Por Danielle Mariel Heil - 14/06/2015
Em 1507, pela madrugada, foi assassinado um homem em Veneza e seu cadáver estava na rua. Passando pelo local, o moço Pedro Facciol, modesto padeiro, viu o corpo e ficou a admirar o punhal manchado de sangue. A arma era rica. Apoderou-se dela e ia retirar-se, quando soldados que se aproximavam e o viram inclinado junto ao cadáver o perseguiram e prenderam, encontrando o instrumento do crime em seu poder. À vista do flagrante, foi submetido a tormento, confessou o assassinato e foi enforcado a 22 de março de 1507.
Descobriu-se, depois, o verdadeiro autor do crime. Diz-se que, por causa deste erro, a administração local mandou escrever, em tinta vermelha, na parede da sala dos julgamentos, a frase: Ricordatevi del povero fornaio (Recordai-vos do pobre padeiro), e estas palavras eram repetidas, em voz alta, por um funcionário, antes dos pronunciamentos dos julgadores. [1]
Recordando-se da máxima que o “primeiro ao acordar é o padeiro”, imaginemos um simples homem, trabalhador, ainda de madrugada, ao se deslocar para seu local de trabalho, quando então avista um corpo caído ao solo. Como não havia mais ninguém nas proximidades, por ainda ser de madrugada, com sua bondade e certa ingenuidade o padeiro resolve socorrê-lo. Pobre homem, mal podia imaginar que estava escrevendo seu próprio destino. Surpreendementde, fora abordado e preso por soldados que ao se depararem com ele em posse do punhal, o condenam antecipadamente.
Impressões Impactantes
O próprio ditado popular diz que a primeira impressão é a que fica. Assim, a simpatia ou antipatia podem gerar muitas expectativas, inclusive de caráter decisório. E isso é um erro de avaliação, pois muitas vezes a primeira impressão, tanto positiva como negativa, acaba se estendendo aos atos processuais [2].
O ordenamento jurídico brasileiro traz até hoje a marca do ocorrido em Veneza. Como diria Alexandre Morais da Rosa, esse é o efeito halo. Por exemplo, quando chega para a audiência um advogado bem sucedido, bem vestido, bem informado, ou um membro do Ministério Público nas mesmas circunstâncias, o efeito estético é diverso de um jogador mal vestido e com má reputação. Os mais racionais irão dizer que isso é absurdo. Só quero os lembrar que há coisas que não são julgadas pela razão [3].
A punição de alguém, sua derrocada, a possibilidade de apontar o dedo na face alheia para indicar-lhe a culpa, sempre foi e continua sendo uma forma de extravasar as próprias insatisfações e frustrações [4].
Para superar a compreensão do que se pode chamar de Processo Penal do Espetáculo [5], segundo Sergio Salomão Shecaira, um dos fatores que reforça este fascínio das pessoas em relação à criminalidade é justamente porque é diferenciando-se do criminoso que não se deixa dúvidas quanto a condição de pessoas honestas que cada um atribui a si próprio [6].
Essa tendência rumo ao Direito Penal do Inimigo [7], baseado no fomento de um perigosismo generalizado infiltrado no imaginário da coletividade que demanda cada vez mais por segurança, criação de leis e aumento de penas, distinguindo cidadãos e inimigos, restringindo assim, muitas vezes, direitos e garantias fundamentais deste último grupo.
Os crimes sempre existiram e sempre vão existir, sendo que através da *correção das leis com mais leis, só torna tudo mais demorado e com resultados incertos, fazendo com que a inflação do direito traga em si a própria morte [8].
Fatores Externos e o Jogo Processual Penal: Discurso da Verdade
Tudo isso deve-se, grande parte as reações sociais e fator midiático. Os crimes e processos tranformaram-se, a rigor, em um comércio, em que o ator principal é o dinheiro e o protagonista a audiência no programa televisivo. *Os programas “sangue-show” são conduzidos por jornalistas que se submetem às expectativas mais primitivas do ser humano, indicadas por Juvenal: pão e circo [9]. Esses discursos midiáticos, por certo, influenciam no julgamento e para alguns juízes que já são candidatos a Deus, fascinam-se com a possibilidade de agirem na ilegalidade, baseados em más impressões ou meramente nos maus antecedentes (bad boys) de um acusado e não pela prova de sua culpabilidade (autoria e materialidade) no crime a ser julgado.
Importante ressaltar, ainda, sobre a forte tentação de muitos julgadores em julgar o acusado e não a conduta propriamente em questão, e então a dúvida vem à tona: ser ou não ser, foi ou não o autor do ato ilícito praticado...eis a questão. A dúvida existente acerca da autoria de um delito não está nas provas até então produzidas pelas partes, mas na própria mente daquele que as analisa. A dúvida não é o motivo de se absolver o réu, mas, ao contrário, é a não suficiência de elementos de convicção que demonstrem ligação do acusado com o fato delituoso é que gera, no julgador, a dúvida acerca do nexo entre materialidade e autoria.
A mente humana é sujeita a falhas e erros sistemáticos, não sendo tão racional e lógica quanto aparenta, a título exemplificativo pode-se citar o fator da fadiga na apreciação de casos jurídicos, após um esgotamento cognitivo e físico com uma pauta intensa de audiências e longa jornada de trabalho [10].
Na incessante busca pela justiça, ou melhor, pela vitória, uma vez que as partes (jogadores) manipulam suas armas e táticas processuais da melhor forma, tendo consequentemente êxito ou não, consagrando-se, portanto, parte vitoriosa e parte derrotada, faz o Poder Judiciário ser palco de exageros, em constante guerra declarada. Contudo, como é sabido, nem sempre vence a partida, tampouco o processo, o melhor jogador ou mesmo o que jogou melhor, nem sequer quem tem o direito em discussão.
No jogo, salvo na opinião dos torcedores, nenhum dos contendores tem o direito de vencer mas todos tem o direito a uma disputa justa e com igualdade de oportunidades*, o denominado fair play, ou seja, garantia da Jurisdição, do Contraditório, da Ampla Defesa e da Motivação do Atos. [11].
A sociedade contemporânea faz da informação um elemento estruturante da sua própria organização, portanto, toda e qualquer violação de preceitos constitucionais pela mídia afeta o próprio Estado Democrático de Direito, ao violar garantias individuais elevadas ao patamar de cláusulas pétreas pelo constituinte de 1988, e ofensa aos Direitos Humanos. [12]
Podemos deduzir a partir de Voltaire, que um *processo preso aos juízos de certeza é um processo preso ao sortilégio, à obsessão pela verdade e, paradoxalmente, à adivinhação*, e que como se sabe, não há ninguém, ainda, com bola de cristal apta a obter sempre e a todo momento, a tão sonhada verdade, ou a chamada Verdade Real, *que não passa da ilusão da informação perfeita no processo penal. [13].
A busca da verdade na realidade não passa de mero pretexto utilizado para a fixação de procedimentos de saber e estabelecimento de mecanismos de poder. [14] E como bem resume Anatole France, a justiça é doce com os grandes e impiedosa com os pequenos [15].
Portanto, basta de “vontades de verdade” e crenças cegas, passemos a reconhecer o Sistema Acusatório, sem inimigos imaginários e, por fim, não esqueçam: recordai-vos do pobre padeiro de Veneza!
Notas e Referências:
[1] Revisão Criminal, 1a. ed., p. 45; Sugestões Literárias S.A.; São Paulo. Ainda: Giuseppe Fumagalli Chi l’ha detto. Editore Ulrico Hoepli; Milano. 1995, p. 170.
[2] ROSA, Alexandre Morais da. Gui Compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed., rev. E ampl. - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 87
[3] ROSA, Alexandre Morais da. Gui Compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed., rev. E ampl. - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 88)
[4] RAHAL, Flávia. Mídia e Direito Penal. 13º Seminário Internacional de Ciências Criminais. São Paulo: DVD, 2007
[5] ROSA, p. 69
[6] SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação de massa. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 10, São Paulo: RT, abr/jun.1995. p. 135
[7] ROSA, p. 64
[8] L. A. BECKER. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. ed., 2012, p. 40
[9] ROSA, p. 144
[10] ROSA, p. 85/86
[11] L. A. BECKER. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. ed., 2012, p. 156
[12] FREIRE, Ranulfo de Melo. O papel da mídia na democracia. São Paulo: Boletim do IBCCRIM, jan. 2004
[13] L. A. BECKER. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. ed., 2012, p. 288 e KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 361.
[14] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: ed. 34, 1992, p. 145
[15] FRANCE, Anatole, Les opinions de M. Jérome Coignard. Paris: Callmann-Lévy, 1923, p. 244
Danielle Mariel Heil é advogada, atualmente Procuradora Adjunta do Município de Brusque-SC, especialista em Direito Constitucional pela Fundação Educacional Damásio de Jesus e em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina.
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