Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - 09/04/2015
1. Vive-se hoje, como talvez nunca antes na história, a derrocada da fraternidade. Ela não foi - e não é - pieguice da modernidade. Andou, porém, adormecida diante do turbilhão formado pelas discussões que moveram o mundo após a Revolução Francesa (não sem razão), e que diziam diretamente com os seus outros dois pilares-mores: igualdade e liberdade. A virada do mundo, porém, colocou-nos diante da possibilidade de consolidar o seu sepultamento e, sem ela, está à prova a nossa capacidade de não volver ao estado de natureza (Hobbes). Seguir pensando e repensando o cotidiano, sem trégua, em todos os campos do conhecimento, a par de ser o único caminho para uma melhor solução parece ser, para muitos, uma forma de seguir vivendo e sobrevivendo.
Por isto, não há perdão ao operador jurídico, incluso aquele do direito criminal (visto aqui como abrangente dos seus variados ramos), quando não se dá ao labor de revisitar seus temas a partir da nova ótica. Sem isto, forma-se um vazio, marcado sobremaneira pela cegueira dos que se contentam em descrever o mundo a partir do direito positivo e que nos tem levado a caminhar conduzidos pelas mãos dos economistas, em troca de um quimérico bem-estar, inexistente para nós mesmos e para a nossa gente. Eis, então, a razão pela qual é necessário tecer algumas considerações singelas sobre o que se tem passado e, a partir delas, sacar algumas conclusões sobre os dois ramos mais significativos do direito criminal.
2. Há uma nova ordem mundial imposta e impondo-se. Responde ao frenético mundo cibernético mas, por incrível que possa parecer, não consegue fazer desaparecer a velha ordem, sobretudo pela sua própria deficiência interna, da qual a percepção não é tão simples. Vivemos, então, uma luta feroz e se para alguns é certo que o velho morreu, não parece menos certo que o novo, perfeito e acabado, não nasceu ainda, tão-só para relembrar a célebre afirmação de Gramsci. Por enquanto, pelo menos, o que tem sobrado de diferente, de tradicional, de moderno e, por que não de democrático, ainda não foi considerado obra dos Cátaros e, portanto, não se ousou sustentar, no melhor estilo do Papa Inocêncio III, uma cruzada anti-herética; mas é preciso ter cuidado porque não estamos tão longe da barbárie.
2.1. A geografia da nova ordem é a de um mundo globalizado (Santos). Como sói acontecer, rompem-se as fronteiras, em primeiro lugar, em nome das relações comerciais computadorizadas; e do princípio do prazer (Freud), se se olhar por outro ângulo: o homem nunca está e nunca vai estar satisfeito, dado que a satisfação é sempre parcial e incapaz de obturar a sua falta, ou seja, o buraco (negro?) presente na matriz da sua estrutura.
O fenômeno da globalização (ou globalizações, como querem alguns), porém, parece não mais ter retorno, sem embargo dos seus inúmeros inimigos. Bem estruturada na difusão, atinge a todos, mas só faz gozar a poucos, deixando à maioria tão-somente a esperança ou a desilusão, onde, definitivamente, coloca-se em risco.
2.2. A teoria que lhe sustenta é o neoliberalismo. O nome deve-se a Lippmann, mas os fundamentos, no nascimento, estão marcados pela Sociedade de Mont Pèlerin (1947), encabeçada por Hayek, a qual vem fincada na inimizade de morte com o Estado de bem-estar europeu e com o New Deal norte-americano (Anderson).
Embora o radical (neo) pudesse sugerir um novo liberalismo, em suma o que nele se tem é uma negação do verdadeiro pensamento liberal, onde a liberdade não pode ser tomada desacompanhada da igualdade. Agora, o inimigo a ser combatido era – e segue sendo – o excesso de igualitarismo que permeia o Estado de bem-estar, fonte da sua hipertrofia.
Para impor tal teoria/ideologia economicista, como parece evidente, o Estado precisa engolir sua própria ideologia (Borón), negando seus princípios e postulados. Eis a razão pela qual, no início concreto de sua expansão (anos 70 e Tatcher no comando), as poucas vozes que se erguiam em tal direção pareciam de ultradireita e, não poucas vezes, sequer foram levadas em consideração. Mal se sabia o que vinha pela frente, mormente após a queda do muro de Berlim.
