Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Vocês já devem ter se deparado com postagens virais sobre pessoas que viajaram com seus filhos pequenos e distribuíram mimos aos demais passageiros como uma forma de compensação pela presença das crianças?[1] Ter crianças dividindo o mesmo espaço de adultos é um estorvo e motivo para que os pais peçam desculpas pela presença dos seus filhos? Ou os adultos que deveriam fazer todo esforço para que aquele ambiente fosse o mais agradável possível para as crianças? 

O movimento childfree (livre de crianças ou sem crianças) surgiu como uma forma de preservar os direitos dos adultos em não terem filhos[2], porém foi além e passou a defender a existência de espaços em que a presença de crianças é completamente proibida. Para este movimento, os adultos não deveriam serem obrigados a conviverem com crianças: 

Os objetivos do movimento "Childfree" se resumem na própria expressão em inglês, que é bastante clara: “livre de crianças”. O movimento Childfree é formado por pessoas que optaram por não ter filhos e, mais do que isso, não desejam ser importunadas por crianças em espaços públicos. Por isso, estimulam e aprovam iniciativas de estabelecimentos comerciais que restringem o acesso de crianças, ao menos em algumas áreas. A iniciativa vem ganhando adeptos rapidamente no Brasil – e a polêmica vem aumentando na mesma medida (CORDEIRO, 2019, p.1). 

Observa-se a seguinte fala dentre os adeptos do movimento “crianças são barulhentas e perturbam o ambiente com sua desordem. Queremos apenas sossego.” Neste sentido, foram identificados, por exemplo, comentários parabenizando a Japan Airlines por identificar onde estariam sentados bebês de até dois anos em seus voos: 

"Obrigado, Japan Airlines, por me alertar onde bebês planejam berrar e gritar durante uma viagem de 13 horas. Isso deveria ser obrigatório", escreveu um usuário no Twitter, em um post que foi o estopim de uma longa discussão: de um lado, defensores de quem quer planejar sua viagem e ter mais sossego em um voo longo e, do outro, quem acha que existe uma crescente intolerância e discriminação contra crianças, que ainda estão aprendendo a conviver em sociedade — inclusive por meio de suas interações com os adultos ao seu redor. (ADOETA, 2019, p.1) 

Movimentos como esse dizem muito sobre o tipo de sociedade na qual estamos vivendo, sociedades nas quais o individualismo tem se sobreposto ao pensamento comunitário. Esses movimentos são manifestações de intolerância e de discriminação com as crianças, que têm seu direito à convivência comunitária tolhido em benefício exclusivo dos adultos. Afinal, além do suposto conforto do adulto, não há razão para banir crianças de restaurantes, aviões ou hotéis, diferentemente das proibições de ingresso em casas noturnas, nas quais o ambiente é impróprio para esta etapa do desenvolvimento humano. Assim, é possível constatar que ainda é socialmente aceito ser intolerante com crianças (ADOETA, 2019, p. 1). 

Analisando a questão sob um prisma puramente social, o childfree vai ao encontro a ideia de sociedade e de democracia, porque ao mesmo tempo que desestimula o contato com o diferente, também impediria que as crianças aprendessem com os adultos, atrapalhando assim a socialização desse público. Ele também reforçaria o sentimento social, que a população infantoadolescente poderia ser afastada de determinados locais sem que houvesse uma justificativa para isso (MARESCH; AUAD, 2021, p.52), o que, no fundo, significaria reacender a chama do menorismo, já crianças teriam menos direitos que os adultos.   

Sob o ponto de vista jurídico, o movimento childfree se mostra igualmente problemático. Em que pese os defensores dos locais livres de crianças afirmarem que apenas estão preservando a segurança das crianças,  ao que parece, eles estão preservando os próprios interesses dos adultos. Isso fica mais claro quando se analisa os fundamentos desse movimento, que exalta o direito das pessoas em não terem filhos e não ser importunadas em locais públicos. 

A ideia de segregação das crianças viola a Doutrina da Proteção Integral e o mandamento constitucional da prioridade absoluta. ao retirar as crianças de espaços de convivência social que não trariam prejuízo ao seu desenvolvimento. Como adverte Josiane Veronese (2021, p. 79), o termo “doutrina” aqui utilizado se refere a construção normativa de proteção ao público infantoadolescente que se iniciou pela Declaração dos Direitos da Criança de 1924 e ganhou mais profundidade e amplitude desde então. Ela é fruto de cultura de preservação de direitos humanos e tem como seus pilares: a dignidade, a liberdade e o respeito (PEREIRA, 2008, p. 138). Partindo dessa compreensão, não se pode mais pensar nas crianças como mini adultos, que sempre devem ficar quietas, obedientes e silenciadas e sim manter o respeito à infância e ao processo de desenvolvimento, acolhendo os comportamentos e brincadeiras típicas das crianças. 

Além do mais, trata-se prática discriminatória, que viola o art. 3º, IV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que apresenta como objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Esse compromisso com a não-discriminação da população infantoadolescente foi reforçada na Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente de 1989, a qual é considerado um dos princípios interpretativos da própria convenção. O art. 2º do texto convencional prevê que: 

1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais.

2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra toda forma de discriminação ou castigo por causa da condição, das atividades, das opiniões manifestadas ou das crenças de seus pais, representantes legais ou familiares. 

Ao impedir a entrada de crianças em estabelecimentos que sua presença seria natural, sem apresentar justificativa que atenda aos interesses e necessidades da criança, está havendo prática de evidente discriminação, a qual não deveria ser tolerada ou estimulada. As crianças possuem o direito a ocuparem espaços na sociedade. Inclusive, estudos demonstram que cidades com mais espaços pensados para crianças apresentam melhores índices de desenvolvimento (IDOETA, 2019, p.1). 

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 16 assegura a liberdade de ir, vir e estar para crianças e adolescentes em espaços públicos e comunitários. Com isso, a proibição do acesso deste público aos locais, sem uma justificativa em prol do interesse do público infantoadolescente (arts. 74 a 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente), viola expressa disposição legal. Maresch e Auad (2021, p. 53) defendem que a ocupação de espaços públicos é uma forma de exercício de cidadania e do direito à convivência comunitária dessa parte da população e que isso pode refletir em uma melhoria na qualidade da participação de crianças e de adolescentes também em locais privados. Tudo isso deixa de ocorrer, quando essa importante parte da população brasileira não pode estar nesses locais. 

As práticas deste movimento discriminam, ainda que de forma indireta, os pais das crianças, já que também não bem-vindos nestes locais ou se optarem por frequentar são obrigados a deixarem seus filhos em casa. 

Se por um lado, a existência de estabelecimentos childfree poderiam ser defendidas com base no respeito à livre concorrência ou iniciativa, uma análise mais profunda mostra que tal argumento não pode ser acolhido. A defesa, promoção e proteção dos direitos infantoadolescentes é obrigação comum da família, da sociedade e do Estado, cada um tendo sua parcela de responsabilidade. Uma sociedade que discrimina não acolhe, não protege e não defende.

 

Notas e Referências  

CORDEIRO, Thiago. O que é o movimento “livre de crianças” e o que a lei diz sobre a prática. Curitiba, Gazeta do Povo, 2019. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/o-que-e-o-movimento-childfree-e-o-que-diz-a-lei-sobre-a-pratica/  Acesso em: 16. Jul. 2022. 

IDOETA, Paula Adamo. 'Childfree': as pessoas que pedem (ou até compram) distância de crianças. São Paulo, BBC News Brasil, 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-50533908 Acesso em: 16. Jul. 2022 

MANTOVANI, Flávia. Pais de bebê entregam a passageiros 'kit desculpas' por choro no avião. São Paulo, G1, 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/11/pais-de-bebe-entregam-passageiros-kit-desculpas-por-choro-no-aviao.html Acesso em: 16 jul. 2022 

MARESCH, Bárbara Fraga; AUAD, Denise. Socialização infantil: o direito à cidade e a mentalidade childfree. In: ANDREUCCI, Ana Cláudia Pompeu Torezan; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Estatuto da criança e do adolescente após 30 anos: narrativas significados e projeções – vol. 2. Londrina: Thoth editora, 2021. 

PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente: uma proposta interdisciplinar. 2. ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 

VERONESE, Josiane Rose Petry. Das Sombras à Luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. 

[1] Neste sentido é a notícia de 2014 veiculada no G1: “Pais de bebê entregam a passageiros ‘kit desculpas’ por choro no avião” (MANTOVANI, Flávia. Pais de bebê entregam a passageiros 'kit desculpas' por choro no avião. São Paulo, G1, 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/11/pais-de-bebe-entregam-passageiros-kit-desculpas-por-choro-no-aviao.html Acesso em: 16 jul. 2022).

[2] Ressalta-se que não se está sendo retirado o direito de não ter filhos, já que o livre planejamento familiar é um direito fundamental, previsto no art. 226§7º da CRFB/1988.

 

Imagem Ilustrativa do Post: No Babies! // Foto de: CGP Grey // Sem alterações

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