O Ministério Público misógino que escreve “justiça” em letras minúsculas - Por Soraia da Rosa Mendes

12/09/2016

Por Soraia da Rosa Mendes – 12/09/2016

A partir do processo de redemocratização, e a consequente repactuação firmada em 1988 com o novo Texto Constitucional, o sistema de justiça criminal sofreu diversas modificações de ordem estrutural. Não sendo equivocado dizer que uma das instituições que mais foi formalmente interpelada pelos efeitos da nova ordem constitucional tenha sido o Ministério Público, que, deixando de ser um órgão ligado ao Poder Executivo, obteve autonomia, teve ampliadas suas funções, saindo da posição caracterizada por seu lugar como sujeito processual penal, para a de defensor da sociedade em múltiplos interesses.[1]

O processo de redemocratização produziu forte impacto. A busca por direitos e garantias, em grande parte suprimidos ao longo dos “anos de chumbo”, tornou-se a tônica. Mas, para além disso, com o fim do período autoritário, nas duas décadas que se seguiram desde a promulgação da Constituição de 1988, passaram a chegar aos tribunais conflitos cuja complexidade não era imaginada, exigindo bem mais do Ministério Público do que sua tradicional posição de acusador.

Pós-CF/88, o Ministério Público manteve-se como titular da pretensão acusatória, encarregado de acionar o Poder Judiciário (titular do poder punitivo) com vistas à aplicação da pena nos crimes codificados pela legislação. O direito de punir é exclusividade do Estado e o Ministério Público (com raras exceções que se abrem em ações penais de iniciativa privada) é o órgão que detém a responsabilidade de desenvolver a acusação no processo criminal.

De lá para cá é possível perceber que atuação de promotores e promotoras de justiça (assim como de procuradores e procuradoras da república) passou por um processo de reconstrução institucional que se refletiu em defesa dos interesses de minorias (como indígenas, idosos, crianças, e, também, mulheres). Núcleos de gênero, por exemplo, espalharam-se pela instituição Brasil afora.

Inobstante a isso, se uma nova roupa há, nem todos/as estão dispostos a vesti-la e influenciar na mudança de perfil que o sistema de justiça criminal precisa passar para que deixe de ser, ao menos em parte, mais um lugar de sofrimento das mulheres quando vítimas de violência sexual.

O MP sofre de uma doença. E esta doença tem nome: misoginia.

No primeiro semestre de 2016 a notícia de uma jovem de dezesseis anos que sofreu um estupro coletivo no Rio de Janeiro mobilizou e dividiu o Brasil. De um lado, em uma infeliz maioria, estavam os/as que criticavam e “julgavam” a própria vítima. E de outro, aqueles e aquelas que denunciavam a existência da chamada “cultura do estupro”.

As páginas das redes sociais, meio significativamente escolhido pelos algozes da menina carioca para divulgar orgulhosamente as cenas dos atos praticados com sua “desprezível vítima”,  foram tomadas por discursos que seguiram a lógica de que o estupro é de certa maneira uma violência “merecida” pela vítima cujo comportamento o justifica.

De fato, o que vimos neste caso (e vemos em outros semelhantes) é que, a rigor, a vítima não é tida como vítima. Em uma inversão perversa ela torna-se “culpada”, e, sem chance de defesa, a priori, é publicamente condenada.

Infelizmente, em meio a todo esse contexto, manifestações de integrantes do Ministério Público sobre esse episódio do Rio de Janeiro se alternaram. Uma delas questionando a real existência da cultura do estupro, como essa fosse uma invenção das “ditas feministas” no contexto de suas “estúpidas discussões de gênero”, como escreveu um certo Promotor de Justiça gaúcho em um artigo (Jornal NH, 13 de junho de 2016)[2]. Outra pela formulação de questões aferidoras em concurso para o ingresso na carreira mediante exemplos nos quais o ato da violência sexual era ironizado, como fez um outro certo Procurador de Justiça carioca[3].

Pois bem... Chegado o segundo semestre de 2016, mais uma vez, a notícia de um estupro de uma jovem é tornado público. E, desta vez, não foram as opiniões de membros do MP em artigos de jornal ou “exemplos descontraídos” em bancas de concurso que vieram à tona. Desta vez foi a demonstração clara e precisa de que 28 anos de Constituição não foram o suficiente para que membros do Ministério Público se reinventassem a partir daquelas que são suas obrigações institucionais que, sim, estão vinculadas aos direitos fundamentais.

As expressões usadas por um terceiro Promotor de “justiça” no Rio Grande do Sul, na sala de audiências, com a conivência de todos e todas, digo, todos e todas que ali estavam (juíza, defensor/a, enfim...), para submeter uma menina de 14 anos, abusada sexualmente pelo próprio pai ao tratamento desumano de que foi vítima naquela sessão judicial, são irrepetíveis. Não desejo poluir este texto reproduzindo-as.[4] Este senhor escreve “justiça” em letra minúscula.

De fato, o senso comum dos agentes de poder responsáveis pela proteção em casos de violência sexual não difere do senso comum social. O sistema de justiça criminal desconsidera a posição de ofendida da mulher no crime sexual da mesma forma que a sociedade valora a honra e a reputação feminina a partir de estereótipos criados para manter estável a estrutura de gênero.[5] Assim a cultura do estupro – ou como prefiro dizer, da subjugação feminina – , dentro da lógica do sistema de justiça criminal não corresponderá a outra ação senão à revitimização da mulher.

Tenho escrito e repetido em minhas manifestações públicas que não desejo colocar o Ministério Público no banco dos réus a partir de manifestações de alguns de seus membros. Os muitos promotores e promotoras de justiça que diuturnamente trabalham cumprindo com seu dever dentro dos limites de respeito ao ser humano não merecem ser confundidos/as com estes três senhores.

Contudo, é impossível não sublinhar que a postura destes seus representantes é significativa para que reflitamos sobre a cultura que permeia a atuação de sujeitos do sistema criminal quando o polo passivo é ocupado por um vulnerável. Ao Ministério Público, enquanto instituição que pretende (se é que pretende, pois agora já é possível colocar em dúvida) ser reconhecida também como garantidora dos direitos humanos, cabe tomar fortes e eficazes medidas nestes casos.

Desculpas em notas públicas não bastarão. Não se trata com aspirina a metástase misógina em curso no corpo do MP. O que se quer é resposta para cada uma destas condutas e mudanças significativas. O que se quer é um Ministério Público que escreva “Justiça” com letra maiúscula.


Notas e Referências:

[1] MENDES, Soraia da Rosa. BARBOSA, Kássia Cristina de Sousa. AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA: O Ministério Público, sua missão constitucional e o discurso sobre a violência sexual contra as mulheres. In: MARTINS, FERNANDA. GOSTINSKI, Aline. Estudos Feministas por um Direito Menos Machista. Vol. II. Florianópolis: Empório do Direito, 2016 (no prelo).

[2]As palavras do Promotor e justiça Eugênio Paes Amorim no artigo intitulado “Cultura do Estupro?” publicado no jornal NH, são nos seguintes dizeres: “Dias atrás, uma menina teria sido estuprada por vários homens no Rio de Janeiro, e, por conta de uma conduta liberal ou promíscua da moça, que teria colaborado para a prática criminosa, aproveitaram-se as ditas feministas e os esquerdistas em geral para denunciar uma tal cultura do estupro. Segundo este povo, a cultura do estupro, atrelada ao machismo, é difundida entre homens (provavelmente apenas os de direita ou centro), sob alegações que pretendem julgar as vítimas, seu modo de vestir, de se comportar e viver. [...] Assim é que no crime sexual é bem menos propensa a ser vítima a menina que, ao revés de freqüentar a anarquia de bailes funks, usar drogas e conviver com marginais, resume sua vida a festas socialmente menos perigosas, à escolas, igreja e lar.”

[3] Através de um áudio que circula nas redes sociais, o Promotor de Justiça Alexandre Couto Joppert, do Ministério Público do Rio de Janeiro, afirma, durante uma das perguntas em prova oral para ingresso na instituição, que em determinado caso o estuprador ficou "com a melhor parte (no crime), dependendo da vítima". Conforme trazido na gravação, o membro do MP descreve a atuação de determinado grupo em um caso hipotético de estupro, qual seja: "Um segura, outro aponta arma, outro guarnece a porta da casa, outro mantém a conjunção - ficou com a melhor parte, dependendo da vítima - mantém a conjunção carnal, e o outro fica com o carro ligado para assegurar a fuga." (http://justificando.com/2016/06/24/fala-de-promotor-reflete-naturalizacao-do-machismo-afirma-pesquisadora/).

[4] Vide: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/policia/noticia/2016/09/declaracoes-de-promotor-contra-vitima-de-abuso-sexual-chocam-desembargadores-no-rio-grande-do-sul-7405953.html

[5] ANDRADE, Vera Regina Pereira. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 48, p. 260-90, maio/jun, 2004. Disponível em: www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/.../4f33baebd636cb77eb9a4bdc2036292c.pdf.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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