2.3. Não se tratava, não obstante o desprezo inicial que sofreu, de mero aparato opinativo. Gente com uma história individual (e complicada) como aquela reunida em Mont Pèlerin, Hayek e Friedman na dianteira, quando colocada em conjunto e, quem sabe, pelo destino, no lugar e tempo certo, pode mudar (ou tentar mudar) o rumo da história coletiva, no mesmo diapasão de Hitler e seus companheiros na Alemanha nazista. A diferença, contudo, está na própria costura pressupostuária, na diferença epistêmica.
Com efeito, Hayek não se contentou em sugerir um combate ao Estado de bem-estar e seus postulados. Foi além, mexendo na base, isto é, substituindo a noção epistemológica de causa-efeito pela de ação eficiente. O câmbio, aqui, não é mero jogo retórico. Paulatinamente incorporado ao cotidiano, projeta-se como um raio no fundamento ético da sociedade. Afinal, a deificação do mercado, quando vista pelo eficientismo, glorifica o consumidor (homo oeconomicus, que substituiu o homo faber: Assman), mas, naturalmente, toma o não-consumidor (excluído), como um empecilho. Ora, para ele resta o desamor de seu semelhante, em um mundo de competição (Miranda Coutinho).
Hayek, assim, combatendo o construtivismo, ou seja, as instituições deliberadamente criadas (por evidente que como frutos da razão e por que não como instrumentos de realização dos escopos da humanidade enquanto verdadeiros limites, desde que objetos de conquista), colocou em seu lugar um mercado que, naturalmente, após os erros dos atores sociais, saberia optar pelas ordens naturais espontâneas mais adequadas. A razão, assim, é incapaz, merecendo tutela por parte de um pai que se mostra psicotizante, ou seja, que em si e ex ante não relaciona seus valores, não elenca seus limites, não comporta uma ética.
Vale, a dita ação eficiente, como fundamento epistêmico; mas não é desprezível porque, para firmar-se, bastaria encontrar ambiente propício como, de fato, encontrou. O resto é jogo retórico, (inter)mediação, discurso. Enfeixa-se a partir daqui, por outro lado, o início do pesadelo neoliberal e, quem sabe, o ponto de partida da sua derrocada posto que, mesmo não sendo ingênuo, subestima o homem e sua capacidade de indignação e resistência.
2.4. Na visão dos neoliberais, o Estado de bem-estar tornou-se um mastodonte e, se por um lado é incapaz de cumprir suas promessas, por outro mantém-se inexplicavelmente metido nas relações individuais, mormente no mercado, donde precisa sair de modo inadiável. É necessário, segundo os arautos desta visão economicista, desmontar esse Estado, rearranjando-o de forma tal que, na nova postura, seja um Estado mínimo.
Para tanto, em um primeiro momento, trata-se de fazer o seu sucateamento. Aquilo que à primeira imagem mostra-se ineficiente – e por algum ponto de vista poderiam ser todos os órgãos –, não é guilhotinado, porque a cena horrenda poderia repercutir mal e representar, nos seus fins, o papel inverso ao que se pretende. Reserva-se-lhe, a partir de uma urdida estratégia, uma infecção mortal, ao ponto de deixar o doente repulsivo aos olhos de terceiros. E aí, sucateado - e pestilento - está no ponto de defecção. Nesta altura, basta pensar nas nossas Universidades Públicas e os orçamentos com que têm convivido (que é o que não se vê, discute ou toma em consideração), motivo maior das suas dificuldades. Hayek, por sinal, sustenta ser função do Estado tão-só aquelas correspondentes à polícia e à caridade, o que é utópico, mas não impossível se nos conformarmos, resignadamente, com as surpresas que nos estão apresentando todos os dias.
Por outro lado, em uma visão macro, a definitiva escalada à demolição da velha perspectiva do Estado veio com a consolidação do independente mercado financeiro global, este sim detentor do poder em um mundo globalizado. Chegou-se a tanto, como parece primário, porque se foi tratando de promover um imenso programa de desregulamentação (deregulation) da economia, onde o ponto alto foi o rompimento das regras do sistema criado em Bretton Woods (1944), para regular a estrutura no pós-guerra. Por ele, todos os países que participavam tinham moedas que mantinham uma paridade fixa em relação ao dólar americano, ao mesmo tempo em que o Banco Central dos Estados Unidos garantia a conversão das reservas em ouro. Era, de um certo modo, um porto de referência (se não seguro) de controle das trocas ou transferências de capital (e de conseqüência, de bens), de modo que permitia e exigia uma administração. Ora, em um mundo global, neoliberal e cibernético, administrar o trânsito de dinheiro e o fluxo de capitais com autorizações prévias e, enfim, fiscalizações dos governos era - e é - mero óbice burocrático, absolutamente indesejável, dado a velocidade das negociações, que deveria ser afastado; e foi. Tudo, sem embargo, de que se sabia dos nefastos resultados, mormente no campo social e nos países periféricos. Não se podia esperar, todavia, que gente preocupada exclusivamente com o ter e não com o ser tivesse olhos para isso. No mais, aquilo que atravessasse - ou atravessar - no caminho (não importando a origem e relevância), deveria ser afastado, removido. Faz-se isso bulindo o Direito e os direitos.
2.5. Apresenta-se o neoliberalismo, no campo jurídico, a partir desta visão, calcada na máxima: "mais sociedade, menos Estado" (Eros Grau). O direito, assim, é um empecilho, não propriamente porque consolida situações, engessando a história, mas porque isso pode significar a impossibilidade da tão almejada eficiência, imprescindível quando tudo passa a ser competição.
Há, por evidente, um desprezo pelo direito, mesmo porque sempre foi, na modernidade, exigência indeclinável a impossibilidade de regresso ao status quo ante quando a questão tratasse de conquistas constitucionais (Canotilho). Mas é principalmente a elas que se trata de atacar na nova ordem, com subterfúgios os mais variados e dentre os quais destaca-se a chamada flexibilização, sempre tão louvada pelos menos avisados. Enfim, estamos em uma situação deveras delicada, mormente quando vozes de relevância não se dão conta - ou não querem dar - da situação, de modo a ser viável relembrar a velha fórmula do abade Lacordaire, de que, em algumas hipóteses, a liberdade escraviza e a lei liberta.
Não se trata, portanto, de voltar ao positivismo, mormente na sua perniciosa face legalista, mas não há que pressupor ser melhor não propriamente um mundo de anomia, mas aquele onde não há espaço para a esperança democrática, para o crescimento do homem, para a sua dignidade, sempre correndo-se o risco de que o discurso do direito é, por excelência, imaginário (Lacan) e, portanto, passível de se desmanchar a partir de um outro lugar, produtor da desilusão, do qual o maior exemplo é a fome.
2.6. Sem embargo do largo espectro do padecimento, pasma como tudo é aceito, admitido e, pior, objeto de marcantes lutas dos próprios sofredores. Há uma recepção quase que natural (Ramalho), como se fosse um objeto que pudesse ser consumido. Trata-se, ao que parece, de articulada cooptação, no melhor estilo nazista. Faz-se da sedução uma arte, brincando-se com objetos do desejo e dando-lhes uma dupla face: satisfazer (sempre parcialmente, porém) aos incluídos e entorpecer (até quando?) os excluídos.
3. Todas as dicotomias que o mundo conheceu não mais se mostram suficientes para dar conta da situação atual. Ricos e pobres; opressores e oprimidos, entre tantas outras, não refletem o eficientismo do pensamento economicista neoliberal. Incluídos e excluídos formam, agora, o resultado da lógica que tudo reduz ao mercado (deificado) e suas regras, onde a preocupação com o lucro, por elementar, desponta.
A nova dicotomia está presente em todos os campos, mas assume, para a análise que nos interessa agora, um especial papel no direito criminal de hoje, razão por que merece ser sempre visitada.
