Por Antonio Marcos Gavazzoni - 06/04/2015
"[...] como todos sabem, infraestrutura não é apenas uma questão de estradas, escolas e redes de energia. É também uma questão de fortalecer a governança democrática e o papel do Estado. Sem responsabilidade, não só do governo para com seu povo, mas das pessoas umas com as outras, não há esperança de um Estado democrático viável."
Ban Ki-Moon (2009)
As promessas de um desenvolvimento amplo, inclusivo e equitativo não são compatíveis com a preponderância dos aspectos econômicos e tecnológicos da crise socioambiental que o mundo enfrenta. (LIMA, 2003) O mercado econômico acaba se sobrepondo até mesmo na condução da sustentabilidade, deixando de lado os anseios do poder público e também da sociedade civil.
É neste momento que a governança vem para retomar as rédeas da situação e buscar um novo modelo de gestão, pautada no governo democrático, legal, inclusivo e participativo. Onde a sociedade possa se reconhecer no governo e a gestão pública seja um baluarte da sustentabilidade.
A crise do Estado e do Direito é um necessário ponto de partida para a reflexão a respeito da governança pública. O fenômeno da globalização tem gradativamente transmudado a estrutura do aparado estatal. O Estado soberano moderno, visto como ator privilegiado no cenário internacional, agora divide espaço com novos jogadores. A soberania passa a ser fragmentada, e a tomada de decisão pública passa pela consideração a questões econômicas ditadas pelo mercado.
Baumann (2007, p. 62) neste sentido explica que:
Muita água rolou sob as pontes da Europa desde o Sturn und Drag Period da construção do Estado-nação moderno. O que então foi meticulosamente montado agora está se fragmentando, ou sendo fragmentado. A soberania do Estado, antes indivisível, agora está sendo fatiada em pedaços cada vez mais finos e espalhada por todo o espaço continental ou mesmo planetário. Nenhum Estado ousa ou deseja reivindicar plena autoridade sobre sua capacidade defensiva e sua ordem jurídica, ou sobre a vida cultural e econômica da população que habita o território. A soberania do Estado, que era vista como completa e integral, se evapora para o domínio superior das forças globais fugindo da lealdade e do compromisso territoriais, escapa pelos lados para os campos de caça cada vez mais desregulamentados e inadministráveis dos mercados financeiros e das comodities, e escorre por baixo para os worshops privados da vida política que estão assumindo (ou recebendo como encargo) as tarefas e preocupações cujo gerenciamento era reivindicado pelo Estado, o qual prometia, e tentava, cuidar.
Segundo Baumann (1999, p. 64-65), há uma nova ordem mundial pautada pela movimentação globalizada do capital. O Estado-nacional passou a se relacionar com forças modeladoras transnacionais que são em boa parte anônimas e de difícil identificação. Estas forças exercem um papel erosivo e desagregador no âmbito do Estado. O controle da política econômica não está mais exclusivamente nas mãos dos mandatários públicos. Passa também pela relação com os players que jogam permanentemente no mercado.
Esse deslocamento de posicionamento de poder político, antes concentrado nos chefes dos Estados nacionais que gozavam de certa exclusividade, e agora compartilhado ou transposto aos jogadores do mercado, com influência transnacional, possui implicações importantes. A política passou a sofrer grande interferência da economia, e o rumo do desenvolvimento dos países precisa levar em consideração os acontecimentos econômicos e não-econômicos nas outras partes do globo.
Na nova ordem global, categorias tão caras ao Estado-nação como civilização, desenvolvimento, convergência, consenso, burocracia, universalização, passaram a ter pouco significado. (BAUMANN, 1999, p. 67) Aquela ideia liberal moderna de ideologia redentora, de transformação do mundo para melhor, de foco no futuro, passa por manifesta transformação. Há, na lógica globalizada, uma mudança na compreensão tempo/estado, com expansão do presente e rompimento com a crença em narrativas ideológicas que marcaram o período revolucionário.[1] Agora não sem pensa mais, de modo geral, em transformar o mundo no futuro. A regra é a do excesso, do consumo, da descartabilidade, da busca pela felicidade instantânea. A política e o comportamento humano passaram a ser pautados também por esses novos princípios da contemporaneidade.
Nesse novo formato das relações humanas - políticas, econômicas, sociais, entre outras - a dualidade local-global surge de maneira diferenciada, alterando o posicionamento tradicional das fronteiras estatais. Segundo Baumann (1999, p. 08) “o que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel”. O fenômeno da mobilidade é marcante nesse processo globalizante. No entanto somente alguns se tornam verdadeiramente globais, enquanto outros se fixam em sua localidade, de forma a serem desagregados, preteridos pelo movimento global.
Para enfrentar o tema da governança pública é preciso considerar o modo através do qual os administradores públicos, de regra, entendem a interconexão entre desenvolvimento e economia. Esse imbricamento é central, eis que o desenvolvimento econômico, desde há muito tempo, tem se tornado norte balizador das políticas públicas e das estratégias de gerenciamento administrativo.
Para entender esse contexto, refere-se aqui à tese do “desenvolvimento como liberdade” de Sen (2000). Em seus estudos, o autor oferece grande contribuição para a superação da visão clássica de desenvolvimento econômico, legado das concepções modernas da economia liberal, ainda atreladas a uma concepção reducionista e determinista quanto ao comportamento humano frente aos estímulos provocados pela movimentação da economia.
O entendimento tradicional de desenvolvimento econômico normalmente levava em consideração os números de riquezas produzidas por cada país, o Produto Nacional Bruto (PIB), o aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social, desconsiderando outros elementos sociais e políticos para a aferição e valoração do quantum desenvolvimentista de determinada comunidade. Esta concepção é tributária à lógica liberal retomada especialmente no século passado, que não reconhecia, de regra, demandas sociais como uma obrigatoriedade a serem atendidas pelo Estado. Refere-se à política mínima de Estado, em que se defende a tímida intervenção do Estado na sociedade civil.
Ocorre que, nesta visão tradicional, as distorções em relação ao que se buscava no sentido de desenvolvimento econômico eram muitas – e com consequências graves. Sen (2000, p. 09) lembra que ao longo do século passado e início deste século o mundo mudou em muito, especialmente na esfera social e econômica. O fenômeno da globalização interligou as várias regiões do planeta criando uma nova dinâmica nas relações humanas, e os conceitos de direitos humanos e de liberdade política assumiram nova dimensão, tornando-se categorias recorrentes na retórica prevalente em sociedade. De outra parte, a exclusão social assumiu proporções extraordinárias. Como sintetiza o autor, “existem problemas novos convivendo com antigos”.
Ao lado de certo desenvolvimento econômico de alguns setores da sociedade civil, em parte acarretado por esta nova dinâmica de movimentação do capital, convive-se ainda, explica Sen (2000, p. 09), com a persistência da pobreza, fomes coletivas e crônicas, violação de liberdades políticas elementares, negligência em relação às mulheres, e afronta permanente ao meio ambiente.
Sen (2000, p.10), com olhar inovador, aponta que o solucionamento ou abrandamento desses problemas acima citados devem ser o objetivo central de um verdadeiro processo de desenvolvimento econômico. Torna-se importante, segundo o autor, reconhecer o papel das diferentes formas de liberdade para serem utilizadas como instrumental de combate a esses males. Seria preciso, para obter êxito nesta empreitada, “considerar a liberdade individual como comprometimento social”.
No que toca ao desenvolvimento econômico como liberdade, Sen (2000, p. 21) faz uma análise pontual e importante para os fins desta pesquisa, e que diz respeito ao papel e implicações da instituição chamada “mercado”, ele afirma que não se pode ser “genericamente contra os mercados”, e que isso soaria estapafúrdio. Explica que o mecanismo de mercado para o crescimento econômico é obviamente importante, mas que viria “depois do reconhecimento da importância direta da liberdade de troca – de palavras, bens, presentes”.
Ainda explica que:
É difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de empobrecer – a vida humana. A abordagem aqui adotada propõe um modo mais amplo e mais inclusivo de ver os mercados do que o frequentemente invocado, seja para defender, seja para criticar o mecanismo de mercado. (SEN, 2000, p. 22)
O que se percebe é que mesmo não concordando in totum com o modelo político-econômico vigente, Sen (2000) faz concessões e não vislumbra alternativa que esteja fora do ambiente forjado pelo regime democrático-liberal-de mercado. O autor aceita ‘jogar o jogo’ a partir das regras existentes, tentando propor ajustes ao sistema que possam ser capazes de avançar numa retomada de rumos. O autor se opõe aos excessos do modelo neoliberal, e contraria a doutrina clássica que parte de uma visão comportamentalista determinista, de inspiração em um darwinismo social já superado e sem qualquer sentido nos dias de hoje.
O autor procura com sua proposta reposicionar o ser humano nas análises econômicas, de modo que seja reconhecido, em sua autonomia e liberdade, como ponto central para a tomada de decisões. A proposta do câmbio interpretativo em relação ao sujeito, especialmente quando o autor fala em “expansão da liberdade” está em superar a visão solipsista, individualista, e egocêntrica, própria da relação sujeito-objeto, por uma concepção que reconheça a importância das relações intersubjetivas, comunitárias, enaltecendo valores sociais, na lógica sujeito-sujeito.
A concepção tradicional de liberdade econômica dos clássicos de que, através de mercados livres, qualquer cidadão poderia alcançar o seu desenvolvimento econômico, sabe-se, não é de todo verdadeira. Especialmente se se levar em consideração as relações econômicas na arena internacional e o tratamento dado aos países periféricos pelos centrais. Sen (1999), por outro lado, não defenderá a presença excessiva do Estado em sociedade para garantir todas as necessidades sociais. O autor busca o equilíbrio, contrariando excessos dos dois lados (Estado e mercado). Ele acredita que um novo olhar da economia para as relações humanas - que possa, por exemplo, aproximar a economia da ética, como fora no passado antigo -, seria capaz de amenizar as mazelas humanas com as quais se convive de longa data e que só fazem recrudescer.
Pereira (2009) acredita que no cenário atual, os elementos sustentáveis servem de alavanca para “a promoção social, econômica e cultural do ser humano, na forma de gerenciamento para a utilização de recursos naturais e/ou culturais de um local ou região, mediante o envolvimento da população e participação de diversos parceiros institucionais”.
Já não se trata mais de uma ameaça às gerações futuras, os efeitos devastadores do desequilíbrio social, econômico e ambiental estão sendo sentidos aqui e agora. No capítulo anterior viu-se a situação dramática do Estado catarinense em determinados setores que vão de encontro aos objetivos sustentáveis e clamam urgentemente por medidas sanatórias.
Como coloca Almeida (2007, p. 02), é preciso transmitir o senso de urgência requerida para enfrentar a tragédia socioambiental que ameaça a continuidade dos empreendimentos humanos, tragédia resultante de um desenvolvimento anacronicamente predador em termos sociais, ambientais, e da ação de lideranças mal informadas e muitas vezes mal-intencionadas também.
Muito mais do que discursos e declaração de princípios é preciso ultrapassar o nível da retórica e promover, como assevera Almeida (2007, p.04), uma ruptura planejada, porém radical; entendendo que se trata de uma ruptura nos relacionamentos, no modo de operar, pensar, aceitando que os recursos naturais devem ser preservados, que os negócios devem incluir os pobres e miseráveis, e que a ética pode trazer ganhos econômicos.
Somente com uma mudança profunda na mentalidade e nas atitudes de líderes formadores de opinião e gestores públicos poder-se-á buscar formas de incorporar rapidamente as práticas sustentáveis obtendo resultados rápidos e significativos.
Notas e Referências:
[1] Revoluções ideológicas ocorridas no século passado, marcadas pela influência do pensamento socialista. Vide: LYOTARD, François. A condição pós-moderna. 9.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
Antonio Marcos Gavazzoni é formado em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), mestre e doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi Procurador Geral do Município de Chapecó e professor na UNOESC, na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina e na UNOPAR. Em janeiro de 2015 assumiu pela terceira vez a Secretaria de Estado da Fazenda do Estado de Santa Catarina, cargo que ocupa até o momento. Email: contatogavazzoni@gmail.com
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