O “novo” pacote de medidas anticorrupção: um Frankenstein a serviço do Congresso

14/12/2016

 Por Rodrigo Bueno Gusso e Bruno Trento Hein - 14/12/2016

Nos atuais dias, em que a turbulência política assombra Brasília e seus atores, causando espanto em boa parte da população brasileira, convém aqui tecer alguns comentários sobre o nefasto projeto de lei que trata das medidas anticorrupção. A conveniência de tratar esse tema não se resume apenas em uma análise de seus critérios técnicos e jurídicos, vai além disso, uma vez que entendemos essa discussão, dissimulada sob o argumento do “melhor para o povo”, como um mecanismo de disputa política e institucional e de resistência frente às ações estatais na atividade de investigação.

Aprovado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei do Senado Federal nº 280/2016 é fruto de uma bandeira idealizada e defendida pelo Ministério Público Federal. Em resumo, trata-se de propor, via legislativo, várias medidas anticorrupção, que pudessem, pelo menos em parte, saciar o desejo social que prima por um ehtos político, mais ético e honesto. Ora, se essa ideia inicial é digna, não foi bem isso que aconteceu durante a tramitação da referida proposta na Câmara dos Deputados.

A desfiguração do projeto inicial, da maneira em que foi feita (à surdina madrugada de um luto coletivo em que 71 pessoas, a maioria brasileiros, perderam a vida), assim como a tentativa de prevalecer o interesse individual e obscuro dos legisladores, causa-nos um arrepio que beira o descrédito e a tristeza.  Essa “boa vontade” legislativa é, no mínimo, questionável, sendo oportuno mencionar que os mais interessados na aprovação do referido projeto são justamente os principais alvos da operação Lava Jato, sem desconsiderar, ainda, que o regime de urgência para votação do projeto de lei foi, oportunamente, solicitado neste período em que diversas autoridades políticas vêm sendo responsabilizadas criminalmente como consequência do êxito das investigações da referida Operação. Trata-se de uma nítida manifestação do denominado direito penal de emergência, em que se abandonam preceitos constitucionais e legais, ignorando-se a melhor técnica legislativa, com a finalidade de inovar o ordenamento jurídico atendendo aos interesses unicamente corporativos.

Você, cidadão honesto que ainda não se cansou de indignar-se, não se iluda: O novo texto do pacote de medidas anticorrupção, não é mais um modelo bonito, vistoso, saudável, que agrada os olhos de quem o vê desfilando na passarela, pelo contrário, desfigurado por emendas apresentadas na calada da noite, virou um Frankenstein a serviço de seus criadores, no caso, nossos legisladores. Mas, eles, diferentemente do enredo proposto por Mary Schelley, ao verem sua obra final no interior de um laboratório, não sentem vergonha de seu monstro, tampouco o abandonam. Diversamente, esperam agora de forma ansiosa sua aprovação no Senado Federal.

Trata-se de inequívoca artimanha legislativa que serve para salvaguardar os interesses escusos e individuais de parte da classe política brasileira, especialmente daquela lameada pelas investigações criminais. É a criação de um instrumento de resistência política e criminosa frente às investigações, prisões, denúncias e condenações dos agentes políticos corruptos, no que se refere às atividades investigativas realizadas pelas Polícias Judiciárias e Ministério Público. Caso aprovado, produzirá reflexos e consequências negativas na atividade jurisdicional, em inequívoca violação à independência funcional no poder decisório das autoridades estatais e afronta à segurança jurídica.

Dos retalhos que compõem o corpo desse monstro, lembrando que das dez medidas originariamente previstas, apenas uma foi mantida em sua integralidade, apontamos aquelas que mais nos causa indignação, uma vez que, da forma em que foram elaboradas, atendem interesses meramente individuais: a) A inclusão de uma emenda que prevê a possibilidade de punição para membros do Ministério Público e Poder Judiciário pelo crime de abuso de autoridade; b) A rejeição de pontos que preveem a tipificação penal para o crime de enriquecimento ilícito de funcionário público; c) A rejeição da proposta que recrudesce a prescrição penal em crimes correlatos, assim como a perda de bens adquiridos mediante atividade criminosa; d) A retirada da figura do delator benéfico, cuja atividade proporcionaria uma maior eficácia quanto a elucidação dos crimes; e) A retirada da possibilidade da punição a partidos políticos e seus dirigentes que cometeram crimes, como a cassação e perda de registro; f) e, não esquecendo, a inclusão da famigerada emenda que prevê a anistia de doadores e recebedores de dinheiro não declarado à justiça eleitoral, vulgarmente conhecido como caixa dois. São essas as propostas, dentre várias outras emendas sugeridas, que visam dificultar o recrudescimento da legislação pertinente aos atos de corrupção brasileiros. Tudo isso, discutido na noite de uma quarta feira, de forma manifestamente precipitada, repentina e, acredite, em regime de urgência e emergencial.

