O odor do parasita como o cheiro de pobre: breve apontamento sobre a desigualdade retratada em “Parasita” e a questão do cárcere brasileiro

05/04/2020

Com a pandemia do COVID-19 assombrando a vida[1] de muitos, questões como o racismo e a xenofobia voltam à tona para nos lembrar que nunca deixaram de existir. São questões que apenas têm a evidência reduzida de tempos em tempos. No estágio atual da civilização, tem-se a presença de culturas diversas dividindo os mesmos ambientes, resultando assim num fenômeno próprio que recebe a atenção de várias áreas do saber, as quais lançam seus olhares metodológicos característicos com o fito de se buscar uma melhor compreensão da dinâmica de como as relação humanas operam. Isso não é diferente quando se fala de cinema.

No ano de 2019, ocorreu a ascensão de filmes fora da realidade americana que alcançaram grandes premiações. Foi assim que “Parasita”[2] ganhou as telas do mundo todo, um filme sul-coreano que levanta inúmeras problemáticas de questões sociais, ensejando na criação de uma atmosfera particular na qual o público mantém os olhos vidrados com o desenrolar das cenas, buscando capturar as tantas críticas presentes nessa película coreana. Não foi à toa que “Parasita” ganhou a atenção de não apenas Hollywood, mas também de todo o globo.

O filme retrata a história de uma família que, obstinada em mudar de vida, infiltra-se em um grupo familiar de classe média alta. O enredo traz ao público sensações múltiplas ao envolver suspense e comédia nas mesmas cenas, além de escancarar o preconceito velado dos patrões para com seus empregados.

Nesta conjuntura, “Parasita” aborda, além dos diversos outros temas que apimentam a narrativa da obra, a questão do cheiro da família pobre. Esse personagem invisível, a saber, o odor do pobre, traz para a discussão o descaso com a qual o poder público trata as pessoas de menor poder aquisitivo. O cheiro de abandono e injustiças impregnado nos moradores do porão incomoda os detentores do capital, ao passo que constrói uma barreira invisível entre as duas realidades.

O enredo bem articulado clama de uma forma sútil para que o espectador perceba o preconceito diário vivido pelo motorista, uma vez que este é alvo das principais críticas em relação ao seu cheiro. O pai da família pobre, mesmo com trajes finos, não se desvincula de sua essência e do seu cheiro. A questão do odor, que já foi trabalhada alhures sob outra perspectiva[3], é a peça principal dessa breve abordagem.

No Brasil (mas não apenas), tem-se a problemática da desigualdade social deveras gritante, onde os presídios possuem uma porcentagem alarmante de pessoas de classe baixa e miserável. Não foi à toa ao sistema carcerário brasileiro foi declarado o Estado de Coisas Inconstitucional quando do julgamento da ADPF 347. Nesse ambiente, o cheiro da pobreza se sobressai, pois em uma sociedade desigual a regra é simples: lugar de pobre é na cadeia!

Os presídios brasileiros estão em crise, o que se evidencia pela notória superlotação, resultado de um trabalho falho por parte do Estado, que peca ao não dar à prisão aquele sentido que é atribuído pelo discurso oficial. Nesse contexto, tem-se a operacionalização do fenômeno da reincidência, pelo que “é possível afirmar que o sistema penitenciário não tem eficácia na prevenção e combate da criminalidade[4]. Também não se pode também ignorar os números consideráveis presentes no cárcere que se tratam de presos provisórios – esses que aguardam pesarosamente pelos seus julgamentos. É ao considerar a problemática imperante no cárcere que também aqui se diz, num exercício comparativo, que ao se adentrar no sistema carcerário brasileiro, pode-se sentir o mesmo cheiro que o patrão de Ki-taek (patriarca da família pobre) sentiu, qual seja, o cheiro do descaso.

Notório é o fato de não há estabelecimento penitenciário brasileiro que siga a contento todas as normas e exigências estabelecidas na Lei de Execução Penal[5], estando aí incluídos a inobservância dos direitos políticos, assistenciais, educacionais, de higiene básica e outros. Os presídios, pela sua constituição, pelas problemáticas envoltas, ferem a dignidade humana da pessoa do condenado, uma vez que não há efetivo compromisso por parte do Estado para vale tudo aquilo que é pregado pelo discurso oficial, pelo que é possível dizer que “a obscuridade da instituição prisão [...] permite um sem-número de crimes, violências e abusos, tudo devidamente protegido e camuflado pelo Estado[6].

O escopo, de todo modo, na presente abordagem, se dá na ligação comparativa do cheiro do cárcere com aquele cheiro que tanto causa incômodo em “Parasita”. O cheiro constitui e significa. Representa algo. É sabido que o filme é base para debates diversos, pois escancara que o “parasita” pode ser qualquer pessoa, até aquele que menos se imagina possa ser. Além do mais, o personagem invisível objeto dessa exposição cumpre o seu papel ao apontar o abismo entre as classes, bem como assumir o papel de um fantasma, deixando claro que não tem como se matar um fantasma e que ele sempre estará presente, seja pelo cheiro ou por outros detalhes que sempre faze com que uma camada social se sobressaia a outra.

Chantal Jaquet, ao lançar um olhar filosófico sobre a questão do cheiro, indaga justamente se a filosofia poderia “constituir o odor e o olfato como objetos do pensamento e promover uma olfatologia racional que amplie e enriqueça seu campo de investigação tradicional[7]. Para a filósofa, a reflexão sobre o papel do odor no plano estético é algo devido e salutar, uma vez que o cheiro sempre adquiriu um lugar especial na sociedade em geral – em suas várias vertentes e em suas diversas formas de manifestação.

No caso do cárcere, ou ainda na classe social representada pela família pobre em “Parasita”, o cheiro recebe justamente esse contorno observável pelo plano estético. É a partir do odor que se cataloga aquela classe tida como indigna, que se escancara o que é merecedor de pena ou de escárnio, que se afasta do corpo social o outro que é rejeitado por conta de uma situação preestabelecida. É também a partir do cheiro que o cárcere evidencia sua cruel faceta, que a penitenciária escancara a violência nela contida, que se busca a neutralização daqueles que integram esse sistema que podre - podridão essa que enseja justamente no aspecto fétido do odor.

O cheiro, assim, representa. Constitui um algo que é digno de menção e observância, merecendo ter a atenção voltada para todos os elementos pelos quais é constituído – os de base, os centrais e os que o circunda.

Que se preste a devida atenção à forma com a qual é sentido o cheiro daquele que é entendido como o parasita. Algo aí há a se observar...

 

Notas e Referências

[1] O presente breve escrito é um dos textos que pautam as discussões dos encontros do grupo “Luz, Câmera e Direito” – que promove uma espécie de “cine debate” de maneira pretensiosamente despretensiosa. 

[3] Diz-se do odor como elemento desencadeante de um dos crimes que acontece no filme, de modo que tal fator funciona como uma espécie de clique que “possui ligação com o cheiro”, tendo se trabalhado tal questão via culpabilidade com alguns traços psicanalíticos. Conferir em: SILAS FILHO, Paulo; ZUCCO, Larissa. O clique de “Parasita” e alguns traços da culpabilidade. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/o-clique-de-parasita-e-alguns-tracos-da-culpabilidade/. Canal Ciências Criminais. ISSN: 2446-8150. Acesso em: 30/03/2020.

[4] DASSI, Maria Angélica Lacerda Marin. A pena de prisão e a realidade carcerária brasileira: uma análise crítica. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/bh/maria_angelica_lacerda_marin_dassi.pdf. Acesso em: 24 de março de 2020.

[5] MURARO, Mariel. Sistema prisional brasileiro e direitos humanos. Disponível em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/413681359/sistema-prisional-brasileiro-e-direitos-humanos. Canal Ciências Criminais. ISSN: 2446-8150. Acesso em: 30 de março de 2020.

[6] VALOIS, Luís Carlos. Processo de Execução Penal e o Estado de Coisas Inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2019. p. 68.

[7] JAQUET, Chantal. Filosofia do Odor. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 10

 

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