No dia 01 de dezembro de 2022 a Folha de São Paulo publicou um texto intitulado: “Nós, mulheres, não somos apenas 'pessoas que menstruam': Mesmo com a pretensa ideia de querer incluir homens trans, termo apaga a realidade concreta das mulheres” escrito por Djamila Ribeiro para sua coluna. O conteúdo provocou uma enorme mobilização de pessoas trans*, não-binárias e intersexo indicando a discriminação e violência contida no artigo.
A autora não é a primeira pessoa a apresentar esse ponto de vista e não será a última. Faz parte da estrutura racista e sexista da sociedade que ela tenha recebido diversas agressões pessoais em suas redes sociais e que haja um ataque mais forte sobre suas falas. De todo modo, também é uma pessoa muito admirada que decepcionou muitas pessoas, como nós, e coloca para mulheres a tarefa de serem transfóbicas se buscarem apoiar o movimento feminista negro, do qual Djamila é uma grande contribuinte na academia e luta no Brasil.
Admiramos Djamila que, inclusive, editou o livro de Letícia Nascimento intitulado “Transfeminismo”, dentre diversas formas que ela avança o transfeminismo ao aprofundar os olhares interseccionais das opressões e tratar do feminismo negro. No entanto, é impossível ignorar que após o texto da coluna e a repercussão de inúmeras pessoas do movimento social e pensadoras trans* didaticamente explicarem o motivo da fala ser violenta, ela ter reafirmado sua posição e diminuído quem a rebateu.
O termo “pessoas que menstruam” é uma construção para que se identifique o público de políticas de saúde, isto porque não são apenas as mulheres cisgênero que menstruam, podendo pessoas não-binárias, homens trans, pessoas intersexo e inúmeras outras identidades de gênero menstruarem, assim como não devemos ignorar que muitas mulheres não menstruam, por exemplo mulheres trans, travestis ou mulheres cis que não têm útero, mulheres na menopausa, mulheres que tomam pílula anticoncepcional, dentre outras possibilidades. Assim, quando pensamos na saúde ginecológica e obstétrica, precisamos considerar essas variedades, já que a questão ali é de definição de política pública ampla e não de definição do que é ser ou não mulher.
Djamila fala sobre “a importância de se refutar essa tentação de universalidade que apaga diferentes formas de ser mulher” e de não reduzir a mulher a características biológicas. No entanto, justamente, se não podemos universalizar o que é ser mulher, então não podemos usar essa categoria como a única destinatária de políticas públicas de saúde de quem tem útero, menstrua, tem ovário ou gesta. Djamila parte de uma premissa errada, já que não queremos substituir uma categoria por outra, elas não são sinônimos, não representam o mesmo grupo social e não têm o mesmo objetivo. “Pessoa que menstrua” não é uma categoria identitária, mas um para se agrupar pessoas com tal condição e a elas destinar uma certa política pública.
Vergueiro (2018) entende que precisamos usar categorias na medida em que elas são úteis e potentes para produzir resistência, em vez de como uma preocupação definitiva. Reconhecer diferenças faz parte de identificar armadilhas e violências enfrentadas pelas sujeitas (LORDE, 2019).
O problema de substituir essa expressão por “mulheres”, o que acontece já na maioria dos locais, é ignorar a vulnerabilidade social que essa expressão contempla. O transfeminismo, que tanto aprendeu com as construções do feminismo negro, demonstra o gênero como potencial conceitual e político em sua desessencialização e desnaturalização do que se entende pelos marcos biológicos que justificam a cisgeneridade (NASCIMENTO, 2021).
Não evidenciar a cisgeneridade faz parte de um projeto colonial que desumaniza corpas fora de uma norma, colocando a norma como coerente e inteligível, interditando a identificação de corpas dissidentes (BAGAGLI, 2014). Do mesmo modo, quando crio políticas públicas de saúde para mulheres, não para pessoas que menstruam, apagamos a realidade dos demais grupos que menstruam e, muitas vezes, impedimos seu acesso a esses serviços. A cisgeneridade passa a ser a única que acessa essas políticas, e isso faz parte da cisnormatividade.
Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio. A não-marcação é o que garante às posições privilegiadas (normativas) seu princípio de não-questionamento, isto é: seu conforto ontológico, sua habilidade de perceber a si como norma e ao mundo como espelho. Em oposição a isso, “o outro” é hipermarcado, incessantemente traduzido pelas analíticas do poder e da racialidade, simultaneamente invisível como sujeito e exposto enquanto objeto (MOMBAÇA, 2016, p. 11).
Vergueiro (2018) entende que a cisnormatividade tem 3 traços analíticos, a pré-discursividade, a binariedade e a permanência, e todos eles estão presentes quando usamos apenas a categoria “mulheres”. Por esses três traços, entendemos que gênero será dividido em duas categorias opostas, homem e mulher, que assim nascem por uma verdade natural diante de critérios objetivos e características corporais, seguindo uma naturalidade que viabiliza a reprodução da espécie e regerá as normas regulatórias de gênero.
O que nomeamos como sexo biológico ou sexos anatômicos são efeitos discursivos do gênero que produzem uma materialidade (MELLO, 2022). A biologização de que trata Djamila, na verdade, se dá pela atitude contrária, que seria cisnormativa, de restringir o ser mulher como unicamente às pessoas que menstruam. Do mesmo modo, existe a categoria “pessoas com pênis/próstata”. O feminismo só tem a ganhar com a desestabilização de categorias de gênero e diminuição do essencialismo biológico (KASS, 2022), pois que à rigidez na definição dos gêneros historicamente se seguiu a naturalidade da definição de papéis que oprimiam mulheres.
O gênero não se limita a questões genitais, existem outras dimensões e, por isso mesmo, quando vamos pautar saúde para pessoas que possuem uma característica específica, nada melhor do que nomear diretamente a pessoa como aquela que tem esse órgão ou condição, no caso menstruar. Saúde tem tudo a ver com a construção de uma normalidade e criação de patologias e políticas públicas nessa área dita quem terá uma vida digna e maior expectativa de vida.
Pessoas trans* têm uma expectativa de vida extremamente baixa, de 35 anos. São alvo de uma política de morte, inclusive pela negação do acesso à saúde (CALDAS; BAHIA, 2019). Estamos em um cenário de retrocesso por desmonte de políticas públicas, que aumenta a precariedade dos direitos de pessoas trans* à saúde. A atenção para saúde desse grupo parece ser sinônimo de AIDS e HIV ou cirurgias de transição, mas, em realidade, devemos observar o conceito da saúde da OMS, que é de bem-estar físico, mental e social, não se atendo apenas à ausência de alguma enfermidade. Assim, os cuidados não podem se restringir a pautas específicas de pessoas trans*, mas entender que é uma corpa que tem características biológicas que precisam ser destacadas em momento de pensar essa política pública para o médico ser especialista na área ou para que não se distribua absorventes apenas para mulheres cis, por exemplo, de modo que a gente tenha um recorte real do público-alvo.
Há um pânico moral mobilizado quando identidades e categorias são alargadas para a inclusão de pessoas trans*, pois que se defende o binarismo de gênero e a rigidez necessária das normas da forma que estão e se exime o Poder Público de considerar esse grupo social vulnerabilizado na construção de direitos humanos. Não podemos fortalecer o pânico moral que busca restringir quem é considerado sujeito para o direito e para as políticas públicas. Quando se indica que avanços de pessoas trans* retiram direitos de pessoas cis, estamos criando uma narrativa de antagonismo perigosa para todos os direitos humanos e em favor de uma patrulha moral. O Direito e as políticas públicas foram construídos a partir de normalidades e linearidades as quais corpos precisam se encaixar (MORAES; BAHIA, 2014), por isso devemos sempre buscar expandi-las.
Angela Davis reconhece a contribuição de pessoas não-binárias para endereçar problemas concretos que dialogam profundamente com o que o feminismo propõe[1]. Ela reconhece que mulheres trans negras são alvo de diversos tipos de violência, em sua intimidade, na família e do Estado e que precisam ser escutadas pelo feminismo também.
Djamila pergunta em sua página do Instagram, após receber críticas: “por que se retratar se não ofendeu ninguém”? Ela diz que tem direito de discordar e compara as críticas a ataques bolsonaristas. Existe uma comunidade inteira gritando nas redes sociais que foi ofendida, pessoas de movimentos sociais, da academia, pessoas cujas vidas são mais difíceis porque não estão enquadradas em “mulheres”, porém menstruam e não acessam direito à saúde por isso.
O problema não é uma pensadora individualmente. Temos como certo que Djamila produziu muito mais avanços para os direitos humanos do que retrocessos. Djamila é uma pessoa muito respeitada, que representa muito para o feminismo negro, ajudou a levantar diversas pautas que indicam, inclusive, que categorias sociais devem ser movimentadas para alcançar as diversas realidades, que precisamos especificar o grupo social do qual tratamos e olhar para todos os aspectos e que existe um lugar de fala a ser respeitado, pautas que dialogam com o debate em questão.
