O pai da puta: sobre a repulsa pelo direito das paixões

07/03/2016

Por Maíra Marchi Gomes - 07/03/2016

"Minha querida, encontre o que você ama e deixe isso te matar. Deixe sugar todo o seu sangue. Deixe pesar em suas costas e sobrecarregá-lo. Deixe te matar e devorar seus restos mortais. De todas as coisas que vai te matar, tanto lentamente quanto rapidamente, é muito melhor do que ser morto por um amante falsamente seu." Charles Bukowski

É bastante comum que se procure ofender por meio da expressão “filho da puta”. Poderíamos discorrer a propósito do que se denomina como “puta”; mais especificamente, se é a profissional ou se é a mulher que não possui relações estáveis, que mantém relações extraconjugais, que não é adepta da monogamia, que gosta de sexo, etc. Também poderíamos discutir sobre a ideia nesta expressão implícita de que ter uma puta (seja ela o que for) como cuidadora é algo ruim e ter uma santa como cuidadora é algo bom.

Abordar tais problemáticas, e outras que delas derivam, inegavelmente perpassa pela temática do gênero. Afinal, ninguém diz “filho do puto”. Seguindo esta trilha do gênero, gostaria de propor neste momento, no entanto, analisarmos um outro aspecto: a diferença com que se trata a própria filha e a filha do outro.

Refiro-me, mais claramente, à facilidade com que se compreende a vulnerabilidade das menores de 14 anos quando a vítima de ato tipificado como crime sexual é a própria filha (ou alguém do círculo próximo do relacionamento), ao lado da dificuldade de se entender a mesma coisa quando a vítima é a filha do outro.

É pertinente dizer que essa “filha do outro” é aquela tutelada pelo diferente. Pode ser a tutelada por alguém de raça diferente, classe socioeconômica diferente, etnia diferente, etc. O outro, aqui, seria aquela alteridade radical. O não-eu. O que faz uma fissura nas tentativas do eu espelhar-se nos objetos que o circundam. É o que parte a pretensão imaginária de não haver diferença, mas apenas plenitude.

Claro que essa diferença entre como os sujeitos se tratam e tratam o outro manifesta-se de maneira velada. Expressa-se, atendo-nos ao tema deste escrito, através dos comentários sobre a filha do outro do tipo “ah, mas ela tem corpo de mulher!”, “ah, mas ela é quem me procurou!”, “ah, mas ela fazia tudo pra me provocar. Olha as roupas delas!”, “ah, mas ela é vivida. Sabe o que tá fazendo!”, “ah, mas ela sabia o que eu queria!”. E nos comentários sobre a própria filha do tipo “ah, mas ela é no fundo uma criança!”, “ah, mas ela não sabe nada da vida. Levam ela no bico!”, “ah, ela só é carente!”, “ah, ela só fez isso por causa das amigas!”.

Podemos pensar que, na verdade, há uma reprovação da paixão. Uma reprovação da insensatez, das desrazões, dos impensados. E talvez este rechaço seja protagonizado pelo rechaço das paixões femininas porque, afinal, a paixão é um dos estados em que mais estamos feminizados[1]. Posição feminina, aqui, no sentido de um contato mais íntimo com nossa castração[2].

A paixão assusta o direito provavelmente porque se contrapõe ao ideal moderno da razão cartesiana. O direito gosta do porquinho que não brinca e constrói casinha de tijolo. Gosta do porquinho que não esquece do lobo. Gosta, principalmente, do porquinho que consegue inclusive planejar uma forma de cozinhar o lobo. E, por fim, gosta que este porquinho passe como bonzinho e herói da história.

Em outras palavras, o direito é chegado à rivalidade, à disputa, à detenção (de armas, triunfos, álibis contra o outro), à queixa da condição de vítima. Não é lá muito afeito à entrega ao outro, à aceitação de uma suposta “perda”, ao se reconhecer vítima sem precisar sem queixar. Neste sentido, repudia a paixão[3] e sua coragem e hombridade.

Para Freud (1930[1929]/1987), nunca nos achamos tão indefesos como quando amamos. Talvez sempre sejamos vulneráveis quando movidos pela paixão. Que isto seja atenuante de nossa conduta e agravante da conduta de quem desconsiderou isso (ou considerou demais) para agir de determinada forma, talvez cada caso nos diga.

Mais uma vez, inevitavelmente lembramos do direito e suas matreirices. Ou alguém esquece que a vulnerabilidade da paixão já foi considerada, mas apenas para exercitar o machismo? Refiro-me à aplicação que se fazia da legítima defesa da honra quando vigorava o Código Penal (1890-1940).

Compreendia-se que a honra era um bem, assim como a vida ou o corpo, e daí poder fazer algo (até matar) para protegê-la. Em seu Art.27, excluía a ilicitude dos atos cometidos por aqueles que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligencia no acto de commetter o crime”.

Cabe apontar que justificar um homicídio a partir deste artigo sempre foi interpretação dos juristas. Sempre foi, como não poderia deixar de ser, apropriação que se fazia da letra da lei. Da mesma forma, pode-se admitir que a forma com que

o artigo 28 de nosso atual Código Penal (“Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão”) é aplicado depende da subjetividade dos operadores do direito. A lei sozinha não diz nada.

Cada caso, se analisado em sua especificidade e se tratado eticamente pelos juristas, pode acarretar uma pena maior ao acusado, porque modifica a compreensão de sua conduta e do comportamento da vítima. Perceba-se que a consideração da vulnerabilidade que a paixão nos traz poderia se dar tanto quando o apaixonado é o autor bem como quando o apaixonado é a vítima.

Por fim, cabe questionar a concepção de que paixão é motivo fútil. Talvez não seja o melhor caminho para se agravar a conduta de um apaixonado que comete crime. É só perguntarmos a nós mesmos se nos consideramos tolos em nossas paixões. Ou será que alguém (inclusive operador do direito) se considera imune à paixão?

Pode-se também questionar esta compreensão de que a paixão é futilidade perguntando a alguém que sofreu um crime por estar apaixonado pelo autor se ele se considera tolo. É...talvez a associação paixão-futilidade seja mais um atalho encontrado para ferrar pessoas (autores e vítimas).

Sejamos humildes e reconheçamos que não somos movidos pela razão, porque somos movidos por paixões. Mas não o façamos para prejudicar autores e vítimas. Façamos unicamente porque, no caso dos operadores do direito, é sua função conhecer o que move ações de humanos. Ou sua função não é essa, mas apenas decidir por vitimizar alguém e ferrar um outro alguém?


Notas e Referências:

[1] Cf. http://pt.scribd.com/doc/73268815/Entrevista-de-Jacques-Alain-Miller-Psicanlise-e-o-Amor#scribd.

[2] Aqui cabe explicar que a psicanálise, surgindo numa Europa vitoriana, não consegue abdicar das representações sobre mulher e homem próprias do seu tempo. Nesta direção, suas concepções sobre feminilidade e masculinidade partem da biologia. A constituição de um homem ou mulher partiria, em ambos, de como lidam com a castração. Entretanto, a maneira de lidar com a castração seria diferente para cada um de acordo com o que a biologia os deu: uma posse (presentificada no pênis, porque na infância  - período fundamental do desenvolvimento - é o único diferencial entre os corpos) ou uma ausência.

[3] A este mesmo respeito, falamos de como os crimes passionais nos ensinam sobre a não covardia frente à paixão. Sobre o se entregar à paixão até os seus limites (http://emporiododireito.com.br/o-amor-precisa-ser-insuportavel-o-que-nos-ensinam-os-crimes-passionais-por-maira-marchi-gomes/).

FREUD, S. (1930[1929]/1987). O mal estar na civilização. In: _____. Obras psicológicas completas, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.


Maira Marchi. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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