mundiais ficaram evidentes e estão chegando no limite. Nas palavras de Bauman[12]: “A hibridização e a derrota dos essencialismos proclamados pelo elogio pós-modernista do mundo ‘globalizante’ estão longe de expressar a complexidade e as agudas contradições que dilaceram esse mundo”.

O Relatório Nosso Futuro Comum[13], trouxe um dos mais conhecidos conceitos de sustentabilidade, que seria “satisfazer as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de gerações futuras atenderem suas próprias necessidades.” Mas as necessidades do presente estão sendo atendidas? É óbvio que não, e não é preciso ir muito longe para se perceber isso.

Antes o que se via eram miseráveis morrendo na tentativa de entrar ilegalmente nos países economicamente desenvolvidos, iludidos com a promessa de enriquecer e ter uma vida como viam nos filmes de Hollywood; hoje em dia, temos refugiados pelo mundo todo - o Brasil mesmo recebe diariamente dezenas de Haitianos, além dos Africanos que seguidamente vê-se nos noticiários escondidos em navios, sonhando com um lugar onde se possa viver e não apenas sobreviver. Nos grandes centros existe também outro tipo de refugiados, na maioria asiáticos, que vem para o Brasil explorar o comércio dos itens produzidos em seus respectivos lares natais pelos seus conterrâneos de menos sorte.

A globalização mostrou que a ilusão de um mundo sem barreiras é mais um mito[14] cultivado para que a riqueza dos eleitos se concentre e cresça mais rápido, aumentando a monstruosa desigualdade existente entre ricos e pobres. Os problemas são globais, os lucros, porém, são locais. O alcance das corporações para explorar o capital é planetário enquanto as consequências dessa exploração e a degradação decorrente das atividades das multinacionais impactam a todos, em maior ou menor grau, embora potencializem a miséria dos mais pobres.

O desenvolvimento sustentável não pode ser manipulado pelas corporações, dado que priorizar exclusivamente o retorno econômico implica em excluir a preocupação com as futuras gerações. A sustentabilidade autêntica é possível e exige uma efetiva preocupação com o futuro e não o balanço anual. Devemos buscar melhorar a vida das pessoas, a verdadeira sustentabilidade. Da mesma forma que a qualidade do papel depende do equilíbrio entre a mistura dos 4 tipos de fibras que compõem a folha. A sustentabilidade não pode mais ser vista somente sob a ótica ambiental, não existe sustentabilidade realmente quando existem pessoas que não conseguem garantir o mínimo para sua subsistência.

Quanto mais fibras curtas, mais macio o papel higiênico, quanto mais igualdade econômica, mais sustentável a sociedade. Porém outros fatores, como a composição química, a técnica e a tecnologia empregada podem promover um bom resultado[15]; igualmente a sustentabilidade só vai ser plena quando as dimensões ambiental, social, econômica, política, cultural e tecnológica estiverem em equilíbrio no mundo.

O esgotamento ambiental dos países mais desenvolvidos (economicamente) provoca uma insustentabilidade no mundo na mesma proporção que a miséria e a pobreza dos países menos desenvolvidos (economicamente) provocam. Esse “pano de fundo” utilizado para criar um novo mercado verde mundial esconde uma grande verdade que há tempos Capra[16] já mostrava, todos estamos conectados e vivemos em uma grande teia. Infelizmente para alguns, a teia está desmoronando e os choques são iminentes, algo precisa ser feito, e rápido.

Uma das saídas mais viáveis apontadas para promover a sustentabilidade mundial é o avanço tecnológico. A evolução nas tecnologias de produção do papel higiênico, por exemplo, contribuiu para a redução do uso de água e gasto de energia na fabricação, trouxe também padrões, nuances e maciez ao produto, e novas medidas de quantidade na comercialização repercutiram em economia de embalagens, transporte e armazenagem.

E os avanços tecnológicos podem ir além, na Eco-Products[17] de 2013 foi apresentada a White Goat[18], uma máquina que transforma papel comum em papel higiênico. Sua utilização pode transformar todo o resíduo de papel comum em papel higiênico. Já a empresa israelense Applied CleanTech[19] desenvolveu um método para reciclar o próprio papel higiênico usado, esterilizando o material tornando possível sua reutilização; sem dúvida uma ideia revolucionária que poderia produzir cerca de 10% de todo papel utilizado no planeta. Entretanto, o maior entrave na aceitação desses produtos seria o preconceito das pessoas; prova inequívoca de que precisamos mesmo rever nossos conceitos, pois o mesmo homem que cria os problemas, apresenta soluções e também as rejeita pelos motivos mais banais.

A historinha do papel higiênico serviu para ilustrar como cada pequena coisa do nosso cotidiano faz diferença para a sustentabilidade da vida no planeta, a perda das árvores centenárias, a utilização de água, o emprego de alvejantes poluentes para deixar o papel mais branco, a destruição de um recurso de absorção de carbono da atmosfera e habitat insubstituível de diversas espécies ameaçadas de extinção e os resíduos gerados são apenas a ponta do iceberg.

Os valores éticos e morais da civilização humana estão perigosamente em conflito com o valor do dinheiro, do status e do poder. Enquanto for admitido que algumas pessoas possam pagar por um produto, produzido por um capital natural da humanidade, totalmente supérfluo e para uso individual - como é o papel higiênico “super-macio”, e considerarmos “normal” coexistir no mundo algum indivíduo sem sequer ter o que comer, não vemos um futuro para a civilização humana. Tudo está perdido.

No entanto, continuaremos lutando (da nossa maneira) para que as pessoas possam ser valorizadas em sua dignidade e respeitadas por todos.


Notas e Referências:

[1] Ecológica, social, econômica, cultural, espacial, política, tecnológica… Vide obras de Ignacy Sachs, Enrique Leff, José Eli da Veiga, Leonardo Boff, entre outros.

[2] CASTELLAR, Gilherme. A ciência de um rolo de papel higiênico. Revista Superinteressante, 005ª, fevereiro 1988. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cotidiano/ciencia-rolo-papel-higienico-446757.shtml>. Acesso em: 11/05/2014.

[3] Vide obras de Rob Riemen, Ronald Dworkin, entre outros.

[4] Vide publicações de Boaventura Sousa Santos.

[5] CASTELLAR, Gilherme. A ciência de um rolo de papel higiênico. Revista Superinteressante, 005ª, fevereiro 1988. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cotidiano/ciencia-rolo-papel-higienico-446757.shtml>. Acesso em: 11/05/2014.

[6] Vide Platão.

[7] VERSIGNASSI, Alexandre. Crash: uma breve história da economia: da Grécia Antiga ao Século XXI. São Paulo: Leya, 2011.

[8] Capitão Nascimento, para quem não conhece, é um personagem fictício e o protagonista dos filmes policial Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010), ambos do cineasta José Padilha.

[9] MILLER, G. Tyler; SPOOLMAN, Scott E. Ecologia e sustentabilidade. Tradução: Ez2Translate. São Paulo: Cengace Learning, 2012. p. 238.

[10] Disponível em: http://www.fao.org/publications/sofi/en/. Acesso em 20 de setembro de 2014.

[11] http://portalcuriosidades.com/o-papel-higienico-mais-caro-do-mundo/

[12] BAUMAN, Zymunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

[13] http://www.un.org/documents/ga/res/42/ares42-187.htm

[14] Vide Platão.

[15] CASTELLAR, Gilherme. A ciência de um rolo de papel higiênico. Revista Superinteressante, 005ª, fevereiro 1988. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cotidiano/ciencia-rolo-papel-higienico-446757.shtml>. Acesso em: 11/05/2014.

[16] CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006.

[17] http://eco-pro.com/eco2013/english/

[18] http://www.youtube.com/watch?v=i51zo3LA70U

[19] http://www.appliedcleantech.com/


Sem título-6  

Aline Gostinski é formada em Direito, Pós Graduada em Direito Constitucional e Mestranda em Direito na UFSC. Professora de Criminologia e Ciência Política da Univali.

Email: alinegostinski@hotmail.com                                       Facebook: aqui      


 

Sem título-11Antonio Marcos Gavazzoni é formado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), mestre e doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi Procurador Geral do Município de Chapecó e professor na UNOESC, na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina e na UNOPAR. Em janeiro de 2015 assumiu pela terceira vez a Secretaria de Estado da Fazenda do Estado de Santa Catarina, cargo que ocupa até o momento.                       Email: contatogavazzoni@gmail.com


Imagem Ilustrativa do Post: Dwarfs's ass // Foto de: Alessandra De Luca // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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