O projeto se apresenta como verdadeiro instrumento intimidatório às autoridades competentes de poder de decisão no processo penal. Além das emendas citadas acima, que visam claramente à impunidade, evidencia-se a criação de dispositivos e responsabilidades absurdas aos representantes dos órgãos estatais, o que, certamente, produzirão verdadeiras restrições e coerções às atividades de investigações, realizadas pela Polícia Judiciária e/ou pelo Ministério Público. Por outro lado, ampliam-se os direitos e garantias dos supostos criminosos, sem qualquer motivação idônea e juridicamente proporcional. Ora, nesse sentido é fácil perceber a “boa” intenção dos nossos legisladores: Aumentar a proteção jurídica dos supostos criminosos por meio de restrições às atividades legais estatais, notadamente as atividades investigativas. Sabe-se que as atuações dos referidos órgãos, no combate à corrupção sistêmica no país, vêm sendo presenciadas notadamente com a Operação Lava Jato e amplamente difundidas pela imprensa nacional.

A consequência é ainda mais nefasta quando pensarmos que, com a eventual e temerária promulgação do novel diploma, os representantes dos órgãos incumbidos da atividade de investigação de delitos não poderão decidir conforme sua motivada convicção jurídica e independência funcional extraídas dos elementos de informações e provas apurados na investigação.  Explicando melhor, a lei tipifica condutas como crimes de responsabilidade aos promotores e juízes tais como “faltar com o decoro”, conduta que, por si só, é capaz de responsabilizar as referidas autoridades com sanção de perda do cargo público. É visível a inconstitucionalidade retratada neste exemplo, pois afronta diretamente o princípio da legalidade em sua vertente taxatividade.

No que se refere a atual lei de abuso de autoridade, reconhecemos suas críticas, especialmente quanto à falta de efetividade, procedimentos inadequados para a apuração do abuso, sanções demasiadamente brandas, falta de técnica legislativa entre outras. Sabemos que ela precisa ser repensada, atualizada e reformulada. Nesse sentido, há muito se espera por uma mudança do diploma legal que melhor salvaguardasse os direitos e garantias da sociedade, todavia, após sua devida reflexão e discussão minuciosa de seus dispositivos e bens jurídicos protegidos. Fato este que, infelizmente, não aconteceu, pois a manutenção de sua essência de proteção aos interesses da Administração da Justiça e sua conformação com o ordenamento jurídico em consonância com a ordem constitucional foram relegados a um segundo plano.

Obviamente que tais agentes públicos (policiais, Delegados de Polícia, Promotores de Justiça, Magistrados etc.) devem ser investigados e responsabilizados pela prática de crime de abuso de autoridade quando assim comprovados, todavia, o que se pretende deixar claro é que se estaria punindo atividades que decorrem da própria competência constitucional e atribuições legais conferidas a esses servidores. Indaga-se: Caso a autoridade policial instaure procedimento para investigação de crime supostamente praticado e, após a conclusão da investigação e do processo criminal, decida-se pela absolvição do réu pelo Poder Judiciário, a não condenação do réu, por si só, constituiria crime de abuso de autoridade passível de punição com perda do cargo público? Da mesma forma o policial que simplesmente cumpriu seu dever legal de investigar e apurar o suposto delito? E o magistrado que recebeu a denúncia “infundada” oferecida pelo Ministério Público, este fato, por si só, ensejaria sua responsabilização? A lei não é taxativa nesse sentido. É dever do Estado investigar, processar e, conforme o caso, condenar ou absolver. Muito embora, com o advento da nova lei, nos exemplos abordados, as autoridades competentes seriam, em tese, responsabilizadas, sujeitas à sanção extrema, inclusive, de perda do cargo público pelo estrito e mero cumprimento de seus deveres legais.

Esse projeto de lei, uma vez aprovado e sancionado, representará o maior inimigo no combate à corrupção brasileira. É uma medida que ampliará a proteção dos investigados, denunciados e condenados pela prática de crimes. O crime organizado, em contrapartida, infelizmente, agradece!


Rodrigo Bueno Gusso é Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal; Doutor em Sociologia (UFPR); Mestre em Direito (Univali-SC); Especialista em Segurança Pública (PUC-RS); Bacharel em Direito; Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Polícia (LEPOL) do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (CESPDH-UFPR). Professor da Academia da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina; Professor de cursos de graduação, pós-graduação e formação de policiais civis, militares, guardas municipais e agentes penitenciários. Temática de Pesquisa: Políticas Públicas, Controle Social, Crime e Punição. Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina.


bruno-trento-hein. . Bruno Trento Hein é ex-Delegado de Polícia Civil no Estado de Mato Grosso do Sul. Pós graduando pela Fempar - Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Frankenstein // Foto de: Jonathan Powell // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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