3.1. No mundo globalizado neoliberal, os excluídos são produtos do sistema, mas carregam a culpa de não terem sabido alcançar sua inclusão (Hayek). Incluído, da sua parte, é aquele que está dentro do mercado, consumindo e, de conseqüência, produzindo.
O excluído, por seu turno, sobrevive das migalhas porque, à margem do mercado (é um não-consumidor), coloca-se na condição de descartável e, portanto, no quadro atual, mostra-se como um empecilho, dado continuar demandando pelas necessidades básicas (homo famelicus). À margem do sistema, precisa de uma chance para ajustar-se à nova situação mas, se preferir continuar na marginalidade, pouco há para ser feito (Dahrendorf), quando os olhos devem voltar-se para o futuro e a atuação dirigir-se a criar mecanismos que não permitam a mesma situação em novas gerações.
3.2. A reunião promovida pela Fundação Gorbachev no final de setembro de 1995, no Hotel Fairmont, em São Francisco, na Califórnia, reunindo quinhentos líderes empresariais e políticos, além de cientistas de todo o mundo, resultou em conclusões que são paradigmáticas para a compreensão do que estamos vivendo (Martin/Schumann). A situação dos excluídos, seu futuro e o de todos não foram esquecidos nas discussões; o resultado é trágico, mas realista, não podendo ser olvidado jamais por qualquer um que pense em situar-se na racionalidade neoliberal.
A sociedade 20 por 80 é uma conclusão indescartável à análise. Com efeito, no ritmo em que vão as coisas, no próximo século bastaria 1/5 da mão-de-obra em condições de produzir para dar-se conta da demanda. A economia mundial, globalizada, seria sustentada por 20% dos candidatos a empregos; e os efeitos, por evidente, seriam produzidos em qualquer país. Os outros 80% estariam fora (excluídos) da produção, do consumo e, por conseguinte, do lazer. O sério do problema, como é sintomático, é que os cálculos alteram substancialmente as estatísticas atuais, onde as perspectivas reais da busca de uma vida melhor (com conforto) abrangem um número muito distinto; e contemplam gente em condições de dar-se conta da situação. Ludíbrio é, quiçá, a palavra chave.
3.3. Para tanto, o ex-Secretário de Estado do governo americano, Zbigniew Brzezinski cunha um neologismo: tittytainment, resultado da conjugação das palavras entertainment (entretenimento, diversão) e tits (tetas, seios, na linguagem popular americana). Na base da aglutinação de diversão com amamentação, pelo tittytainment o mundo dos excluídos poderia manter-se satisfeito (Martin/Schumann).
Trata-se, à evidência, de um golpe pelo imaginário. Vai-se levando a situação vendendo-se a ilusão através de fórmulas milagrosas. O problema é que o real pode estabelecer aquilo que os neoliberais não conseguem dar (não conseguem dizer, por exemplo, concretamente, quanto é preciso privatizar), ou seja, um limite, talvez intransponível e, aí, não há imaginário que sustente o sujeito. Contudo, não se trata somente de vender uma ilusão – ou sustentá-la pelo discurso mítico do direito ou seja lá qual for –, mas de colocar o agente diante da situação concreta de "nunca vir a ser" (Miranda Coutinho). Por tal caminho, pode-se chegar a uma catástrofe (Safouan); só não se pode dizer que se não sabia.
3.4. Têm, não obstante, uma crença tão acentuada na força do tittytainement, que não se dão conta que as medidas lançadas a partir do pensamento economicista neoliberal exclui grandes massas, em todos os quadrantes do mundo, mas não consegue eliminar, desde logo, a sua conquista de voz e voto (Martin/Schumann). O perigo, naturalmente, é o mecanismo natural de projeção, que pode levar não só a um retorno ao discurso dos velhos ultradireitistas como, por ele, a se encontrar os bodes expiatórios (Pommier), de imigrantes a migrantes, por exemplo.
3.5. No perímetro da exclusão-tittytainment-cooptação, os neoliberais conseguiram, na globalização, levar o primeiro mundo para dentro do terceiro mundo, mas não se deram conta de que estavam a produzir, também, o caminho inverso. Por evidente que uma proposta (realização) do gênero seduz as elites periféricas e por mais tempo pode, aí, engambelar os excluídos, mas assim não o será nos países centrais, onde houve fundação e há simbólico (Calligaris). Daí não ser uma quimera pensar que os primeiros – ou os únicos – capazes de se livrar do neoliberalismo-globalização sejam os americanos (Martin/Schumann).
