O mito da arma de autodefesa

24/09/2018

 

Os cidadãos americanos raramente usam armas para matar criminosos ou impedir crimes, afirma um novo estudo do Violence Policy Center. Este estudo cita dados federais recentes que mostram que cidadãos particulares usam armas mais para prejudicar a si próprios, ou aos outros, com muito mais frequência do que em autodefesa[1].

Por uma vertente de analise, o substrato de um política de armas, se dá em períodos de elevada percepção de ameaça ou de iminência de guerra, geralmente associada a ineficiência de órgãos públicos e instituições de resolução de conflitos, normalmente com a presença de uma cultura militar e de culto a ofensiva militar[2]. Ocorre que a mensagem de liberar armas para autodefesa é uma mensagem de liberar armas para o seu uso particular, no dia a dia, nos desafetos e na violência urbana, o que é um grande risco para estabilidade social. No Japão, na Austrália e no Reino Unido, por exemplo, nenhum civil é autorizado a usar armas, sendo que na Austrália, dois anos depois de implantada a lei (1991 e revisão em 1996), o número de mortes por armas de fogo no país caiu mais de 50%[3]. Outro dado interessante é do Chile, que pode autorizar a posse em casos definidos e com renovação anual, mas que proibido o porte, a pessoa só pode ficar com a arma em um lugar escolhido: casa, trabalho ou o local onde ela precise se proteger[4].

A narrativa simbólica de que uma legislação de cunho armamentista irá ser benéfica para população é de caráter muito mais comercial do que estatisticamente prático. Para chegar a este conclusão, foi observado pelo estudo do Violence Policy Center que em 2015 os Estados Unidos registrou 9.027 homicídios com armas de fogo.  Destes, apenas 265 homicídios foram tidos como justificáveis, isto é, ​​envolvendo um cidadão usando uma arma de fogo legalmente registrada para sua defesa ou de terceiros. Deve ser salientado que destes números ficaram de fora dezessete estados que relataram não ter ​​em 2015 homicídios justificáveis.

Para ter melhor compreensão, justificável é o fato típico (no caso o homicídio) cometido com amparo legal (exclusão de ilicitude), ao que rege o artigo 23 do Código Penal Brasileiro, nos pilares da legitima defesa, estado de necessidade, exercício regular de um direito ou estrito cumprimento do dever legal. Isto é, se um fato típico como homicídio é presumidamente ilícito, pode haver no caso concreto uma justificante, causa de justificação ou descriminante[5].

De volta ao estudo do Violence Policy Center, se têm no ano de 2015 que para cada homicídio justificável nos EUA envolvendo uma arma, foram registrados outros 34 homicídios com arma de fogo que não são justificáveis. Essa proporção nem leva em conta as dezenas de milhares de vidas perdidas em suicídios e disparos não intencionais naquele ano.

 O estudo do Violence Policy Center desvendou que apenas uma pequena fração das vítimas do crime violento ou do crime contra a propriedade empregava armas de autodefesa, ao que foi observado a política de compra e venda de armas nos Estados Unidos.  De 2014 a 2016, apenas 1,1% das vítimas de crimes violentos tentados ou concluídos usaram uma arma de fogo, e apenas 0,3% das vítimas de crimes de propriedade tentados ou concluídos fizeram uso de uma arma de fogo.

“O mito da arma de autodefesa se mantém nos anúncios da indústria de armas de fogo, no dogma da NRA (National Rifle Association of America) e na retórica política interesseira. A realidade é que as armas não salvam vidas, elas acabam com elas” (Josh Sugarmann, diretor do Violence Policy Center).

Para fazer um paralelo, o núcleo de Segurança e Cidadania da Diretoria de análise de Políticas Públicas da FGV, analisou os dados de homicídios por armas de fogo das últimas duas décadas no Brasil e de um debate público nas redes sociais em torno do tema em 2017. Neste estudo[6], verificou-se que o argumento de que o aumento da circulação legal de armas no país aumentaria a segurança da população não encontra apoio nas pesquisas que buscam analisar este fenômeno. Destacou-se, também, que o Estatuto do Desarmamento foi um mecanismo fundamental para a redução do ritmo de crescimento dos homicídios por arma de fogo. Por fim, conclui, assim como no estudo americano, que para compreender o real impacto da circulação de armas, é preciso considerar também aqueles fatos não contabilizados como homicídios e que também envolvem armas de fogo, como as mortes causadas por disparos acidentais, sem intenção determinada, balas perdidas e mesmo os suicídios.

Existem debates de uso esportivo e de colecionadores que precisam ficar em outro patamar, e diferem-se do livre comércio para posse e porte com menor (ou sem) controle. Assim como existe na legislação atual permissivos para porte de arma frente a determinados requisitos. O que deve ser posto em debate é uma intenção de legislação pró-armamento em símbolos ou comerciais, que não pode se dar com discursos fundados no mito da segurança pública, assim como no mito da arma de autodefesa, pois que sem lastros científicos.  Para além, deve ser observado que o Brasil possui um discurso do ódio e de vivacidades maniqueístas a todo o vapor, que tomaram o senso comum num preocupante estágio, ao ponto do judiciário ajudar a acerbar a violência, com conflitos em tempo real entre magistrados de diferentes graus de jurisdição e competência. Existe muito mais a ser mudado para melhorar a segurança pública do que busca simples do livre comercio de arma.

 

Notas e Referências

[1] “Firearm Justifiable Homicides and Non-Fatal Self-Defense Gun Use” disponível em http://vpc.org/studies/justifiable18.pdf. (Acesso 14/09/2018).

[2] BATTAGLINO, Jorge M.. Rearme y baja percepción de amenaza interestatal en Sudamérica. ¿Es posible tal coexistencia?. Perf. latinoam. [online]. 2010, vol.18, n.35 [citado  2018-09-17], pp.61-87.

[3] Disponível em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/existe-algum-pais-onde-e-proibido-arma-de-fogo/ (acesso em 18/09/2018).

[4] ARTÍCULO 6º.- Ninguna persona podrá portar armas de fuego fuera de los lugares indicados en el artículo 5° sin permiso de las autoridades señaladas en el artículo 4°, las que podrán otorgarlo en casos calificados y en virtud de una resolución fundada, de acuerdo con los requisitos y modalidades que establezca la Dirección General de Movilización Nacional. (LA LEY N° 17.798, SOBRE CONTROL DE ARMAS).

[5] ARAÚJO, Fábio Roque. Curso de direito penal: parte geral. Salvador: juspodivm, 2018. p.561.

[6]Balas e vidas perdidas: o paradoxo das armas como instrumento de segurança: relatório analisa os dados de mortes por armas de fogo das últimas duas décadas e do recente debate público nas redes sociais sobre o estatuto do desarmamento”. Disponível em http://dapp.fgv.br/balas-e-vidas-perdidas-o-paradoxo-das-armas-como-instrumento-de-seguranca. (Acesso em 14/09/2018.)

 

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