O ÔNUS DA PROVA NA AÇÃO PENAL CONDENATÓRIA

04/02/2020

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS. DELIMITAÇÃO DO TEMA A SER ESTUDADO

O presente estudo tem objetivos bem definidos. Não pretende, de forma alguma, passar a limpo a teoria da prova no processo penal, vez que circunscreve o seu objeto a uma particular questão: o ônus da prova. Por outro lado, explicitado o tema central do trabalho, resta ainda fazer outra delimitação: somente trataremos do ônus da prova no processo penal de conhecimento, mais precisamente, na ação penal condenatória.

Assim, o que nos interessa saber é como deve se orientar o Juiz diante de irremovível incerteza sobre um determinado fato relevante para o julgamento da pretensão punitiva deduzida na denúncia ou queixa. Até mesmo indagações relativas à admissibilidade da acusação penal (pronúncia), no rito do Tribunal do Júri, ficarão para abordagem posterior, em trabalho mais amplo.

Para não dificultar a sua compreensão, o texto será modesto em citações, mormente da doutrina estrangeira, elaborada a partir de uma realidade normativa diversa. Nosso escopo é, através de uma perspectiva crítica, apreender e interpretar o sistema positivo vigente. Daremos especial ênfase ao aspecto objetivo do ônus da prova, principalmente em decorrência da regra constante no inciso II do art. 156 do Código de Processo Penal.

É forçoso reconhecer, entretanto, que o dever de o Juiz perquirir a verdade, com amplos poderes instrutórios, ainda que supletivamente à atividade das partes, não elimina destas o estímulo à produção de suas provas, o qual se faz sentir, em certa medida, com menor vigor, por saberem os litigantes que o esforço próprio não é o único meio de chegar à verdade processual. Voltaremos a examinar novamente esta questão em item destacado do trabalho.

 

2. A PROVA PENAL E A ESTRUTURA DO PROCESSO ACUSATÓRIO MODERNO

Talvez não seja exagerada a afirmação de que o princípio processual que, historicamente, mais influiu na evolução estrutural do processo penal foi o da busca da verdade real, melhor seria dizer a busca do convencimento do juiz.

A evolução dialética do processo romano individualista para o sistema acusatório público muito se deveu, no processo penal, à noção de que ao Estado também interessa conhecer a verdade dos fatos, para bem poder prestar a sua jurisdição, função pública por natureza. Tal interesse se faz alcançar também através da atividade probatória das partes, mas está acima do estímulo destas, devendo ser perquirido pelo Juiz até mesmo diante da inércia ou contra a vontade dos demais sujeitos processuais.

 Tal perspectiva já começa a ser vislumbrada também no processo civil, reservando-se, no futuro, amplo e importante papel instrutório ao Ministério Público, consoante procuramos demonstrar em outro trabalho de nossa autoria intitulado Da publicização do processo civil.

A busca da verdade real ou material, que não se trata, por óbvio, da verdade ontológica, mas sim da verdade possível, circunscrita às limitações da reconstrução histórica dentro de um processo, consagrada na segunda parte do art. 156 do Código de Processo Penal, é uma decorrência da própria natureza do bem da vida e valores que justificam a existência mesmo do processo penal: o interesse do Estado em tutelar a liberdade individual.

Tratando-se de direito irrenunciável, cuja fruição deve ser assegurada pelo Poder Público no limite do interesse coletivo, tomou-se imperioso juridicizar o ius puniendi do Estado, a fim de que se pudessem utilizar métodos capazes de levar ao conhecimento de um julgador neutro e imparcial o que realmente ocorreu no mundo fático. Como se sabe, assim como ao Estado não interessa a absolvição de um culpado, também não lhe interessa a condenação de um inocente.

Aliás, é de suma importância ter presente que estas duas últimas assertivas, pela diversidade de valores que as inspiram, não podem ser colocadas em pé de igualdade. Vale dizer, melhor absolver um culpado do que condenar um inocente, até porque uma moderna concepção crítica do Direito Penal vem demonstrando que a sanção supressiva da liberdade não pode mais ser reputada como um meio eficaz de controle social. Agora, ninguém põe em dúvida os malefícios de uma condenação injusta.

Assim, os riscos destes possíveis erros devem merecer dimensões diferentes. Desta forma, o processo penal moderno assumiu uma estrutura capaz, ao menos no plano teórico, de permitir um julgamento justo à pretensão punitiva do autor, outorgando ao Ministério Público e ao Juiz funções da maior relevância, assegurando ao réu ampla defesa e instrução criminal em contraditório.

Ora, se assim é, se o processo penal tem como objeto bem indisponível, salta aos olhos que a distribuição do ônus da prova, regulada no art. 373, do antigo CPC, não pode ter aqui aplicação automática, numa postura cômoda e simplista: se há dúvida, por exemplo, em relação à legítima defesa alegada pelo réu, deve ser ele condenado.

A formulação de todo e qualquer sistema ou subsistema no processo penal não pode deixar de ser informada pelos valores acima salientados, que se extraem da própria Constituição da República, bem como da moderna teoria da jurisdição penal.

Note-se que a questão da liberdade não é aqui tratada dentro de uma perspectiva liberal-individualista, mas como algo que toca todos enquanto cidadãos de uma coletividade civilizada. Isto está claro nas sábias e belas palavras de Ruy Barbosa: “O paciente pode, até, não requerer a liberdade; pode resignado, ou indignado, desprezá-la. É indiferente. A liberdade não entra no patrimônio particular, como as cousas que estão no comércio, que se trocam, vendem ou compram; é um verdadeiro condomínio social; todos os desfrutam, sem que ninguém o possa alienar; e se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica”.

A lei, deixou dito Tancredo Neves, deve ser a organização social da liberdade. Dentro desta visão, portanto, deve ser interpretado o sistema normativo vigente em nosso país.

 

3. O CONCEITO DE ÔNUS DA PROVA

Ônus processual é gênero do qual o ônus da prova é espécie. Assim, cabe conceituar o primeiro para, ao depois, poder compreender o significado do segundo.

Neste particular, vamos nos utilizar, ainda que de forma resumida, das precisas lições do professor Hélio Bastos Tornaghi, constantes da sua monumental obra denominada Instituições de Processo Penal. Para tanto, far-se-á uma rápida investida no quadro das categorias básicas que compõem a teoria geral do direito. Entende-se como faculdade jurídica a possibilidade de fazer tudo quanto a lei não proíba e de omitir tudo quanto ela não imponha.

É um campo de liberdade jurídica, decorrente da irrelevância para o direito ou da inexistência de ilicitude. Já o chamado direito subjetivo, numa apreciação superficial, é mais do que uma mera faculdade de fazer ou não fazer. É faculdade de exigir de outrem uma prestação. Assim, em sendo bilateral, ao direito subjetivo corresponde o dever jurídico ou obrigação. Chama-se direito potestativo ou poder jurídico a faculdade, assegurada pela norma jurídica, de o seu titular submeter terceiro à sua vontade. Vale dizer, unilateralmente atinge-se a esfera jurídica do sujeito passivo, que a tudo fica submetido. Aqui, ao invés de dever ou obrigação, temos uma posição de mera sujeição à vontade de outrem.

Finalmente, chegamos ao ônus processual. Não é ele bilateral, o que torna fácil distingui-lo do direito subjetivo e poder jurídico. O ônus não é algo impositivo, imperativo. Muito pelo contrário, é uma espécie de faculdade. É um campo de liberdade que tem um determinado sujeito de direito para atuar positivamente, a fim de que venha a alcançar algum benefício em seu favor.

Assim, pode-se dizer que ônus processual é uma

faculdade outorgada pela norma para que um sujeito de direito possa agir no sentido de alcançar uma situação favorável no processo. Se juridicamente fosse possível, poderíamos dizer que ônus “é o dever para consigo mesmo”.

Pela clareza conceitual, vamos à sempre autorizada lição do grande Carnelutti: “Hablo de cargo, cuando el ejercicio de uma facultad aparece como condición para obtener una determinada ventaje; por ello la carga es uma facultad cuyo ejercicio es necessário para el logro de un interés. Obligación y carga tienen de común el elemento formal, consistente en el vínculo de la vonluntad; pero difieren en el elemento substancial, porque cuando hay obligación, el vínculo se impone para la tutela de un interés ajeno, y para la tutela de un interés próprio, cuando se trata de la carga”.

Antes de trazermos esta definição para o campo probatório, importa conceituarmos a prova como categoria no processo penal, mormente diante das várias acepções em que a palavra prova é utilizada.

Concebemos a prova como sendo o resultado da demonstração, submetida ao crivo do contraditório processual, da real ocorrência dos fatos relevantes para o julgamento da pretensão do autor. Para nós, tendo em vista a regra do art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal de 1988, no sentido estrito de objeto de valoração judicial, somente poderá ser considerada como prova aquilo que restou demonstrado no processo através de atividade submetida ao contraditório. Em outras palavras, a prova pode não ter sido produzida na fase contraditória do processo, mas ao contraditório deve ter sido exposta.

Podemos, ainda, extrair da definição supra que o objeto da prova penal são os fatos relevantes, ainda que incontroversos. Mesmo diante da confissão do réu, os fatos constantes da imputação não deixam de ser objeto da prova, conforme se vê do art. 197 e art. 158, in fine, do Código de Processo Penal. Isto devido ao princípio da busca da verdade real, já referido anteriormente.

A toda evidência, os fatos irrelevantes não precisam ser provados, assim como os notórios, os axiomáticos e os presumidos pela lei de forma absoluta.

Desta maneira, ônus da prova é a faculdade que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de um fato que alegou em seu interesse, o qual se apresenta como relevante para o julgamento da pretensão deduzida pelo autor da ação penal.

Aqui, ainda estamos dentro de uma perspectiva subjetiva do ônus da prova, a qual decorre principalmente de uma razão lógica. No dizer do ilustre e saudoso professor José Carlos Barbosa Moreira, “parte-se da premissa, expressa ou implícita, de que o maior interessado em que o Juiz se convença da veracidade de um fato é o litigante que aproveita o reconhecimento dele como verdadeiro, por decorrer daí a afirmação de um efeito jurídico favorável a esse litigante, ou a negação de um efeito jurídico a ele desfavorável. Semelhante interesse naturalmente estimula a parte no sentido de persuadir o órgão judicial de que o fato deveras ocorreu – numa palavra, de prová-lo. Fala-se, ao propósito, num primeiro sentido de ônus subjetivo ou formal.”

Entretanto, como deixamos escapar no limiar deste estudo, a nossa preocupação será mais dirigida ao aspecto objetivo do ônus da prova. Vale dizer, queremos saber como deve se orientar o órgão jurisdicional diante de fatos relevantes não comprovados devidamente, malgrado o empenho das partes e do próprio magistrado.

Citando Chiovenda, esclarece o professor Alfredo Buzaid com toda a razão que “o instituto do ônus da prova é uma parte da teoria da aplicação do direito, porque o Juiz só pode declarar que o preceito jurídico produziu o seu efeito, quando se convence da existência das circunstâncias que constituem os seus pressupostos”.

 

4. A IMPORTÂNCIA DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Parte da doutrina, forte nos ensinamentos de Florian e Manzini, sustenta que carece de qualquer importância a questão do ônus da prova no processo penal.

Alega-se que o poder instrutório outorgado ao Juiz penal pelas modernas legislações retiraria a utilidade prática do instituto. Discute-se também sobre a natureza jurídica da intervenção do Ministério Público no processo penal, negando-lhe a qualidade de parte e atribuindo-lhe exclusivamente deveres, nunca ônus processuais. Podemos passar ao largo destas velhas discussões, embora sedutoras e ainda de grande relevância na teoria do processo penal.

Para prosseguir em nosso caminho, não necessitamos aprofundar estes temas, mormente para não fugir aos modestos limites deste trabalho. Cabe, entretanto, dizer algumas palavras relativamente à postura teórica acima mencionada, forjada principalmente pelos processualistas italianos.

Preliminarmente, deve-se notar que, para aqueles autores, o conceito de ônus processual foi tomado numa perspectiva subjetiva, ou seja, a faculdade de as partes provarem os fatos de seu interesse. Realmente, se o Juiz deve buscar a verdade, ou melhor, deve buscar dados probatórios para formar o seu convencimento, nada obstante a inércia das partes, estas podem se sentir um pouco desestimuladas no campo probatório, limitando-se a fornecer a fonte da prova ao magistrado e aguardando a atuação instrutória oficial. Sob este prisma, ao menos em parte, assiste razão a esta corrente doutrinária.

Veja-se o que dispõe o art. 156 do nosso Código de Processo Penal: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (a atual redação deste dispositivo legal não altera o que dissemos no texto).

Entretanto, deve ser notado também que a possibilidade de o Juiz atuar no campo probatório não elimina o estímulo da parte em demonstrar a veracidade dos fatos que lhe interessam, mas, quando muito, pode mitigá-lo, esmorecê-lo.

A realidade prática demonstra a ânsia com que as partes se lançam em busca de suas provas, mesmo porque elas sabem que o Juiz, por razões diversas, nem sempre tem condições materiais de investigar o ponto duvidoso.

Em matéria tão relevante, ninguém assume risco desta envergadura, sujeitando-se a um resultado adverso no processo penal.

Mas a questão central ainda não é bem essa. A utilidade prática das regras sobre o ônus da prova está em fornecer ao Juiz critérios legais para que possa decidir mesmo diante de fatos incertos. Malgrado todo o empenho das partes e do Juiz em buscar determinada prova, constantemente ocorre que persiste dúvida sobre ponto relevante para o julgamento da pretensão punitiva.

Aqui é que está o cerne da questão, pois o magistrado não pode escusar-se de julgar e, em nosso direito, não existe o instituto da suspensão do processo penal por insuficiência de provas.

É lógico que a possibilidade de o Juiz, de ofício, perquirir sobre a verdade reduz consideravelmente o campo de incertezas no processo penal, mas a realidade mostra que elas sempre existirão.

Por outro lado, não existindo aquelas presunções de veracidade de fatos não provados, próprias do Código de Processo Civil, exige-se que tudo fique cabalmente demonstrado no processo penal, pois todos os fatos relevantes são objeto de prova, mesmo os não impugnados pela parte contrária, salvo aquelas poucas exceções anteriormente apontadas.

