O PACOTE ANTICRIME: O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA

28/02/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça a leitura do texto aqui!

Temos abordado o Pacote Anticrime – Lei 13964/19 em diversos textos. É fácil perceber que dois temas tratados na mencionada lei ganharam destaque: o juízo das garantias e o acordo de não persecução penal. Trata-se de duas novidades. A grande diferença é que os artigos que preveem o juízo das garantias se encontram com a sua eficácia suspensa pelo decisão liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux, enquanto o acordo de não persecução penal já tem sido aplicado atualmente. Em outras palavras, é possível que o juízo das garantias nunca tenha aplicação prática, caso a liminar referida seja confirmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, mas não se pode dizer o mesmo sobre o acordo de não persecução penal.

Portanto, é necessário encontrar saída para os problemas que já estão surgindo no dia a dia forense com relação ao acordo de não persecução penal. Nesse panorama, uma questão que vem apresentando certa divergência no meio acadêmico é a seguinte: em que momento pode ser realizado o acordo de não persecução penal?

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro posicionou-se através do art. 1º, parágrafo único, da sua Resolução nº 20/2020, o qual dispõe que o acordo de não persecução penal poderá ser celebrado até o recebimento da denúncia. É claro que a mencionada Resolução constitui, em verdade, uma orientação institucional aos membros do Ministério Público, o que não significa dizer que todos os procuradores de justiça e que todos os promotores de justiça do Estado do Rio de Janeiro concordem com esse entendimento. Mas, de toda forma, não deixa de ser interessante saber o entendimento daquela instituição quanto ao assunto.

Todavia, essa não é a nossa visão por alguns motivos.

Entendemos que o art. 3º-B, XVII, do CPP – cuja eficácia está suspensa pelo Supremo Tribunal Federal – tratou o tema de forma adequada ao afirmar que cabe ao juízo das garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação. O citado dispositivo, em sua parte final, ao mencionar o acordo de não persecução formalizado durante a investigação, evidencia a possibilidade de sua realização após o recebimento da denúncia. Por que motivo o legislador mencionaria expressamente o acordo realizado durante a investigação, se não houvesse a possibilidade da sua realização após a investigação?

Não custa lembrar que, diante da suspensão da eficácia do dispositivo que fixa a competência do juízo das garantias, Marcelo Oliveira da Silva[1], em interessante texto, trata da competência para a homologação do acordo de não persecução penal, inclusive sustentando que, atualmente, cabe ao juiz da custódia a sua homologação no caso de prisão em flagrante.

Também é possível argumentar que o acordo é de não persecução penal e que, por isso, abrange apenas o momento de investigação. Não concordamos com esse argumento porque a persecução penal compreende a parte investigatória e a parte processual propriamente dita. Nesse sentido, Afrânio Silva Jardim[2] esclarece que a persecução penal é dividida nas fases administrativa, feita pela polícia investigativa, e processual, desenvolvida perante o Poder Judiciário. Portanto, a rigor, o acordo suspende a persecução penal, mas não a evita. Isso porque, quando realizado na fase de investigação, o inquérito policial já foi instaurado. De outro lado, quando realizado em juízo, o processo criminal já foi instaurado. Logo, afirmar que não cabe o acordo em juízo afirmando que o mesmo busca evitar a persecução penal não faz sentido porque desconsidera a real extensão da expressão persecução penal.

Em favor do nosso entendimento – que admite o acordo em juízo – também existe um argumento de ordem prática. No dia a dia forense, verificamos que em um número expressivo de procedimentos policiais o investigado opta pelo silêncio, principalmente quando não possui advogado na fase policial. A rigor, o investigado é chamado à sede policial para prestar esclarecimento e lá comparece desacompanhado de um defensor. Se o investigado opta pelo seu direito ao silêncio, o acordo de não persecução penal fica inviável porque um dos seus requisitos é justamente a confissão do investigado. Isso sem falar nos casos em que a denúncia é oferecida sem que o investigado tenha conhecimento da investigação policial.

Embora a Resolução nº 20/2020 do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro oriente os órgãos ministeriais no sentido de contatarem o investigado para tentar a celebração do acordo de não persecução penal, o Código de Processo Penal não contém essa exigência. Portanto, não há qualquer ilegalidade quando o promotor de justiça simplesmente oferece a denúncia em juízo e afirma que não houve o acordo de não persecução penal porque inexiste a confissão do investigado.

É possível que isso ocorra – oferecimento de denúncia, sob o argumento de que não houve acordo de não persecução penal por falta de confissão do investigado – e que, depois, em juízo, sendo defendido por um advogado ou por um defensor público, o réu entenda que o melhor caminho é a confissão para a celebração do acordo de não persecução penal. Nesse caso, não há qualquer fundamento legal ou mesmo lógico capaz de impedir a celebração do acordo em juízo.

Além disso, pode ocorrer a desclassificação da imputação inicial no curso do processo, caso em que não se poderá impedir o acordo. Basta imaginar a denúncia sendo oferecida em desfavor do réu pela prática do crime de roubo e, durante a instrução criminal, a vítima afirmar que não houve violência ou grave ameaça, impondo a desclassificação da imputação para o crime de furto. O acordo, que se mostrou inviável durante a fase de investigação em razão da violência ou da grave ameaça, passa a ter lugar na fase judicial em razão da desclassificação da imputação.

Nesse sentido, entendemos que tudo recomenda a celebração do acordo de não persecução penal ainda na fase investigatória, evitando-se o oferecimento da denúncia e a instauração do processo criminal propriamente dito. Esse é o panorama ideal.

De outro lado, entendemos que, não realizado o acordo de não persecução penal na fase investigatória, nada obsta a sua realização após o recebimento da denúncia, em juízo, no processo criminal propriamente dito.

Vamos aguardar para ver como a questão será administrada no dia a dia forense.

 

[1] SILVA, Marcelo Oliveira da. Aspectos sobre a realização do acordo de não persecução penal e o direito intertemporal. Isso Posto. Disponível em: https://www.issoposto.com.br/post/aspectos-sobre-a-realiza%C3%A7%C3%A3o-do-acordo-de-n%C3%A3o-persecu%C3%A7%C3%A3o-penal-e-o-direito-intertemporal. Acesso em: 24 fev. 2020.

[2] JARDIM, Afrânio Silva. Primeiras impressões sobre a Lei nº 13964/19: aspectos processuais. Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/primeiras-impressoes-sobre-a-lei-n-13-964-19-aspectos-processuais. Acesso em: 24 fev. 2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Thomas Quine // Foto de: Lady justice // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/quinet/15959150357

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura