O NOVO CRIME DE DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA

07/01/2021

A recente Lei n. 14.110, de 18 de dezembro de 2020, alterou art. 339 do Código Penal, para dar nova redação ao crime de denunciação caluniosa.

Pela nova lei, o “caput” do art. 339 passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 339. Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente: (...)”

Como é cediço, o crime de denunciação caluniosa tem como objetividade jurídica a proteção à Administração da Justiça, no que concerne à inutilidade de o Estado ser acionado diante de falsa comunicação de prática delituosa. Tutela o dispositivo, secundariamente, a honra da pessoa atingida.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, inclusive o funcionário público. Evidentemente que um Delegado de Polícia ou um Promotor de Justiça, por exemplo, cientes de que uma pessoa é inocente, poderiam incorrer no delito de denunciação caluniosa se acaso instaurasse inquérito policial, o primeiro, ou procedimento investigatório criminal ou processo judicial, o segundo, agindo, no caso, com dolo direto.

Até mesmo o advogado, em situações determinadas, pode ser coautor do crime, como já decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: “Denunciação caluniosa — Coautor — Advogado que, em nome do cliente, subscreveu requerimento de instauração de inquérito policial que veio a ser arquivado, eis que provada a falsidade da imputação — Denúncia fundada em elementos colhidos do inquérito, indicando que o paciente, ao subscrever o requerimento, sabia ser falsa a imputação feita à vítima — Justa causa para a ação penal — Ordem denegada” (TJSP — Rel. Carlos Bueno — HC 116.170-3 — São Paulo — 18-11-1991).

Ou, ainda: “Advogado — Denunciação caluniosa — Causídico que por força de mandato oferece representação em face de Promotor de Justiça por crime de tortura em sua modalidade omissiva, dando causa a investigação de natureza policial posteriormente arquivada — Necessidade de fazer prova de que desconhecia completamente a falsidade da imputação e que agiu de acordo com a orientação de seu cliente, sob pena de ser responsabilizado em coautoria pelo crime” (TJSP — RT, 776/583).

Sujeito passivo é o Estado e, secundariamente, a pessoa atingida em sua honra pela denunciação caluniosa.

A conduta típica consiste em dar causa (originar, motivar) à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente.

A redação atual do dispositivo é mais técnica e veio a corrigir algumas imprecisões e lacunas anteriores.

Vale lembrar que a redação originária datava de 1940, tendo sido modificada no ano 2000, por força da Lei n. 10.028, que, além de instauração de investigação policial e processo judicial, que já constavam como elementos objetivos do tipo, incluiu também “instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa”.

A redação dada pela recente Lei n. 14.110/20 substituiu a “instauração de investigação policial” por “instauração de inquérito policial” e de “procedimento investigatório criminal”, este último a cargo do Ministério Público, conforme disciplina a Resolução n. 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP.

A nova redação substituiu também “investigação administrativa” por “processo administrativo disciplinar”, terminologia mais técnica, mantendo “inquérito civil” e “ação de improbidade administrativa”.

A indevida imputação, ademais, deve ser de crime, de infração ético-disciplinar ou de ato ímprobo, esses dois últimos incluídos pela nova lei.

Trata-se de crime doloso, sendo necessário que o agente tenha consciência de que o sujeito passivo é inocente. O tipo penal requer o dolo direto. Não concordamos com a possibilidade de dolo eventual, ainda que, evidentemente, a ciência da inocência do imputado esteja na consciência do agente e não na vontade de praticar a conduta. O único exemplo, geralmente apresentado pelos defensores da possibilidade de dolo eventual, dá conta de um agente que, sem diretamente dar causa à desnecessária movimentação da máquina estatal, propaga a terceiros que determinada pessoa praticou um delito, sabendo-a inocente, fato esse que vem, por vias transversas, a chegar ao conhecimento da autoridade policial, que instaurar inquérito policial. Ora, além de fantasioso e bastante improvável, o exemplo não retrata devidamente a ocorrência do dolo eventual, para cuja existência o agente deve prever o resultado e nada fazer para evitá-lo, agindo com total indiferença em relação a ele e assumindo o risco de sua ocorrência.

Outrossim, não caracteriza o crime de denunciação caluniosa a conduta do agente que, simplesmente apresentando à polícia dados que possui, solicita investigação a respeito de alguém suspeito.

O crime se consuma com a efetiva instauração do inquérito policial (e não mais apenas com diligências investigativas preliminares) ou do procedimento investigatório criminal, com o início do processo judicial ou do processo administrativo disciplinar, e, ainda, com a instauração do inquérito civil (arts. 25, IV, da Lei n. 8.625/93 e 8.º, § 1.º, da Lei n. 7.347/85) ou com a propositura da ação de improbidade administrativa (art. 17 da Lei n. 8.429/92).

Embora a lei não condicione a instauração da ação penal pela prática do crime de denunciação caluniosa ao arquivamento do inquérito policial aberto a pedido do agente, ou à absolvição da vítima no processo eventualmente intentado, tal providência pode auxiliar a reforçar o caráter de falsidade à imputação e a inocência da vítima.

Assim: “Não é pressuposto da instauração da ação penal o arquivamento de inquérito policial aberto a pedido do indigitado autor do crime de denunciação caluniosa para só então valer aquele como peça de informação à ‘persecutio criminis’ do Estado, através do Ministério Público” (STF — RT, 568/373).

A tentativa é admitida, uma vez que fracionável o “iter criminis”.

Vale ressaltar que, muito embora parcela da doutrina pátria, com apoio em algumas decisões dos Tribunais, sustente que o crime de denunciação caluniosa absorve o crime de calúnia, a verdade é que se trata de figuras absolutamente distintas, não ocorrendo, a nosso ver, a consunção. Na denunciação caluniosa, protege-se a Administração da Justiça, punindo aquele que aciona os mecanismos estatais de investigação e repressão desnecessariamente. Na calúnia, o bem jurídico tutelado é a honra, no particular aspecto da reputação do sujeito passivo (honra objetiva). Na denunciação caluniosa, o agente provoca a instauração de inquérito policial, de procedimento de investigação criminal etc contra a vítima, enquanto na calúnia basta a simples imputação falsa de fato definido como crime. E, por fim, a denunciação caluniosa é crime de ação penal pública incondicionada, enquanto a calúnia, em regra, é crime de ação penal privada.

Por fim, foram mantidos intactos os parágrafos 1º e 2º do art. 339, que tratam, respectivamente, da denunciação caluniosa circunstanciada (que ocorre quando o sujeito ativo se utiliza do anonimato ou de nome falso) e da denunciação caluniosa privilegiada (quando a imputação falsa diz respeito a fato contravencional).

 

Imagem Ilustrativa do Post: Worshipful Master's Gavel // Foto de: Bill Bradford // Sem alterações

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