Posto que longa, vamos nos valer, ainda mais uma vez, das precisas palavras do saudoso professor José Carlos Barbosa Moreira, as quais bem retratam a posição que vimos de sustentar:

“Obviamente, se não é de uma única procedência que se esperam subsídios, aumenta a probabilidade de um esclarecimento cabal dos fatos relevantes, e na mesma proporção diminuirá a necessidade de recorrer às normas de distribuição do ônus probandi. Jamais se poderá, entretanto, afastar por completo a possibilidade de frustrar-se a investigação. Para estes casos residuais, não haverá outro meio senão utilizar aquele expediente. Como disse Sturner, a repartição do risco da prova é solução necessária para o caso de impossibilidade de esclarecimento, apesar de todos os esforços. Daí reconhecerem muitos, com razão, que a relevância das regras sobre o ônus da prova, consideradas como regras de julgamento, não é incompatível com a adoção do chamado ‘princípio inquisitório’”.

Em síntese lapidar, esclarece Devis Echandia que “no se trata de fijar quién deve llevar La prueba, sino quién asume el riesgo de que falta”.

Ressalte-se que o Código de Processo Civil de 1973, tanto no art. 370, como em diversos outros, permite que o Juiz determine provas que se fizerem necessárias, independentemente de provocação das partes. Nem por isso o legislador sentiu-se desobrigado de regular a distribuição do ônus da prova.

Ora, se o Juiz, valorando livremente a prova, se convencer inteiramente sobre a veracidade dos fatos relevantes para o seu julgamento, tanto melhor, não precisará se utilizar das normas que regulam o ônus da prova.

Diversamente acontecerá nas hipóteses, não raras, de dúvidas irremovíveis, vez que, na sábia afirmação do professor Tornaghi, “as normas disciplinadoras do ônus da prova servem de roteiro ao Juiz para decidir nos casos duvidosos”. Sugestivo, neste particular, é o título que Pasquale Saraceno deu à sua clássica monografia sobre o tema que ora nos ocupa: La decisione sul fatto incerto nel processo penale, Padova, Cedam, 1940.

Diante do exposto, vencidos alguns obstáculos, somos necessariamente introduzidos nos capítulos centrais deste ensaio. Vamos analisar o sistema processual penal vigente e dele extrair algumas conclusões originais, que ao menos poderão ativar o debate sobre matéria de tanta magnitude.

 

5. A REGRA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO REO”

Embora seja aceito por toda a doutrina, não encontramos o indispensável princípio in dubio pro reo sendo utilizado de forma integral, num sistema lógico e harmônico.

Após ampla pesquisa a que procedemos, cujas fontes vão citadas ao final do trabalho, sempre encontramos a aceitação expressa do princípio, numa primeira abordagem, para depois vir ele negado de forma implícita, quando do tratamento do ônus da prova no processo penal.

Vamos ser mais claros: após justificarem o princípio e demonstrarem a sua excelência, alguns autores passam a sustentar que há uma distribuição do ônus da prova semelhante àquela consagrada nos códigos de processo civil.

Autores há que atribuem à acusação o ônus de provar tão somente a prática pelo réu de uma conduta típica. Note-se que, para esta parte da doutrina, a tipicidade é composta apenas de elementos descritivos e normativos. Dolo e culpa pertenceriam à culpabilidade.

Assim, caberia à defesa provar cabalmente a existência de uma excludente de antijuridicidade ou de culpa. A dúvida sobre fatos que ensejariam o reconhecimento de uma destas dirimentes não aproveitaria ao réu, pois o Ministério Público teria provado o que lhe competia e a condenação seria uma consequência inarredável.

A toda evidência, tal posicionamento é o mesmo que negar aplicação ao princípio in dubio pro reo, vez que a dúvida somente lhe favoreceria se estivesse relacionada com fato que devesse ser provado pela acusação (tipicidade). Vale dizer, casos haveria em que o in dubio seria para a defesa e outros em que o in dubio seria para a acusação.

Ora, o princípio in dubio pro reo não admite aplicação parcial, sob pena de se desfigurar. Ou o benefício da dúvida favorece, sempre e em todos os casos, o réu, ou não se adota o princípio. Não há meio-termo, a plenitude está ínsita no princípio, decorrendo mesmo da sua própria natureza.

Desta forma, ainda permanecem em contradição lógico-sistemática aqueles outros autores que distribuem o ônus da prova de forma mais liberal, vez que ainda sustentam que a dúvida sobre uma excludente da ilicitude não favoreceria ao réu. À defesa pertenceria o ônus de provar as causas legais de justificação, pois a tipicidade seria indício da antijuridicidade. À acusação caberia o ônus de provar a tipicidade objetiva e subjetiva.

