O papel do direito nas crises humanas da pós - modernidade

13/09/2017

Por Cristina Aguiar Ferreira da Silva - 13/09/2017

1. INTRODUÇÃO 

Ao longo dos anos, apesar dos grandes avanços obtidos pela humanidade, é crescente o número de problemas que estão sendo criados e que põem em risco a própria manutenção da vida humana. Se por um lado, o desenvolvimento tecnológico trouxe mais conforto para a sociedade; de outro, tornou o homem escravo de seus próprios inventos.

Com isso, cada vez mais é aumentada a individualidade, buscando-se somente o que é suficiente para garantir a si conforto e bem-estar, mesmo que os demais membros da sociedade estejam passando por situações degradantes. A solidariedade entre os homens parece ter se perdido em meio a suas próprias ilusões do que é uma vida boa: não se constroem mais relações, apenas patrimônio e riqueza.

A ausência de preocupação com o outro acarreta ainda o descaso com as gerações futuras: o meio-ambiente está sendo fortemente degradado; anualmente a temperatura do planeta terra está subindo, o que gera desastres naturais nos mais variados países e possibilita o aparecimento de novas doenças.

Em contrapartida, os países mais ricos gastam inúmeras quantias de dinheiro na elaboração de armas mortais; enquanto em outros continentes a pobreza é arma de extermínio de populações inteiras.

Nesse contexto, surge a dúvida quanto ao papel que o direito assumirá na tentativa de tornar as relações mais equânimes e justas. Para isso, contudo, o direito precisará, necessariamente, se redescobrir, criar novas alternativas, identificar novamente a sua importância como instrumento de solução dos mais difíceis problemas humanos.

A grande dificuldade é achar um meio de que, na tentativa de auxiliar a humanidade em um de seus momentos mais críticos, o direito consiga se reinventar e assumir, de forma eficaz, o papel importante que tem.

2. OS PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS

2.1 O domínio da técnica

Com o avanço tecnológico o welfare state, tão cultuado pelos norte-americanos, passou a ser o objetivo de vida da humanidade como um todo. Não se busca mais a sabedoria, o conhecimento, as virtudes, mas sim bem materiais que venham substituir as angústias e dúvidas existenciais.

Se a vida perde o sentido, na atualidade, ela pode ser rapidamente recuperada por um bem eletrônico novo, que gera uma alegria instantânea e passageira, até a aquisição de um novo produto. E assim como eles são adquiridos, eles são descartados.

Possuir bens de última geração é demonstração de status social, de grandeza. Enquanto na antiguidade as pessoas com mais idade eram procuradas por sua sabedoria e experiência; no mundo contemporâneo, são tratados com descaso. Afinal de contas, na nova concepção, não estão aptas a viver neste mundo em que a tecnologia tomou conta das relações e que o tempo é consumido com uma voracidade nunca antes vista.

Antonio Nedel aborda o tema de forma clara ao dizer:

O mundo moderno, fundamentado no princípio libertário de uma subjetividade individualista, promoveu uma ruptura com o autoritarismo dogmático da metafísica medieval, propiciando a emergência de uma nova civilização, logicamente estruturada a partir de critérios racionais e científicos.

Mas paradoxalmente, foram as luzes que trouxeram a escuridão, pois os avanços científicos viabilizados pela racionalidade moderna é que engendraram o hipercientificismo que hoje impõe o domínio da técnica sobre a vida, reduzindo-a, pragmático-instrumentalmente, ao determinismo mecânico ditado pela lógica das máquinas.[1]

Nesse contexto, uma das mazelas vividas, que de certo modo leva às outras que serão também trabalhadas, é chamada pelo autor como “o domínio da técnica sobre a vida”. Obviamente que com isso não se quer afastar os importantes avanços que a ciência e a técnica trouxeram para a vida humana, mas sim identificar que elas devem ser um recurso em apoio ao homem e não o contrário.