3.6. Com efeito, embora a exclusão-proletarização das classes médias americanas seja inferior ao que se tem passado no resto do mundo – e tem mesmo! –, há em curso um processo visível de declínio; e pleno de críticas.
Por outro lado, é inegável que, com ele, tende-se a um aumento da criminalidade. Crime e pobreza nunca foram sinônimos; muito pelo contrário. Mas ninguém duvida que os fatores econômicos são a principal causa de seu recrudescimento. Resta saber, enfim, como cuidar da situação; e a isto devem responder os pensadores do direito criminal.
Seria impossível, neste breve espaço, algo mais que singelos apontamentos, mas alguns, mormente ligados ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal são imprescindíveis, pelo menos para constatar a situação e indicar a direção para onde caminham as linhas de tendências.
No campo do Direito Penal, há décadas vinha-se produzindo a partir de uma realidade que não deixava muitas dúvidas aos mais lúcidos: ele precisava ser mínimo.
4.1.1. Com efeito, o traço individualista do Direito Penal deixou claro que os preceitos primários começaram a não responder adequadamente à tutela dos bens jurídicos (Liszt) às quais estavam dispostos. Ademais, não só a reserva de lei, a tipicidade e a taxatividade são conquistas indeclináveis do cidadão como, por outro lado, desmontam o arbítrio porque funcionam como limitação ajustada, sem embargo da sempre presente manipulação, na via da exegese.
Não obstante, é cediço que se tem, no Direito Penal, uma mera reação secundária, da qual só se deve lançar mão quando os demais ramos do direito mostrarem-se insatisfatórios ou incapazes. Por elementar, não teria sentido buscar solução no campo penal quando a questão pudesse ser solucionada na esfera administrativa, por exemplo.
Assim, facilitou-se o descompasso dada a evidente precariedade (pela lentidão), entre os preceitos primários e a vida de relação, marcada por uma velocidade estonteante e onde os bens jurídicos, quando em confronto os interesses que os envolvem, já não respondem de maneira adequada. O interesse social da propriedade, no âmbito interno, e o descontrole das transferências de vultosas somas de capitais, naquele externo, dão a dimensão, ainda que singela, da inadequação referida.
Do ponto de vista dos preceitos secundários, melhor sorte não socorre o Direito Penal. Depois de muita polêmica, sempre diante do velho patamar, tomou-se como quase certo a polifuncionalidade da pena (Vassali). Afinal, não era outra coisa que o desajuste entre a reação, na sua forma e extensão, e a ofensa aos bens jurídicos tutelados, que levaram a tal conclusão. Denunciou-se, em um pólo, a barbárie da reação pela reação, como negadora da própria civilidade; do outro, constatou-se a falência da pena de prisão, em face das condições inumanas do sistema prisional e impossibilidade de se cumprir qualquer dos seus escopos que não aquele da mera segregação.
4.1.3. O Direito Penal meteu-se em um paradoxo; já não respondem, com exatidão, os seus cultores, para que e para quem há de servir. Com lucidez, então, diante da realidade, pensa-se no direito penal mínimo, porque imprescindível a existência dele, enquanto qualificador de um desvalor de condutas (Welzel), tendo-se em vista a certeza da punição. Poder-se-ia dizer, tão-só para um reforço, que o homem, por sua natureza, demanda a existência da lei (e também da Lei, com maiúscula, diriam os psicanalistas), mormente em um nível de reação que, antes, funciona como preventivo.
Sem embargo, não é pequeno o número daqueles que não vêem qualquer sentido na manutenção de um Direito Penal que, de antemão, sabe-se não responder àquilo a que se presta. Os ditos abolicionistas (Hulsman, o corifeu), assim, não são incoerentes; só não têm razão quando a questão é decidir sobre a necessidade de intervenção do Estado na área.
De outra parte, parece inarredável que se há de demolir o Direito Penal, como pensado até hoje, quando o tema é abranger condutas que estão fora do padrão tradicional, individualista. Nas de pequena lesividade, mostra-se ele demasiado e não é por outro motivo que se falou – e fala – tanto, em descriminalização, quando não em despenalização; nas de grande lesividade, mas onde estão os autores, pelas mais variadas razões (naquelas praticadas através de grandes corporações, a pessoa jurídica na base, por exemplo), além do seu alcance. Aqui, a solução, como têm pensado alguns, seria deixar o Direito Penal exatamente com a dimensão que se lhe deu, porque infrutíferas as tentativas de alteração, buscando-se fundar outro ramo, quiçá entre ele e o Direito Administrativo, ao qual poder-se-ia chamar de Direito de Intervenção (Hassemer).
Trata-se de uma proposta, entre outras, para ser pensada, mas há, hoje, diante do pensamento economicista, uma discussão preliminar, em face do desvario dos pressupostos e da aparente amnésia que assalta alguns ilustres democratas.
O Direito Penal, marcado pela epistemologia neoliberal, entrou, pela (des)razão de alguns, na contramão da história. Salta aos olhos, em um primeiro momento, que se tem confundido eficientismo com impunidade. Da mesma maneira – e por pura lógica –, querem dar ao seu avesso, nos jogos discursivos, a mais dura resposta penal possível. É assim que se sataniza o excluído, sem se questionar nada (as razões que o levaram a tanto, como seria primário, em primeiro lugar), bastando estar o agente naquela situação. Isto é a negação emblemática da civilidade, conquistada, como se sabe, às custas de milhares de vidas. Resta saber, sobre esse lapso de memória, até quando será possível suportar.
Por certo, o tittytainment, enquanto estratégia, é genial, porque socorre a demanda imaginária dos homens, mas não seguirá, ad eternum, levando de roldão àqueles que seguem pedindo para ser enganados. Eles também, por suposto, acabam por encontrar um real que não dá tréguas, pela fome, só para ficar em um dos exemplos. Da mesma forma como sucedeu na Idade Média, com o combate discursivo inicial à heresia não produzindo nenhum efeito (e olhe-se que a hegemonia da Igreja, então, era muito maior que a neoliberal, hoje), é lícito pensar no naufrágio do tittytainment.
4.2.2. O que vem a seguir, como parece sintomático, seria um direito de força, como sucedeu (para continuar na comparação com a situação medieval do nascimento da Inquisição) com o combate à heresia, quando, por uma alteração (manipulação) jurídica, Inocêncio III, pela Bula Vergentis in senium, equiparou aquela atividade com o crime de lesa majestade.
Agora, não obstante, a situação é distinta. Dentro da mesma base legal – e a partir daquela constitucional –, concomitantemente com o tittytainment (e quiçá iludidos por ele), alguns penalistas, até então tidos como democráticos, quando não pios, têm pregado um direito penal máximo: é um verdadeiro terror legal. Integram eles aquele que se convencionou chamar de Movimento de lei e ordem. São, indisfarçavelmente, homens adeptos da ordem pela força, para os quais, em geral, os fins justificam os meios. Cegados (não seria propositalmente, pelo menos para alguns?) pelas imensas dificuldades do cotidiano (a realidade tem sido impiedosa), não têm razão suficiente para colocar-se no lugar do outro, para perceber o diferente, para pensar em fórmulas capazes de resgatar os desviantes e, no final das contas, os criminosos. O dilema, contudo, é que um direito penal máximo não exclui ninguém, transformando todos em delinqüentes, sem embargo de que gente desse porte pensa-se, em geral, intocável, inatingível, esquecendo poder ser vítima da mesma lógica perversa que faz questão de não humanizar esse outro, mesmo ele, se for o caso, no seu próprio tempo.
4.2.3. Assim, a criatura tende a engolir o criador, que não se dá conta de ter produzido uma ameaça constante, a qual pode escapar-lhe do domínio a qualquer momento. Impulsionado por uma ameaça imaginária, lancinante, não consegue ver a ameaça verdadeira, diante de si nas grandes telas dos home theatre. Ora, foi assim que Orwell articulou o Grande Irmão, em 1984, tentando demonstra-nos não ter saída fora da democracia. Pecado, porém, que foi esquecido; ou não foi lido.
Os homens da força, da ordem, da lei (neste sentido), têm servido a um deus que os pode consumir, tão-só não sirvam mais aos seus propósitos de lucro. Há, todavia, dignidade suficiente no Direito Penal e nos penalistas comprometidos com a sua gente de modo a seguir lutando contra a barbárie de um direito penal máximo, mesmo porque poderá não haver perdão para nenhum, caso fracasse o Grande Irmão; e isso não é impossível.
No âmbito de Direito Processual Penal, a situação não é diferente, como parece elementar, não só pela instrumentalidade e mútua relação de complementaridade existente entre ele e o Direito Penal, mas, antes, pela influência direta da epistemologia neoliberal que insiste em pedir passagem (quando já não o fez), mormente quando em questão estão as tão discutidas reformas do processo penal.
Não se fala, hoje, de reformas. Elas já vinham em gestação pelo menos desde 1963 (Projeto Tornaghi), sempre se falando em adequação à realidade e democratização processual. Agora, dentro do pensamento economicista, a velha mentalidade reformadora já não se sustenta, pelo menos com aquelas bases. Ora, para um direito penal máximo não há que falar em democracia processual.
Eis, então, a razão pela qual, hoje, tem-se tanta resistência à mudança daquilo que efetivamente importa: o sistema processual. Por sinal, não se toca em tal tema - e não poucas vezes a sonegação é proposital – porque isso significaria ter que colocar em discussão a questão dos seus pressupostos, a começar por aquela do princípio regente. Tem-se, então, as vezes inconscientemente, a pregação de uma reforma de aparência, de mera maquilagem, sempre a serviço do tittytainment: reforma-se, mas se mantém tudo como sempre esteve (Lampedusa), satisfazendo aos senhores das soluções de compromisso (Cordero).
Por isto, é visível uma nítida tendência de seguir o nosso processo penal sendo essencialmente inquisitório. Por sinal, ele assim o é em função da gestão da prova (Cordero) estar concentrada nas mãos do órgão detentor do poder. Não o salva nem mesmo a retórica afirmação de que temos um sistema misto. Este, em verdade, ontologicamente não existe pois, sabe-se bem, o que vai caracterizar um sistema é o princípio unificador que o rege e, seguramente, porque primário, não há um princípio misto. Para um Direito Penal de força, um processo penal de força, inquisitório. Se fosse diferente, seria de estranhar porque ilógico; pelo menos diante desta lógica, que é neoliberal.
Outra nítida tendência do reformador do processo penal aponta na direção de se ter menos burocracia, ainda que não se saiba bem o que ela quer dizer quando a questão é manter ou não regras de um instrumento tido, ineludivelmente, como um mecanismo de garantia do cidadão. Assim, menos burocracia – para ganhar-se velocidade, naturalmente – pode significar a supressão de recursos; a superação da exigência de certas provas como, por exemplo, o exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios; decisões sem motivações; e assim por diante. Por trás de tudo e à evidência está um pouco caso pelo réu e, de conseqüência, pela necessidade social de certeza quando das decisões. Invocar os erros judiciários (cada vez mais freqüentes) seria despiciendo. A eterna luta entre velocidade (rapidez na prestação jurisdicional: justiça tardia é injustiça, como se diz no jargão popular) e segurança no decidir (tomada muito mais como certeza que como verdade: Carnelutti), por sinal, precisa receber melhor atenção quando em discussão estiver o processo penal. Nele, o interesse coletivo é absolutamente preponderante, mas não no sentido da condenação e sim naquele de se ter uma decisão justa. Destarte, é preciso ter presente que, em nome disto, pode o tempo ter que ser mais longo; e se há de suportar a demora, bastando, para não ser excessiva, um domínio adequado das regras processuais; e boa vontade, para trabalhar e, de outra parte, oferecer os meios necessários ao bom funcionamento dos órgãos: são tantos os exemplos de tal conjugação, mas a magistratura do Rio Grande do Sul talvez seja aquela que melhor possa aqui servir; e se pode funcionar na Justiça gaúcha é, por certo, factível em outros estados do país. Trata-se, porém, de uma luta inglória: se se pudesse condenar sem processo algum, por certo que assim o seria se dependesse dos neoliberais, quando não fossem eles os condenados, naturalmente.
A estrutura tem-se mostrado, essencialmente, como uma luta contra os excluídos, com uma inflação legislativa no âmbito penal, de modo a produzir culpa em todos, sempre delinquentes e, portanto, sujeitos à estigmatização (Becker) pelo crime e pelo processo. Atormentado pela angústia de ser descoberto, o agente procura proteger-se, tratando de transferir aos outros, a culpa que pensa ter. O mecanismo é paranoico e, por evidente, produz suas vítimas, como sucedeu, por exemplo, durante a chamada peste negra em Milão, quando acabou-se por desaguar em um processo terrível (Verri), registrado para sempre na conhecida Coluna Infame.
Produzidos os excluídos, neste campo, quiçá sua única chance de manterem-se no sistema seja através da prisão (Forrester). É imprescindível, antes de tudo, não se permitir que se chegue a tal situação. Para tanto, há que resistir.
A resistência é determinada não pela paixão ao passado ou pela manutenção do status quo (empeçamento do progresso), mas para tratar-se de garantir a efetivação da Revolução Francesa, nos países periféricos - e o Brasil é seu maior exemplo -, de modo a que, depois, possa-se, quem sabe, ter uma crise de terceira idade. Tem-se, enfim, de seguir procurando uma solução, na via democrática, porque ela é “um” sentido possível, em face da comprovada impossibilidade de se ter “o” sentido, perversamente imaginável como factível naquilo que se convencionou chamar de ditadura do objeto. Os direito e garantias individuais continuam representando como que uma reserva de outro, uma individualidade que se não pode sonegar pelo mesmo discurso produtor de fantasmas, como tentava fazer o porco Garganta, a serviço do poder (Orwell).
O preço a pagar para manter-se as conquistas democráticas é não deslizar no imaginário.
O reconhecimento da incapacidade humana feito por Hayek só parece ser um ato de humildade na aparência. Há no seu subterrâneo, uma outra realidade, a qual merece um mínimo de reflexão. Ora, dizer que somos incapazes de ter o domínio cognoscente dos resultados de todas as ações e, portanto, que não poderíamos prevê-las - assim como a ciência-, razão por que haveríamos de ter um racionalismo de caráter eficiente em seu sentido puramente empírico, é ignorar a humildade com a qual nos apresentamos diante do desconhecido. De fato, ao revés de ser um ato de grandeza (sei que não sei tudo!), é simplesmente um ato de aparente esperteza mas, no fundo, ao que parece, psicótico porque paranoico, desde que o naturalismo do mercado é tomado, ainda que imprevisível, como real possível e decisivo para apontar qual ordem natural espontânea deveria reger a sociedade porque mais eficiente. Há, por evidente, nesta miragem neoliberal, uma crença em uma verdade Toda, mercadológica, que não permite qualquer furo, qualquer falta. Sem ela, como parece elementar, não há representação da pulsão; sem esta, não há limite; sem limite, não há desejo; sem desejo, há mero deslizar no imaginário, como diria Lacan (Miranda Coutinho).
O pensamento economicista neoliberal consome a ética; e sem ela o homem consome a si mesmo.
Olhando para si, não consegue se reconhecer, enquanto eu, como um estrangeiro e, assim, não oferece uma chance ao Outro (Lacan) que ali está, como centro ineliminável, diga-se de passagem como sempre esteve, desde o início.
Olhando para seu semelhante, não consegue perceber-lhe a diferença, enquanto substancialmente diferente. Anula-se o outro que, não raro, demanda essa anulação.
Resistir, neste ponto, é sustentar uma ética da alteridade (Dussel), onde o outro – e o Outro – sejam levados em consideração nas suas efetivas dimensões.
*. Texto especialmente preparado para o VII Encontro Internacional de Direito da América do Sul, realizado em Florianópolis, Santa Catarina (1998).
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.
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