Introdução.
É provável que você algum dia vá ouvir ou já ouviu falar na teoria de desenvolvimento antropocêntrico. Segundo narrativa histórica, o mundo antropoceno pode ser estudado desde os filósofos gregos, porém, foi melhor percebido pela sociedade a partir da primeira revolução industrial, datada de 1850. O antropocentrismo descreve um comportamento do homo sapiens capaz de modificar os parâmetros biológicos e físicos do planeta terra a partir de ações que interferem no uso, disponibilidade e regeneração dos recursos naturais.
Um olhar atento à ação humana global revela que o homo sapiens utiliza os recursos naturais de forma irresponsável, seja para produção de alimentos, seja para organização da sociedade urbana, seja para o desenvolvimento industrial, seja para favorecer a economia através incentivo ao consumo; e sempre pelo viés utilitarista da natureza.
A perspectiva utilitarista da natureza pode ser medida pelas inúmeras intervenções do homem no ambiente natural, inicialmente realizadas focalmente nos países de forma isolada e depois assumindo proporções internacionais com a globalização da economia no pós-segunda guerra mundial.
Registra-se que o mundo contemporâneo, além de estar interligação por um sofisticado sistema de comunicação e por uma economia de mercado e transações comerciais internacionais, também vivencia coletivamente os rebotes da natureza em detrimento das alterações realizadas pelo homem no meio ambiente natural, com destaque para os problemas relacionados com o clima (aquecimento global), cuja resposta da natureza às medidas adotados pelo homem no uso indiscriminado e irresponsável dos recursos naturais tem se mostrado catastrófica por todo o globo terrestre.
As gerações contemporâneas, criadas dentro de um parâmetro social que associa emancipação econômica, felicidade e prosperidade ao consumo material, ou seja, o conceito de Ser Humano feliz e prospero encontra-se interligado ao padrão de consumo, não importando a existência de limites na exploração dos recursos naturais (matéria prima); estão diante de um “quadro” planetário pintado com pincel do desmatamento e com a tinta de líquidos tóxicos, sem saber se haverá futuro.
Emerge a necessidade de que os Seres Humanos contemporâneos substituam as lentes pelas quais enxergam o mundo e promovam uma ruptura quanto a forma e o modelo de desenvolvimento da sociedade, delimitando limites ao crescimento econômico e ao consumo, responsáveis direitos pela exploração dos recursos naturais.
A questão, entretanto, é saber se a manutenção do modelo de desenvolvimento antropoceno será capaz de manter os padrões de qualidade de vida na terra em condições dignas a todos os Seres Humanos. Dizendo de outra forma, se a troca das lentes, a imposição de limites e a inclusão da tecnologia poderá garantir a subsistência do modelo de sociedade vigente a partir dos limites da natureza.
O mundo antropoceno e as contradições.
Um dos paradoxos do mundo antropoceno é a relação entre o crescimento demográfico e a garantia de qualidade de vida para todos. Segundo Léna e Isseberner[1] o reconhecimento da existência de limites à expansão demo-econômica revela muitos paradoxos que a narrativa dominante mascarava. Para explicar, os autores trabalham com a relação entre o crescimento demográfico, a pegada ecológica e a geração de emprego e renda. Assim, a indagação é como distribuir renda (poder aquisitivo) para todos, em especial para as camadas populares, geralmente presentes nos países mais pobres, gerando emprego e renda, o que se traduziria em aumento do consumo e, portanto, aumento na Pegada Ecológica (Pegada ecológica é uma expressão traduzida do inglês ecological footprint e refere-se, à quantidade de terra e água, medida hectares, que seria necessária para sustentar as gerações atuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos, gastos por uma determinada população, sem explorar intensivamente os recursos naturais).
O conceito de antropoceno, portanto, contribui para dar coerência a uma narrativa, baseada em pesquisas científicas e que aponta uma resposta para o paradoxo do mundo antropoceno, ou seja, a de que a sociedade vive em um planeta finito e que a manutenção das condições de crescimento demo-econômico podem resultar, ao contrário do que a geração contemporânea espera (felicidade e bem-estar a partir da garantia de consumo de bens materiais), na extinção dos recursos naturais e na dificuldade de manter a vida no planeta.
O modelo antropoceno, e consequentemente a noção de limite à ação humana, foi denunciado quando a proposta de desenvolvimento econômico rompeu com os limites toleráveis do planeta. Os cientistas Rockstron e Steffen[2] estudado os limites ecológicos aceitáveis, compreenderam que o planeta precisa de cuidado e que a ruptura dos limites ecológicos levariam o planeta ao colapso. Os “nove limites ecológicos planetários” são: 1) perda da biodiversidade; 2) mudança climática; 3) ciclo bioquímico (ciclo do nitrogênio e ciclo do fosforo); 4) abusos no uso da terra; 5) acidificação dos oceanos; 6) mudança no uso da água; 7) degradação da camada de ozônio; 8) carregamento de aerossóis para a atmosfera; 9) poluição química.
Os estudos revelaram que dos “nove limites ecológicos planetários”, a sociedade contemporânea convive com quadro limites que já foram ultrapassados, quais sejam: a) a perda da biodiversidade; b) as mudanças climáticas; c) as alterações no ciclo bioquímico e d) o abuso no uso da terra.
