O Ministro Barroso e a execução provisória da pena criminal (Parte 1 – Perigos do pós - positivismo idealista)

19/10/2016

Por Bruno Torrano – 19/10/2016

Leia também a Parte 2 e a Parte 3

Após breve período sem publicação de colunas, voltamos à vida. E, claro, eu não poderia deixar de tratar, mais uma vez[1], do assunto do momento: execução provisória da pena criminal. O julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do pedido de medida cautelar formulado nas ADCs 43 e 44 calhou de ocorrer na exata semana das férias que separei para dar um reboot na consciência e varrer, temporariamente, para debaixo do tapete, todas as preocupações acadêmicas. Foi, confesso, uma sensação deveras estranha: o STF colocou-me diante de um sentimento de angústia ambivalente. De um lado, as belezas inefáveis de Cartagena das Índias, suas ilhas ilustrativas da grandeza indiferente da Natureza – aquilo que Edmund Burke chamaria de “Sublime” – e a boemia poética das floridas ruas estreitas e esquinas amuralhadas. De outro, no meu Brasil amado, a hediondez da retórica subversiva de magistrados que gastam palavras bonitas para passar por cima das opções políticas já assentadas pelo Constituinte e pelo legislador ordinário.

Ao menos na composição atual, o estrago parece consumado. Espero estar equivocado, mas penso ser improvável que o STF, em curto prazo, venha a reconhecer que cometeu um dos piores erros hermenêuticos de sua história institucional – ou, de forma mais realista e diplomática, que ao menos volte sem grande pirotecnia para o entendimento consignado no belo voto proferido pelo Ministro Eros Grau no HC 84.078-7/MG. A esperança, que deverá aguentar mais um bocado, é a renovação: uma nova leva de ministros, em nova reunião plenária, e o tempo há de fumigar os fundamentos que negaram vigência ao art. 5º, inciso LVII, da CF. Vejam que coisa: até lá, pode-se até mesmo dar o caso de que a comunidade jurídica já tenha percebido que tal mudança não significaria ofensa à “sistemática dos precedentes”, dado que o art. 926 do CPC não veio ao mundo com o propósito de constranger magistrados a perpetuarem interpretações evidentemente equivocadas.

Nas próximas semanas, vou destinar o espaço desta coluna a examinar, com uma boa dose de filosofia do direito e da autoridade, os principais argumentos do voto[2] que considero mais perigoso para a democracia (sim, para a democracia, em seu aspecto de accountability): o do Ministro Luís Roberto Barroso. Perigoso por quê? Primeiro, porque a argumentação seduz. É bem articulada. É bem escrita. Possui inúmeros apoios em expressões emotivamente carregadas – e, como não poderia deixar de ser, vagas e manipuláveis a contento. Segundo, e mais importante: como dizia Ronald Dworkin, “a doutrina é a parte geral da jurisdição, o prólogo silencioso de qualquer veredito”. O voto de Barroso é um dos melhores exemplos práticos de como nossas respostas à pergunta “o que é o direito?” influenciam decisivamente a qualidade das práticas jurisdicionais e o bem-estar geral da comunidade. (No limite, algumas respostas podem jogar, a partir de uma canetada, milhares de indivíduos na cadeia mesmo antes do trânsito em julgado da condenação criminal. Outras, não.)

Destacado e inteligente teórico do direito, Barroso há muito tem sustentado uma concepção pós-positivista do direito que, em determinadas causas, atrai ao aspecto subjetivo e criativo da interpretação jurídica peso muito maior – eu arriscaria dizer “quase absoluto” – quando comparado a seu aspecto objetivo e conservador. Não à toa, em outro trabalho[3] qualifiquei sua teoria do direito com o rótulo de “pós-positivismo idealista”[4] – justamente com o fim de enfatizar o apelo acriterioso que se faz à “justiça” das decisões, por vezes com explícita deferência à “moralização cima-baixo” da sociedade por intermédio do ativismo político de uma cúpula concentrada de 11 magistrados (função “iluminista” do STF), mesmo ao custo de superar escolhas públicas realizadas após o devido processo legislativo.

O enaltecimento da dimensão criativa da interpretação deve ser mais bem esclarecido: o pós-positivismo de Barroso tem a preocupante característica de estar comprometido com uma noção de “progresso moral” que varia ao sabor dos sentimentos pessoais de justiça do intérprete[5]. Isso, claro, nunca aparece de forma clara e assumida nas decisões decisionistas – e dificilmente será confessado por algum adepto do pós-positivismo idealista. Nada felicita mais um juiz ativista do que a ilusão reconfortante de ser a voz iluminada daquilo que a sociedade deseja: o afastamento do texto da lei sempre se pretende justificado por afirmações vagas e não verificáveis de que a solução mais criativa reverbera na mesma frequência da “moralidade comunitária” ou da “evolução dos tempos”.

Uma primeira característica do pós-positivismo idealista, portanto, é esta: retórica abstrata. Indague a um juiz o que é, em termos concretos, a “vontade da sociedade” ou o “senso comum de justiça” e ele não poderá fazer mais que coçar confusamente a cabeça ou proferir novos termos abstratos para encobrir os anteriores. Se ele esboçar a resposta padrão de que se trata de uma visão “evidentemente” majoritária em uma sociedade composta por mais de 200 milhões de pessoas, basta retrucar: (i) com base em que estatística?; ou, se o interlocutor for uma daquelas pessoas que andam com pesquisas do IBGE debaixo do braço: (ii) as visões majoritárias devem ser canalizadas como força criativa nas grandes assembléias do povo (Legislativo) ou ser identificadas e aplicadas por magistrados?

Uma segunda característica é esta: seletividade. O pós-positivismo idealista coloca nas mãos do magistrado o poder de escolher quando é mais ou menos conveniente seguir com mais ou menos fidelidade os limites semânticos da lei. As soluções legislativas em questões moralmente sensíveis devem ser obedecidas? Geralmente sim, mas desde que não se afastem muito daquilo que se considera ser a direção ética para a qual a sociedade como um todo deve ser “empurrada” (o termo é usado por Barroso).

E, por fim, a terceira característica que se pode atribuir ao pós-positivismo idealista é esta: vazio existencial. A não ser que a teoria queira comprometer-se com algum tipo de hierarquia abstrata de valores morais (o que não parece, felizmente, ser o caso de Barroso), o pós-positivismo pode ser considerado “um corpo sem alma”: diferentes magistrados possuem diferentes concepções pessoais de Bem e diferentes noções sobre que decisões políticas levam ao “progresso moral” da sociedade. Nesses termos, com o objetivo de ver suas práticas ativistas e decisionistas justificadas, tanto magistrados “de direita” quanto magistrados “de esquerda” (para usar ligeiramente esse lastimável reducionismo político) podem lançar mão da teoria de fundo do pós-positivismo idealista. Não custa lembrar, no ponto, que os argumentos da eficiência penal e da lei e ordem geralmente são vistos como “progresso social” por indivíduos que se inserem no âmbito da direita moral, e que jamais compactuariam com a posição do próprio Barroso em outras questões moralmente controversas como aborto, casamento homossexual e direitos de transgêneros.

Os traços do pós-positivismo idealista acima citados, que não são de modo algum exaustivos, levam à enfermaria uma vítima bem determinada: o Estado de Direito. Nos próximos artigos, minhas críticas ao voto do Ministro estarão assentadas sobre outra concepção de direito: o positivismo jurídico excludente[6], especialmente na variante defendida por Scott Shapiro (planning theory of Law). É dizer: argumentarei que essa é a concepção do direito que nos confere as respostas mais atraentes para questões como “o que é o direito?” e “quais as funções sociais do direito?”, bem como que empregar seus principais conceitos (autoridade alegada, razões protegidas, planejamento compartilhado, economia da confiança, determinação objetiva, circunstâncias da juridicidade, etc.) em nosso contexto democrático produz, na maior parte do tempo, e muito especialmente na questão particular da execução provisória da pena, melhores consequências práticas do que qualquer alternativa disponível no “menu” atual das teorias do direito.


Notas e Referências:

[1] Sobre a violação ao texto do art. 5º, inciso LVII, da CF, escrevi o artigo intitulado “STF não fez uma leitura honesta do artigo 5º, inciso LVII da CF”, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-08/bruno-torrano-stf-nao-fez-leitura-honesta-cf-antecipar-pena.

[2] Haverá, naturalmente, algumas menções ao voto proferido por Barroso no HC 126.292, o qual, em alguns pontos, mostra-se mais detalhado do que aquele proferido nas ADCs 43 e 44.

[3] TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à Lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[4] Conforme argumentei em TORRANO, Bruno. Democracia... ob. cit., o pós-positivismo idealista deve ser diferenciado, e até mesmo contrastado, com o pós-positivismo hermenêutico defendido por Lenio Streck e seus seguidores. Este último pós-positivismo estabelece diversos critérios interessantes para a contenção do poder judicial e para a crítica doutrinária ao ativismo. Aquele não.

[5] Cf. a versão preliminar de “Contra A 'Função Iluminista' Do Supremo Tribunal Federal”. Disponível em SSRN: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2705223.

[6] Para um resumo rápido das principais teses e argumentos do positivismo excludente, cf. esta outra coluna que escrevi: http://emporiododireito.com.br/positivismo-juridico-excludente-um-guia-rapido/


Bruno Torrano. Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”. .


Imagem Ilustrativa do Post: Cerimônia de posse do presidente reeleito da OAB-RJ // Foto de: Agência Brasil Fotografias // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/fotosagenciabrasil/25771892856

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura