O PACOTE ANTICRIME: REFLEXOS NO CRIME DE ESTELIONATO

10/01/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

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Os estudantes e os operadores do Direito foram “presenteados” no último Natal pelo chamado Pacote Anticrime. As aspas que envolvem a palavra “presenteados” não trazem em si qualquer crítica preliminar quanto ao teor da Lei 13.964/19. Somos otimistas. Costumamos ver o lado bom das coisas. A referida lei constitui um avanço em determinados aspectos, muito embora seja possível criticá-la em outros aspectos.

O que temos visto, sobretudo nas redes sociais – já que ainda não houve tempo para a doutrina aprofundar a análise do Pacote Anticrime –, são críticas e mais críticas. É certo que algumas críticas são, realmente, procedentes. Mas há aspectos que reputamos bons e, por isso, abordaremos neste texto um desses aspectos que acreditamos constituir uma evolução, o qual se refere ao crime de estelionato.

Antes propriamente de tratar do mencionado crime de estelionato, é importante fazer duas observações preliminares.

A primeira observação refere-se à dificuldade inerente à atividade legislativa. Devemos reconhecer que não é fácil legislar, sobretudo em um país com a dimensão territorial do Brasil. Por exemplo, o Pacote Anticrime criou a figura do juiz das garantias, o qual atuará antes de ser exercido o direito de ação. Após o oferecimento da denúncia ou da queixa, passará a atuar outro juiz. O juiz das garantias será abordado em outro texto nosso. Mas, de antemão, ninguém pode duvidar da dificuldade da sua implementação em comarcas distantes dos grandes centros em que atue apenas um juiz. Portanto, uma coisa é colocar em prática o juiz das garantias na Comarca da Capital, no Estado do Rio de Janeiro, enquanto outra coisa é colocar em prática o juiz das garantias na Comarca de Demerval Lobão, no Estado do Piauí.   

A segunda observação refere-se ao fato de a vontade do legislador ser respeitada. Não desconhecemos a qualidade dos nossos parlamentares, mas a verdade é que eles foram eleitos democraticamente. Temos consciência dos problemas que envolvem o legislador brasileiro, a forma como são eleitos e a maneira como desempenham as suas funções. Todavia, entendemos que o controle de constitucionalidade das leis deve ser exercido quando efetivamente se verifica a incompatibilidade entre o texto constitucional e a legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, fazendo uma interessante análise do sistema norte-americano, Robert Alan Dahl[1] traz argumentos que, em certa medida, são aplicáveis à nossa realidade. Vale a transcrição: Juristas norte-americanos lutam há gerações para fornecer uma explicação satisfatória para o amplo poder de revisão judicial que tem sido exercido por nosso Supremo Tribunal Federal. Mas persiste a contradição de imbuir um órgão não eleito – ou, no caso norte-americano, cinco dos nove ministros dessa corte suprema – do poder de tomar decisões políticas que afetam a vida e o bem estar de milhões de norte-americanos. Como pode a revisão judicial, se é que isto é possível, ser justificada numa ordem democrática?

Em outras palavras, o que desejamos expor é o nosso entendimento segundo o qual o controle de constitucionalidade deve ser exercido quando há situações excepcionais. Não cabe ao Poder Judiciário filtrar a legislação infraconstitucional utilizando critérios que não sejam absolutamente técnicos. O simples desacordo com a opção feita pelo legislador não autoriza a declaração de inconstitucionalidade das leis com o propósito de afastar a sua aplicação. Isso significa que a Lei 13.964/19 pode revelar opções legislativas com as quais não concordamos, mas, ainda assim, devemos observá-las na prática.

Feitas essas duas observações preliminares, a questão a ser respondida neste texto é a seguinte: de que forma o Pacote Anticrime impactou o crime de estelionato?

A Lei 13.964/19 inseriu o § 5º no art. 171 do Código Penal, transformando a ação penal pública incondicionada em ação penal pública condicionada à representação da vítima, ressalvando apenas os casos em que são vítimas a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

Em outras palavras, mudou-se a regra geral. Antes da vigência do Pacote Anticrime, todos os crimes de estelionato eram levados ao juízo através da ação pública incondicionada, ou seja, após formar o seu convencimento e concluir pela existência da justa causa, o Ministério Público oferece a denúncia em juízo, ainda que a vítima não tenha essa pretensão. Após a vigência do Pacote Anticrime, ressalvados os casos destacados, mesmo após formar o seu convencimento e concluir pela existência da justa causa, o Ministério Público só poderá oferecer a denúncia em juízo com a manifestação da vítima nesse sentido.

A questão que reputamos interessante abordar neste texto se refere à aplicação do novo dispositivo no tempo, ou seja, (i) como ficam os processos em curso que tratam do crime de estelionato, (ii) como ficam as investigações policiais já instauradas que tratam do referido crime e (iii) como deve ser examinada a questão a partir da mudança legislativa em destaque.

Então, vejamos as três situações referidas.

Na nossa avaliação, os processos já instaurados que tratam do crime de estelionato não sofrem impacto com a nova legislação. Isso porque o art. 2º, caput, do CPP, dispõe, de forma expressa, que a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Portanto, se o Ministério Público ofereceu a denúncia sem a representação da vítima antes da vigência da nova lei, o exercício do direito de ação foi regular e, por isso, não sofre qualquer impacto.

Não custa lembrar que o legislador tratou a matéria de forma diferenciada no art. 91, caput, da Lei 9.099/95, quando os crimes de lesões corporais leves e de lesões culposas se transformaram de crimes de ação penal pública incondicionada em crimes de ação penal pública condicionada à representação. Àquela época, o legislador afirmou que, nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.

Evidentemente, o legislador podia ter tratado a ação penal no caso do crime de estelionato da mesma forma, fazendo a mesma ressalva. Mas não o fez. Por isso, já instaurado o processo criminal, o mesmo não deve sofrer qualquer abalo com a nova lei.

Situação diversa ocorre quando a investigação policial foi iniciada, mas ainda não houve o regular exercício do direito de ação. Se o inquérito policial foi instaurado para apurar as circunstâncias de eventual crime de estelionato, é fundamental que a vítima ofereça a sua representação, sem a qual o Ministério Público não poderá oferecer a denúncia em juízo.

É importante lembrar que não cabe à autoridade policial ou ao Ministério Público intimar a vítima, a fim de que decida ou não pelo oferecimento da representação. Nada impede que a intimação da vítima seja providenciada, caso o aparato policial ou o Parquet tenha infraestrutura para tanto. Mas isso não é obrigatório.

Com a vigência da nova lei, cabe à vítima oferecer a sua representação por iniciativa própria, no prazo de seis meses, observando-se o art. 38, caput, do CPP, segundo o qual, salvo disposição em contrário, a representação deve ser oferecida no prazo de seis meses.

Caso a vítima saiba quem é o autor do crime, o prazo de seis meses deve iniciar com a vigência da Lei 13.964/19. Por outro lado, caso a vítima não saiba quem é o autor do crime, prevalece o mencionado art. 38, caput, do CPP, na parte em que afirma que o prazo deve ser contado do dia em que a vítima vier a saber quem é o autor do crime.

De outro lado, aos fatos ocorridos após a vigência do Pacote Anticrime, a situação não contém qualquer complexidade. Ressalvadas as hipóteses destacadas pelo art. 171, § 5º, do Código Penal, caberá à vítima apresentar a sua representação no prazo de seis meses, observando-se a regra prevista no já referido art. 38, caput, do CPP.

Entendemos que o legislador fez a opção correta, uma vez que, em regra, prestigia a vontade da vítima. Não se desconhece o fato de muitos inquéritos policiais serem instaurados para a apuração do crime de estelionato quando, em verdade, há um ilícito de natureza cível. O que a vítima deseja, quase sempre, é ser ressarcida do prejuízo que experimentou. Portanto, se a questão financeira foi resolvida ainda durante a investigação policial, realmente não faz muito sentido a deflagração do processo criminal. Aliás, essa possibilidade de evitar o processo criminal pode funcionar como estímulo ao indiciado no sentido de ressarcir a vítima, evitando-se também a instauração de um processo de natureza cível.

Em resumo, são essas as nossas ideias iniciais quanto à mudança legislativa operada no crime de estelionato pelo Pacote Anticrime: (i) se o processo criminal já tiver sido deflagrado, a nova lei não provoca qualquer alteração; (ii) se o processo criminal ainda não tiver sido deflagrado, cabe à vítima oferecer a sua representação no prazo de seis meses, a contar  da vigência da nova lei, se o autor do crime for conhecido, ou a contar do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, se o autor do crime ainda não for conhecido; (iii) se o crime foi praticado após a vigência da nova lei, cabe a vítima oferecer a representação no prazo de seis meses, a contar do dia em que vier a saber quem é o autor do crime.

Nesse sentido, a análise preliminar que fazemos do Pacote Anticrime não é tão pessimista como algumas pessoas têm feito. De fato, há pontos passíveis de críticas, mas há também pontos que constituem um avanço. Em verdade, na nossa opinião, a mudança realizada no crime de estelionato constitui um dos pontos positivos.

 

Notas e Referências

[1] DAHK, Robert Alan. A constituição norte-americana é democrática? Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 57.

 

 

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