O paradigma antropoceno não consegue, considerando o formato do crescimento econômico, tratar os limites ecológicos planetários, cuja infringência pressupõe danos irreparáveis à civilização humana. Igualmente, o universo antropoceno não considera a existência de uma inter-relação ecossistêmica entre os “nove limites ecológicos planetários”, de forma que, por exemplo, a degradação da camada de ozônio permite que as radiações ultravioletas atinjam a superfície da terra, que por sua vez gera a mudança climática e que por sua vez altera as condições de uso da terra, atingindo em especial o setor agrícola, que por sua vez faz o alimento aumentar de preço ou exige o maior incremento de produtos químicos nas lavouras para garantir a safra. As consequências para o Ser Humano são infinitas e de toda ordem.
Raworth (citado por Lena e Isseberner, p. 210), aprofundando os estudos de Rockstron e Steffen, acrescentou, aos “nove limites”, os limites sociais abaixo dos quais uma sociedade decente não deve cair para poder satisfazer as necessidades básicas dos cidadãos.
A compreensão geral é de que há um paradoxo intransponível no modelo antropoceno, pois, se de um lado a sociedade contemporânea já ultrapassou os limites de sustentabilidade ecológica do planeta, por outro lado é esperado um aumento da população mundial e uma melhor distribuição da renda nos países periféricos (ou seja, aumento do consumo). Logo, a questão é simples: como garantir a manutenção do crescimento econômico, a distribuição de renda e o consumo, sem aumentar a pegada ecológica (sem aumentar o uso dos recursos naturais para além dos limites toleráveis do planeta)?
Para os economistas “clássicos”, defensores da teoria da econômica ambiental vigente, a solução ao paradigma deverá vir da inovação tecnológica e da disjunção entre o índice que mede Produto Interno Bruto – PIB e a pegada ecológica - PE. No que diz respeito à inovação tecnológica, espera-se que a evolução seja capaz de produzir tecnologias que possam substituir (ou reduzir) o uso dos produtos e recursos naturais em qualidade e quantidade necessária à manutenção da vida no planeta de forma sustentável. Já em relação ao desacoplamento entre produto interno bruto e a pegada ecológica, a questão encontra barreiras no modelo político-econômico do desenvolvimento global e na soberania dos países, ou seja, a solução, se for viável, dependerá essencialmente de um consenso que se traduza em práticas reais entre os líderes mundiais.
Vê-se que o mundo antropoceno compreende, primeiro, o uso dos recursos naturais do planeta terra em um regime de exploração para proveito humano; segundo, que o uso indiscriminado dos recursos naturais (antes abundantes) levou o planeta ao colapso ecológico (não há condições da humanidade continuar a crescer e a consumir por muito tempo) e, terceiro, que a sociedade mundial está imersa no universo antropoceno e sem condições de sair ou abandonar o modelo. As constatações passaram a exigir mudanças urgentes no modelo de sociedade e de econômica, com vista a amenizar os impactos do desenvolvimento antropoceno no planeta. As mudanças foram agrupadas e explicadas a partir do fenômeno conhecido por transição (citado por Lena e Isseberner, p. 212/2013), sob três formatos.
As transições são assim explicadas:
Transição energética. Modificação da matriz energética, com o objetivo de alcançar 100% de energia eólica e solar.
Transição ecológica. Implica, além da transição energética, em uma modificação profunda dos modos de produção e consumo, com valorização, por exemplo, da agroecologia; além de limitar o uso da terra em detrimento do meio ambiente natural.
Grande Transição. Trata-se de corrente que defende uma mudança civilizatória e antropológica como sendo a única solução possível para enfrentar o desafio da sustentabilidade no planeta. A proposta recomenda colocar a democracia acima da economia e a ressignificação do conceito de progresso.
Conclusões.
O entendimento do que seja o mundo antropoceno é elementar à civilização contemporânea, já que possibilita questionar o modelo de desenvolvimento da sociedade mundial e a respectiva relação com as alterações socioambientais que vem ocorrendo no planeta. A erudição permite, ainda, o entendimento acerca do sistema capitalista global e sua relação direta com o formato vigente de progresso econômico, de civilização desenvolvida, de exploração dos recursos naturais e de incentivo consumo indiscriminado.
Os paradoxos, como explicado, não possuem nacionalidade ou fronteiras. Da mesma forma, as soluções não podem ser apenas locais; pois há uma interdependência ecossistêmica entre todos os povos.
A solução para os problemas do mundo antropoceno não são fáceis e a solução não é mágica. Questões relacionadas com a implementação de uma economia decrescente e a revisão do modelo civilizatório perpassam pela discussão, contudo, o fato e que os economistas mundiais não pretendem reduzir a velocidade da locomotiva que explora os recursos naturais e incentiva o consumo desnecessário e falta consenso entre os líderes mundiais para reconhecer que a sociedade contemporânea já extrapolou os limites ecológicos toleráveis do planeta e que a continuar o modelo antropoceno haverá um colapso irreversível.
Notas e Referências
[1] LÉNA, Philippe. Isseberner, Liz Rejane. Desafio para o Brasil em tempos de antropoceno. Economia do meio ambiente. Org. Peter May. 3º ed. Elsevier. 2019.
[2] Disponível em https://www.ecycle.com.br/3279-limites-planetarios.html. Acesso em 20 de jun. 2019.
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