Esta corrente, embora seja melhor do que a primeira, incide no mesmo equívoco, data venia: acaba negando aplicação ao princípio in dubio pro reo, pois a dúvida sobre a existência de legítima defesa, por exemplo, determinaria a condenação do réu, já que o caráter indiciário do tipo penal levaria à presunção da ilicitude da conduta, somente afastada pela prova plena em contrário do réu.

A experiência demonstra que, na prática, nenhum Juiz condena diante de séria dúvida sobre a existência de uma excludente de ilicitude em favor do réu. Seria o mesmo que negar a própria natureza das coisas e fechar os olhos para a realidade do dia-a-dia forense.

Avulta, aqui, a consideração daqueles princípios salientados no segundo item deste trabalho, decorrente da concepção do processo penal como forma de tutela social da liberdade, bem como da valoração ético-jurídica diversa que deve merecer uma possível absolvição de um culpado e uma possível condenação de um inocente.

Segundo nos parece, esta forma de distribuir o ônus da prova no processo penal condenatório decorre de uma interpretação isolada do caput do citado art. 156 do Código de Processo Penal que diz: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer...”

Em decorrência desta norma, a doutrina imediatamente parte para o exame da teoria do delito, a fim de saber o que deve ser alegado e provado pela acusação e o que deve ser alegado e provado pela defesa.

Aqui nos parece residir o equívoco maior, pois a divisão da infração penal em elementos ou requisitos tem uma finalidade meramente metodológica na ciência penal. O crime é um todo indivisível e o Estado somente poderá, processualmente, ver acolhida a sua pretensão punitiva se provar que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável, vale dizer, este “todo indivisível”. Qualquer presunção, neste particular, somente pode ser reconhecida se estiver determinada na lei, o que não ocorre no direito dos povos cultos.

Fere a consciência de qualquer um admitir que o Estado possa lograr uma condenação em sede penal sem ter o ônus de provar a ilicitude da conduta imputada ao réu. Retomaremos esta questão oportunamente, na parte final deste estudo.

Por ora, fica tão somente uma primeira abordagem crítica à doutrina dominante. De tudo que se expôs, restam algumas conclusões preliminares: a) é preciso dar aplicação integral ao princípio in dubio pro reo, sob pena de negar-lhe qualquer efeito prático; b) urge que interpretemos a regra do art. 156 do Código de Processo Penal de forma conciliatória com tal salutar princípio; c) esta interpretação deve levar em consideração o sistema que se extrai do código vigente, dispensando-se a tomada deste ou daquele elemento do delito para resolver um problema que é primeiramente de ordem processual.

Somos que a desejada compatibilização do princípio in dubio pro reo com o caput do art. 156 pressupõe a resolução de uma questão prévia: o que tem que ser alegado pela acusação na denúncia ou queixa? Isto foi percebido pelo Professor Adalberto José de Camargo Aranha quando asseverou que “o ônus de provar é carregado a quem fez a alegação, importando numa segunda indagação: o que as partes devem alegar? O que compete à acusação e o que cabe à defesa?”

Destarte, a regra do art. 156 deve ser completada pela do art. 41, a fim de que se possa chegar a uma aplicação correta da norma do inc. VII do art. 386, todos do Código de Processo Penal. É a tarefa que nos ocupará em tópico seguinte.

 

6. ACUSAÇÃO PENAL E ÔNUS DA PROVA

Inicialmente, impõe-se mais um esclarecimento de ordem metodológica: a harmonização que procuraremos demonstrar entre o art. 156 e a aplicação integral do princípio in dubio pro reo refere-se ao “resultado abstrato” do julgamento da pretensão punitiva deduzida na denúncia ou queixa.

Se o réu desejar uma absolvição com “conteúdo determinado”, preocupado com os efeitos civis da sentença penal absolutória, terá cabalmente de fazer a sua prova, pois, nesta hipótese, o benefício da dúvida não o socorrerá.

Em outras palavras: não se pode deixar de fazer distinção entre os vários casos de absolvição elencados no art. 386 do Código de Processo Penal, pois o seu inc. VII tem um campo de incidência bem mais amplo, justificando a rejeição da pretensão punitiva estatal se “não existir prova suficiente para a condenação”.

Da mesma forma, os incisos II, V e VI, última parte, do art. 386, do CPP, acolhem hipóteses de absolvição por insuficiência probatória e é justamente sobre a absolvição por carência de provas que estamos trabalhando.

Em conclusão: somente nas hipóteses de certeza, (não de dúvida), é que o réu poderá se beneficiar do disposto nos arts. 65 e 66 do diploma processual penal.

Como a problemática sobre o ônus da prova somente se apresenta nas hipóteses do chamado “fato incerto”, fixemo-nos em apenas examinar como deve decidir o Juiz para acolher ou não o pedido de condenação formulado na peça inaugural do processo, diante de dúvida irremovível sobre fato relevante para o julgamento da pretensão do autor.

Feita esta necessária advertência, estudemos o conteúdo da acusação em nosso sistema processual. Para tanto, vamos nos valer do que escrevemos em ensaio anterior denominado “A imputação alternativa no processo penal”.

Tratando-se de ação penal condenatória, o seu exercício pressupõe a formulação de uma acusação. Esta se compõe basicamente de dois elementos: a imputação e o pedido. Imputação e pedido formam a acusação penal.

O pedido do autor funciona como o objeto do processo, sendo uma manifestação de vontade dirigida à autoridade judiciária, requerendo uma atividade determinada. Conforme magistério de Liebman, todo o desenvolvimento do processo consiste em dar ao pedido o devido seguimento.

Através do pedido, procura o autor fazer valer a sua pretensão, sujeitando o réu ao processo.

Exige o autor a prevalência de seu interesse, funcionando o pedido como exteriorização de uma determinada pretensão, cujos contornos são delimitados pela imputação ou causa de pedir.

Tendo em vista que o pedido na ação penal condenatória é sempre genérico, será a imputação que irá fixar o thema decidendum, ou seja, a própria extensão da prestação jurisdicional.

Na denúncia, esclarece o professor Tourinho Filho, o órgão do Ministério Público pede a condenação do réu. E, para pedi-la, obviamente lhe deve imputar a prática de um crime. O fato criminoso, pois, é a razão do pedido de condenação, a causa petendi.

A imputação, destarte, é a atribuição ao réu da prática de determinada conduta típica, ilícita e culpável, bem como todas as circunstâncias juridicamente relevantes.

Não nos parece correto dizer que a acusação penal limita-se à descrição de um fato típico e ao pedido de condenação. O art. 41 do Código de Processo Penal exige que a denúncia ou queixa contenha “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”, razão pela qual três hipóteses podem ocorrer: a) o autor, ao narrar os fatos circundantes da ação principal atribuída ao réu, faz uma imputação de conduta “criminosa”, como quer a lei, ou seja, tipicidade, ilicitude e culpabilidade. A acusação é apta. b) o autor narra tão somente a conduta principal, sem descrever suas circunstâncias, que permitiriam examinar, em tese, a sua ilicitude e culpabilidade. Neste caso, a peça acusatória deverá ser rejeitada por vício formal (inépcia), nos termos do art. 41 c/c art. 395, I, todos do Código de Processo Penal. c) o autor, ao narrar as circunstâncias da conduta típica, como lhe impõe o art. 41, acaba por atribuir ao réu uma ação lícita ou não reprovável e, neste caso, a peça acusatória não deve também ser recebida, nos termos do art. 395, inc. I, do citado diploma processual.

Note-se que a incidência do art. 397, inc. III, do Código de Processo Penal, dar-se-á quando a denúncia narrar fato criminoso que, no entanto, após a resposta preliminar, com os argumentos e a prova que produza, revela-se, na verdade, atípico, lícito ou não culpável.

No entanto, se esta atipicidade, licitude ou não culpabilidade são nítidas já na narrativa da própria denúncia, então, esta é inepta, por violar a regra do art. 41 do Código de Processo Penal. Em estudo cronologicamente anterior, ao examinar a admissibilidade da acusação e existência de um suporte probatório mínimo do que nela deve ser afirmado, dissemos o seguinte:

“Torna-se necessária ao regular exercício da ação penal a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material do fato típico e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade”.

Desta maneira, sustentamos enfaticamente que a acusação penal deve “alegar” (rectius, atribuir ao réu) não só um fato típico, mas também a sua ilicitude e reprovabilidade. A tipicidade é tomada aqui tanto no seu aspecto objetivo como subjetivo (dolo).

Assim, a dúvida irremovível sobre estes fatos alegados pela acusação leva à absolvição do réu, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal, vale dizer, restaura-se o princípio in dubio pro reo em toda a sua plenitude, sem ferir a letra da lei, mas interpretando o sistema positivo. Aliás, isso é o que está expresso no art. 386, inc. VII, por muitos esquecidos no tratamento do ônus da prova penal.

Dir-se-á: como a acusação poderá atribuir ao réu (“alegar”) o dolo, a culpa em sentido estrito, a inexistência de excludente de ilicitude ou de reprovabilidade de sua conduta? A resposta no plano genérico é fácil e já a fornecemos acima ao estudar o conteúdo da imputação: através da valoração jurídica das circunstâncias que devem ser descritas na denúncia ou queixa (fatos circundantes ao fato principal).

Certo que o dolo é algo que pertence ao conteúdo da vontade do sujeito ativo de uma infração penal. Entretanto, nem por isso, há de falar-se em presunção de dolo no moderno direito processual, pois a sua demonstração será feita através do próprio fato principal e de suas circunstâncias, que devem estar afirmadas na acusação. De há muito já esclarecia o clássico Mittermayer que “não se pode negar que o dolo, o mais das vezes, se demonstra com o auxílio do raciocínio; mas isto é mui diverso de dizer-se que é ele objeto de uma presunção. A intenção faz parte das articulações essenciais da acusação, porque, nos termos da lei, a pena só pode ferir aquele que cometeu o crime deliberadamente; e, se é exato que o acusado de homicídio, por exemplo, tem o direito de exigir que se prove a verdade inteira da imputação, não lhe assiste menos o de reclamar a prova desta parte essencial: a intenção de executar o crime”.