De forma alguma compactuamos com agressões que possam ter ocorrido contra Djamila nas redes sociais, mas isso não significa que não devemos falar sobre o assunto e o erro não possa ser reconhecido. Não concordamos com seu posicionamento e acreditamos que seja uma fala violenta para pessoas trans*, não-binárias e intersexo. Trata-se de mais um caso de pânico moral que adentra os movimentos sociais e tem potencial de atrapalhar as duas lutas e suas intersecções, de pessoas trans* e do feminismo. Afinal, qual é a real amplitude do uso dessa categoria para ser algo que já colocaria em risco a categoria “mulher” e os direitos conquistados pelo feminismo?
Não pretendemos substituir mulheres por pessoas que menstruam e não é um conflito falar de violência de mulheres e ainda utilizar o termo pessoas que menstruam para tratar de saúde voltada justamente para esse público, que não são apenas mulheres e não são todas as mulheres (ANTRA, 2022).
Um questionamento que fica é: você já teve medo de ir ao médico? Pessoas trans* têm o tempo todo, muitas delas decidem não ir ou o médico rejeita tratá-la. A proposta é de que seja aceito que basta um vagina para precisar de um ginecologista e que basta um útero para que o plano de saúde tenha que cobrir gastos com ginecologista de homens trans, pessoas não-binárias e/ou intersexo, ou que o SUS pudesse atender a todas as corpas, independentemente do registro de gênero e distribuição de absorventes se deem para todas as pessoas que menstruam. Queremos especificar o público-alvo para que todes sejam enxergades e tenham seus direitos respeitados. Isto se faz com categorias como “pessoas que menstruam”. Essa pauta é sobre saúde pública, é sobre saúde física e mental, sobre violências e colonialidade. Ela jamais será antagônica ao feminismo ou a mulheres.
Notas e Referências
ANTRA. O que faremos diante da questão em torno do uso de “pessoas que menstruam”? 02 dez 2022. Instagram: @antra.oficial. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/ClrjorfuPnU/?igshid=YmMyMTA2M2Y=>. Acesso em 05 dez 2022.
BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Cisgeneridade e silêncio. Blog Transfeminismo: Feminismo intersecional relacionado às questões trans*. 2014. Disponível em: . Acesso em: 05 dez 2022.
CALDAS, José M. Peixoto; BAHIA, Alexandre. Prevenção e tratamento de HIV-AIDS para HSH e mulheres trans/travestis: crises e desafios. Porto Alegre: Fi, 2019. Disponível em: <https://www.editorafi.org/81mulheres>. Acesso em 05 dez 2022.
KASS, Hailey. Respondendo À Djamila Ribeiro: Eu Também Sou Uma Mulher. Blog Transfeminismo, 2022. Disponível em: <https://transfeminismo.com/respondendo-a-djamila-ribeiro-eu-tambem-sou-uma-mulher/#:~:text=Em%20segundo%20lugar%2C%20o%20termo,mutualmente%20excludentes%20e%20nem%20intercambi%C3%A1veis>. Acesso em 05 dez 2022.
LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019
MELLO, G. Minha corpa é voz de afeto: a cisheteronormatividade encarnada na cidade e o direito como impedimento para o fim do mundo [recurso eletrônico] / Ge Mello -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022. 322 p.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2016.
MORAES, Daniel; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes. (In)capacidade do Estado-nação moderno reconhecer direitos da minoria LGBTTT. In: V Congresso da ABRASD – Pesquisa em Ação: Ética e práxis em Sociologia do Direito, 2014, Vitória. Anais – V. 2014. v. 1, p. 849-969.
NASCIMENTO, Leticia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021. 192 p.
RIBEIRO, Djamila. Nós, mulheres, não somos apenas “pessoas que menstruam”. Coluna. São Paulo: Folha de São Paulo, 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2022/12/nos-mulheres-nao-somos-apenas-pessoas-que-menstruam.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha>. Acesso em 05 dez. 2022.
VERGUEIRO, Viviane. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial. 1ª ed. Brasília (DF): Padê Editorial, 2018.
[1] trecho de palestra reproduzido por Caê Vasconcelos em seu instagram: @cae.vasconcelos. Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/Clq4JJmJcpU/?igshid=YmMyMTA2M2Y=>. Acesso em 05 dez. 2022.
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