Da preponderância da técnica surgem outros problemas como, já mencionados, como a perda do sentido e a degradação do meio ambiente, que serão melhor trabalhados na continuidade.

2.2. Da perda do sentido

Com a diminuição da preocupação com os fatores mais intrínsecos da vida humana, e com o domínio da técnica, os indivíduos perderam o interesse pelas questões metafísicas. Disso decorre um quadro de alienação, em que os comportamentos pré-estabelecidos são regra e que não se busca a reflexão do novo: são as chamadas sociedades de massas[2].

Essa situação cria, como bem conceituado por Ricardo Timm de Souza, o “’automatismo’ da vida”, exemplificado pelo filme Tempo Modernos de Chaplin[3]. Nas palavras do mesmo autor, em outra obra, o individualismo assume ainda a figura da solidão:

Sem dúvida, temos aí uma dimensão significativa da vida super-moderna. Esta é uma alternativa bem tentadora a precárias individualidades, a indivíduos falhados em sua auto-manutenção humana. E é, acima de tudo, um fato facilmente constatável que tal se dá; basta ver a espantosa proliferação mundial da literatura de auto-ajuda. Quem procura a auto-ajuda desistiu provavelmente da “hetero-ajuda”, ou seja, em outros termo, descobriu-se definitiva e dolorosamente só.

A questão é, agora, descobrir até que ponto esta dimensão – a massa de solidões infinitamente multiplicadas – conforme um maciço absolutamente hegemônico, ou seja, sem possibilidade de falhas ou rupturas, ou, dito de outro modo, até que ponto se pode pensar que ela traduza da melhor forma possível aquilo  que poderia vir a significar algo como a face sócio-cultural visível do “pós-modernismo”.[4]

Essa solidão institui um vazio que resulta na perda dos valores e virtudes mais básicas e uma baixa assunção da responsabilidade sobre o próprio futuro e o da sociedade. Não se sabe, assim, onde se está, e para onde se vai.

A busca do sentido tem como premissa a identificação do homem e seu papel no mundo, a criação de valores e preocupação com os outros, a consolidação de virtudes e condutas. Passa, necessariamente, pelo reencontro com sua espiritualidade e pela reconciliação com a sociedade[5].

2.3 A degradação do meio-ambiente

Outro problema que vem sendo enfrentado com mais força na atualidade é a grande degradação ambiental. Junto com a despreocupação com os outros, decorrentes da perda do sentido, veio o descuido com o mundo que se deixará para as próximas gerações.

Isso é conseqüência também do domínio da técnica, que para o seu aprimoramento, subjugou tudo e todos. Em defesa do desenvolvimento, desmataram-se matas nativas, poluíram-se rios, aumentou a emissão de gases tóxicos. A pergunta que fica é a quem servirá a tecnologia quando, para seu progresso, a própria humanidade for extinta?

A questão do meio-ambiente se não for tratada com o cuidado necessário acarretará, antes mesmo do que se pensa, a término dos recursos naturais existentes.

3. O PAPEL DO DIREITO NA SOLUÇÃO DOS PRINCIPAIS CONFLITOS DA PÓS-MODERNIDADE

Diante dos dilemas trabalhados, cada vez mais comuns na vida contemporânea, o direito surge como um instrumento de solução de conflitos. Para isso, no entanto, deve vencer primeiramente a sua própria crise.

Essa crise decorre, essencialmente, do fracasso do racionalismo positivista como método de aplicação do direito. Certo é que o sistema baseado em normas pré-estabelecidas, muitas vezes, inaplicáveis ao caso concreto e extremamente influenciado por fatores externo, em especial econômicos, não pode alcançar seu fim de justiça.

Niklas Luhmann[6], em sua teoria dos sistemas, propõe que o sistema do direito tenha como centro os Tribunais. Na periferia ficaria a legislação e a doutrina. Por essa teoria, o sistema somente teria contato com os sistemas externos (econômico, político, religioso, etc.), pelo acoplamento estrutural[7], naquilo que o eles pudessem se adaptar às regras e limites do direito.

Em que pese essa teoria apresentar alguns problemas de objetivo, já que não visa a justiça, mas apenas sua auto-reprodução, a separação das influências externas, ou sua análise mais crítica, pode viabilizar, por conseqüência, decisões mais adequadas.

Outra contribuição da teoria proposta por Luhmann, que pode auxiliar o direito a encontrar novamente seu rumo é a necessidade de que os Tribunais precisariam de uma organização interna, que tornasse suas decisões eficazes, com o risco de erro dentro de um mínimo aceitável. Além disso, deveria haver uma qualificação dos juízes e uma preocupação com sua carreira[8].

Em sentido bastante distinto, Antonio Nedel, entende que o direito deveria perder seu foco no racionalismo-positivista para migrar a prático-pragmática, conforme se depreende de suas palavras abaixo transcritas: 

Como este estudo procurou demonstrar, a idéia de direito na tradição da cultura ocidental, desde os seus primórdios, fundamentou-se nos princípios transcendentais da metafísica.

O positivismo jurídico, ao tentar libertar-se dela, reafirmou-a radicalmente, ao reduzir a normatividade jurídica na objetificação dogmática da sua entificação positiva.

Dessa redução científico-neutral, derivou uma metodologia jurídica alheia às contingências práticas da realidade social, que suprimiu a autonomia do direito e transformou-o tecnicamente em instrumento de dominação política.

Assim, contrariando a sua motivação onto-gnoseológica, a ilusão metafísica do positivismo, ao tentar concretizar uma lógico-formal certeza metódica, desvirtuou a práxis judicativa da intenção prático-normativa do direito em favor de uma abstração teorética.

A crise do relativismo pós-moderno evidencia radicalmente o equívoco positivista e impõe ao pensamento ao pensamento jurídico a busca de alternativas críticas que tenham a consciência de que a essência do problema jurídico não é lógico-sistemática e, sim, prático-problemática.[9]

As duas linhas propostas encontram seguidores. Contudo, parece que a reconstrução do direito passaria pela intersecção das duas correntes pela construção de algo que atenda as reais necessidades da sociedade e a auxilie a sair da crise fortemente instalada com a pós-modernidade.

No entanto, se o direito decorre da vida em sociedade, certo é que a crise desta gerará nefastos resultados no próprio direito. A perda do sentido não é privilégio – se assim se pode dizer – da pessoa, mas também da ciência jurídica. O mesmo ocorre com o domínio da técnica.

Por essa razão, a que tudo indica, o direito deve encontrar, em seu caminho de redescobrimento, os instrumento necessários para ser eficaz, evitando-se o máximo a chance de erros; buscando no caso concreto o direito mais justo para aquele conflito; utilizando-se da norma como precedente, mas não como única opção.

E os operadores nesses casos devem estar aptos para conduzir de forma célere as decisões e os processos, baseados em princípios éticos e de forma prudente. Para isso, deve ocorrer uma qualificação jurídica e, principalmente, filosófica, para que se permita o aprofundamento das questões humanas.

Esse deve ser o papel do direito, ser instrumento de pacificação social e de realização da justiça.

4. CONCLUSÃO

A identificação dos principais problemas da humanidade na pós-modernidade permite uma reflexão sobre o papel de cada um tem no futuro da sociedade e na qualidade de vida.

O domínio da técnica, mal dos últimos séculos, tornou o ser humano escravo de sua própria criação e gerou-lhe a perda do sentido. Esta, por sua vez, se caracteriza pela falta de identificação da pessoa com ela mesma e o não respeito ao próximo.

Disso tudo decorre o fato da não preocupação com o meio ambiente em que se vive, o que gera sua degradação de forma incontrolável, acarretando risco à própria manutenção da vida na terra.