Assim, são os indícios (fatos provados) relativos ao fato que se deseja provar que permitem, por dedução, termos a certeza do factum probandum. A negligência (culpa) será alegada e provada através de fatos que autorizem um juízo de desvalor da conduta praticada pelo réu, por ter agido com a falta de cautela que objetivamente lhe era exigida, podendo ter agido em conformidade com a norma, nas circunstâncias em que, concretamente, se encontrava. O próprio juízo de tipicidade no crime culposo depende desta falta de cuidado objetivo (ação negligente), por tratar-se de tipo aberto. Esta negligência deve ser demonstrada pela ação do réu e suas circunstâncias.

Por derradeiro, vejamos a inexistência de causas de justificação.

A necessidade de sua afirmação na acusação penal não leva, como muitos pensam, a exigir-se do autor alegação e prova de fatos negativos.

Consoante deixamos dito acima, ainda que de maneira implícita, esta questão se resolve através de afirmação de fatos positivos excludentes daqueles que poderiam justificar a conduta atribuída ao réu.

Assim, quando o Ministério Público descreve na denúncia, por exemplo, que o réu matou o ofendido com dois tiros, pelas costas, está assumindo o ônus de provar que assim foi cometido o homicídio. Ao prová-lo, está também demonstrando que a conduta não foi praticada em legítima defesa, por absoluta incompatibilidade.

Através da afirmação das circunstâncias que devem constar da peça acusatória, o autor assume o ônus de prová-las. Tais circunstâncias, por serem demonstrativas da ilicitude e reprovabilidade da conduta imputada ao réu, uma vez provadas, caracterizam a inexistência de tais dirimentes.

A acusação não tem que provar fatos negativos, mas sim fatos positivos que alegou e que excluem a possibilidade da existência daqueles que aproveitariam ao réu.

Vale a pena, neste passo, transcrever as palavras de Michele, quando trata do ônus da prova no processo penal, negando seja ele distribuído entre as partes, como vimos de sustentar: “Manca pertanto una ripartizione vera e própria dell’onere della prova, doe delle conseguenze della incerteza, nella quale Il giudice è rimasto rispeti a dato fatti della causa. Anzi, questa incertezza egli deve risolvere sempre a favore dell’imputato, in virtú del princípio in dubio pro reo, principio che non è se non um aspetto della regola di giudizio del processo penale”. “(...) Sotto questo aspetto si comprende agevolmente perchè in quest’ultimo (processo penale), come si è detto, alia acusa incomba la prova positiva della inesistenza dei fatti che l’escludono. Di conseguenza il giudice dovrá assolvere, quando egli non abbia prova sufficenti che l’imputato abbia commesso il fato addebitatoglio, e cosi pure dovrá assolvere quando manchino prove sufficenti per escludete, ad.es., la legítima defesa”.

E o réu, nada teria que alegar e provar no processo penal? A resposta é que, na realidade, não tem a defesa tais ônus para lograr a absolvição autorizada pelo inciso VII do art. 386 do Código de Processo Penal. O réu apenas nega os fatos alegados pela acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova da acusação.

Em poucas palavras: a dúvida sobre os chamados “fatos da acusação” leva à improcedência da pretensão punitiva, independentemente do comportamento processual do réu.

Na verdade, o réu não formula qualquer pedido no processo penal, tratando-se de ação condenatória. Não manifesta qualquer pretensão própria. Apenas pode se opor à pretensão punitiva do Estado, procurando afastar o acolhimento do pedido do autor.

Mesmo quando o réu alega um fato que poderia caracterizar uma legítima defesa, nada mais faz do que negar os fatos tais como descritos na peça acusatória. Correta, pois, a lição do professor Alfredo Buzaid, invocando o grande Chiovenda: “De ordinário, toda afirmação é ao mesmo tempo uma negação, porque quando se atribui a uma coisa um predicado, se lhe negam os predicados contrários ou diversos”.

Sob um prisma inverso, pode-se afirmar com Bento de Faria que “toda a proposição negativa se decompõe e pode ser analisada em uma ou várias proposições afirmativas”.

Negam-se os fatos da acusação, através de afirmação de fatos com eles incompatíveis.

Assim, não nos parece cientificamente correto resolver a questão do ônus da prova na ação penal condenatória na dependência do que, neste ou naquele caso, foi alegado pela acusação ou pela defesa.

Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor.

Urge, destarte, tratar o problema do ônus da prova dentro de um sistema lógico, em termos genéricos e não casuisticamente.

 Note-se que há negação por parte da defesa, tanto quando nega o fato principal (conduta ou núcleo verbal do tipo), como quando nega as suas circunstâncias (fatos circundantes do fato principal), caracterizadoras ou não de sua ilicitude.

O réu, ao dizer que matou de uma determinada forma que justificaria a sua conduta típica, não está acrescendo fato ao thema decidendum, mas apenas negando aquelas circunstâncias narradas na denúncia.

Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega fatos, atribuindo-os ao réu. Eventual “alegação” deste, será tão somente aparente, vez que juridicamente deve ser reputada como mera negação dos fatos alegados na denúncia ou queixa.

Pomos mais um exemplo, para melhor compreensão de nosso pensamento ao nível do concreto: quando o réu apresenta um álibi, dizendo que no dia e hora do crime se encontrava em lugar distante, não está alegando fato positivo diverso, mas apenas negando o que lhe é atribuído na denúncia. Assim, a dúvida sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É intuitivo.

Desta maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor com o ônus de provar aquilo que originalmente afirmou.

Pelo sistema proposto, ao réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, porque a dúvida demonstra apenas que a acusação não logrou convencer o órgão jurisdicional de que o acusado praticou uma infração penal (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), como afirmado na peça acusatória. Pelo nosso entendimento, a regra do art. 156, caput, conjugada com a do art. 41, harmoniza-se com o disposto no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal, que consagra o princípio in dubio pro reo.

Isto deve valer, inclusive, para as causas de extinção da punibilidade, vez que também dizem respeito ao poder-dever de punir (ius puniendi) do Estado, afirmado existente na denúncia ou queixa, de forma expressa ou implícita. Ressalvem-se, entretanto, aqueles resquícios do sistema da prova legal, como a regra do art. 62 do Código de Processo Penal. Neste sentido deve ser interpretado o art. 5º, inc. LVII, da nova Constituição.

De forma esclarecedora, o legislador reformista (lei n. 11.690/08) expressamente previu, no art. 386, inc. VI, última parte, do CPP, que a dúvida sobre as excludentes de ilicitude devem levar à absolvição, corroborando tudo que tem sido dito aqui.

Como espécie de recapitulação e dentro de uma perspectiva didática, retiramos algumas assertivas em forma de conclusões, malgrado sejam elas melhor compreendidas no contexto:

a) o sistema processual penal, como forma de tutela da liberdade, deve ser interpretado dentro de uma perspectiva própria, decorrente da constatação de que ao Estado também não interessa a condenação de um possível inocente, sendo mesmo preferível o risco de absolvição de um culpado;

b) a questão do ônus da prova, objetivamente considerada, refere-se ao chamado fato incerto, funcionando como regra técnico-jurídica para o Juiz decidir nos casos de dúvida irremovível;

c) os poderes instrutórios outorgados ao Juiz pela segunda parte do art. 156 do Código de Processo Penal, decorrente do princípio da busca da verdade real, não tornam irrelevante a perquirição do ônus da prova no processo penal, pois, nada obstante todo o esforço probatório do Juiz e das partes, constantemente resta ponto duvidoso relevante para o julgamento da pretensão do autor;

d) diante do direito positivo vigente, urge que se construa um sistema lógico-jurídico que compatibilize a regra do art. 156, caput, com o princípio in dubio pro reo, consagrado no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal;

e) para tanto, impõe-se indagar preliminarmente o que compete às partes alegar, diante da estrutura processual do sistema acusatório moderno, levando em linha de conta uma interpretação do art. 41 do Código de Processo Penal consentânea com os princípios da ampla defesa e do contraditório, expressos na Constituição da República;

f) entendemos que o legislador, ao exigir que a denúncia ou queixa contenha a descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, impõe ao autor da ação penal condenatória uma imputação ao réu de conduta típica, ilícita e culpável, com suporte mínimo na prova do inquérito ou peças de informação;

g) a ilicitude ou culpabilidade devem ser depreendidas das circunstâncias do fato principal, narradas necessariamente na peça acusatória, sendo ônus do autor provar suficientemente a existência destas circunstâncias que afirmou;

h) no processo penal acusatório moderno, ao réu basta tão somente opor-se à pretensão do autor, através de pura negativa dos fatos da acusação ou através de negativa qualificada por afirmação de fatos excludentes daqueles que lhe são imputados na peça acusatória;

i) a dúvida sobre fato relevante para o julgamento da pretensão punitiva, desta forma, resume-se em dúvida sobre a acusação penal, determinando a absolvição do réu por insuficiência de prova; j) o ônus da prova, na ação penal condenatória, é todo da acusação e relaciona-se com todos os fatos constitutivos do poder-dever de punir do Estado, afirmado na denúncia ou queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do art. 156, caput, do Código de Processo Penal com o salutar princípio in dubio pro reo.

 

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