Nesse contexto de caos, o direito necessita encontrar alternativas para se reinventar, de forma a estar apto a decifrar as situações hoje vividas e atingir seu fim precípuo: a pacificação social. Para isso, devemos refletir mas sobre a sociedade em que vivemos e que futuro pretendemos construir.


Notas e Referências:

[1] NEDEL. Antonio. Uma tópica jurídica: clareira para a emergência do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.p. 283.

[2] Como bem esclarece Hannah Arendt, “o surgimento da sociedade de massas, pelo contrário, indica apenas que os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única, tal como as unidades familiares haviam antes sido absorvidas por grupos sociais; com o surgimento da sociedade de massas a esfera do social atingiu finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla, igualmente e com igual força, todos os membros de determinada comunidade. (ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 50)

[3] SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 51.

[4] SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e Alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: PUCRS, 2000. p. 158.

[5] As barbáries cometidas ao longo dos séculos foram cruciais para a perda do sentido. Certo é que para sua recuperação mostra-se necessário a identificação das situações que a causaram e o reconhecimento sofrido pelas vítimas. Sobre este tema relacionado ao holocausto, sugere-se a leitura do livro, de Reyes Mate, Memórias de Auschwitz. (REYES, Mate. Memórias de Auschwitz: Atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005).

[6] LUHMANN. Niklas. El derecho de la Sociedad. México: Universidade Iberoamericana, 2002.

[7] Essa seria a idéia de que o Direito é um sistema paradoxal, uma vez que é fechado e aberto simultaneamente. Sobre o tema, Leonel Severo Rocha esclarece:

“Qual é a noção a partir daí que podemos ter um sistema que é ligado ao passado e ao futuro simultaneamente, que lida com a idéia de paradoxo? Chamamos isso de autopoiesis. O sistema autopoiético é aquele que é simultaneamente fechado e aberto, ou seja, é um sistema que tem repetição e diferença, tendo que equacionar no seu interior esse paradoxo, que os operadores do Direito vão usar como critério para tomar decisões.

Assim, a idéia de autopoiese surge como uma necessidade de se pensar aquilo que não poderia ser pensado. É um sistema que não é fechado nem aberto. Por quê? Porque um sistema fechado é impossível, não pode haver um sistema que se auto-reproduza somente nele mesmo. E um sistema aberto seria só para manter a idéia de sistema. Se falamos em sistema aberto, já nem falamos mais em sistema, podemos falar de outra coisa. Então, o sistema fechado não é possível, o sistema aberto é inútil. Há, aqui, então, a proposta de que, existindo um critério de repetição e diferença simultânea, temos uma idéia de autopoiese.” (ROCHA, Leonel Severo [et al.]. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 38).

[8] LUHMANN. Niklas. Op. Cit. p. 391.

[9] NEDEL. Antonio. A ilusão metafísica do positivismo jurídico. Constituição Sistemas Sociais e Direito. Anuário 2007. n. 4. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 166.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

BRASIL. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Relatório PRODES 2008. Disponíveis em: <http://www.obt.inpe.br/prodes/Relatorio_Prodes2008.pdf>. Acesso em 26 de julho de 2009.

NEDEL. Antonio. A ilusão metafísica do positivismo jurídico. Constituição Sistemas Sociais e Direito. Anuário 2007. n. 4. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

___________. Uma tópica jurídica: clareira para a emergência do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

REYES, Mate. Memórias de Auschwitz: Atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.

ROCHA, Leonel Severo [et al.]. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e Alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: PUCRS, 2000.

____________. Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008.


Cristina Aguiar Ferreira da SilvaCristina Aguiar Ferreira da Silva é Advogada. Doutoranda em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Pós-graduada em MBA Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Atuou como professora em cursos de graduação e atua, como professora convidada, em cursos de Pós-graduação. Foi Conselheira suplente do Conselho Nacional da Previdência Social - CNPS e do Conselho Nacional dos Dirigentes de Regimes Próprios de Previdência – CONAPREV e comentarista das sessões plenárias do STF ao vivo na Rádio Justiça.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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