O MÉRITO ADMINISTRATIVO E OS “HARD CASES” ENFRENTADOS PELO GESTOR PÚBLICO  

31/01/2019

 

Não é recente o forte tropismo que os estudiosos do Direito Administrativo possuem em relação ao tema “mérito administrativo”.

Muitos e ilustres doutrinadores se debruçaram sobre o seu conceito. Celso Antônio Bandeira de Mello o qualifica como “campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada”[1].

 Seabra Fagundes diz que “o mérito se relaciona com a intimidade do ato administrativo, concernente ao seu valor intrínseco, à sua valorização sob critérios comparativos. Ao ângulo do merecimento, não se diz se o ato é ilegal ou legal, senão que é ou não o que devia ser, que é bom ou mau, que é pior ou melhor do que outro. E por isso é que os administrativistas o conceituam, uniformemente, como o aspecto do ato administrativo relativo à conveniência, à oportunidade, à utilidade intrínseca do ato, à sua justiça, à fidelidade aos princípios de boa gestão, à obtenção dos desígnios genéricos e específicos, inspiradores da atividade estatal”[2].

Assim, é no exercício de competências discricionárias que se visualiza margem de liberdade, o que atrai um maior cuidado na tomada de decisões. O poder de deliberação da Administração Pública deve estar acompanhado de um sistema rápido e certeiro de responsabilização eficiente. Escolhas erradas podem ser devastadoras ao interesse público.

Sem pretensão de instituir a política do medo ao administrador público, é tempo de exigir da Administração Públicas e das pessoas (naturais) que a comandam um efetivo comprometimento com a satisfatividade do interesse público, cujo conceito é indefinido em sua essência.

São tantos os condicionantes e riscos a serem ponderados pelo gestor, na concretização do renomado “mérito administrativo”, que não seria arriscado afirmar que a sua predileção recai sobre os atos vinculados. É nesses que o administrador encontra o caminho claro, definido em lei, que deve trilhar. Numa visão cartesiana, basta segui-lo e respeitada estará a legalidade.

Por outro lado, os limites do mérito são constantes alvos de questionamentos pertinentes à ponderação de valores, de proporcionalidade e razoabilidade do ato administrativo, do abuso de poder, de ofensa a tantos direitos subjetivos do administrado.

É no exercício da discricionariedade administrativa que, certamente, o administrador encontrará suas mais difíceis decisões – o que aqui se denomina de “Hard Cases”. Fatores como o tempo, os limites de recursos financeiros, os direitos afetados para que tantos outros sejam protegidos, a delimitação concreta do melhor interesse público.

As consequências dos seus atos e decisões não são menos importantes. O festejado consequencialismo administrativo, com recente previsão legal no artigo 20 da nova redação da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro coíbe que na esfera administrativa se decida “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Em seu parágrafo único, o novel artigo 20 da LINDB comtempla a necessidade da motivação do ato, “inclusive em face das possíveis alternativas.”

O estrito cumprimento da legalidade não é mais satisfatório. A avaliação das circunstâncias do caso concreto e a busca da solução que realize, na maior intensidade, a finalidade legal são imperativos, realçando o papel da adequada motivação do ato administrativo.

Ao gestor público incumbe dar vida concreta, palpável, mensurável e adequada aos limites abstratos da lei.

Nesse sentir é que a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy[3]  é pertinente, entendendo-se como um direito social a promoção de políticas públicas afirmativas.

Da mesma forma, o respectivo controle judicial deve ocorrer sob uma perspectiva de proporcionalidade das escolhas feitas pelo administrador público, seja, por exemplo, quanto à melhor alocação dos recursos públicos, seja quanto ao caminho satisfativo do melhor interesse público. E, para tanto, o Poder Judiciário também deve assumir o mesmo comprometimento exigido do Gestor:  avaliar as particularidades do caso concreto, num dado tempo e espaço geográfico, frente às possibilidades fáticas (princípio da reserva do possível) e jurídicas (máxima da proporcionalidade) existentes.

Segundo Robert Alexy, os princípios são “mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”[4].

São inúmeros os exemplos de casos complexos postos ao crivo da Administração Pública, tais como a decisão entre instalar sistema de saneamento em áreas de invasão, marcadas por vetores de vulnerabilidade sanitárias, justamente porque fogem dos padrões de regularização edilícia e do controle urbanístico do Município ou promover a efetiva proteção dos ecossistemas e núcleos ambientais afetados pela condição irregular criada por uma minoria marginalizada, igualmente relacionados com a sobrevivência humana, admitindo-se o seu sopesamento segundo a máxima da proporcionalidade, reconhecidas as limitações fáticas e jurídicas existentes.

Nesse “Hard Case”, a proteção de um não importa na defesa do outro, em evidenet conflito de direitos igualmente merecedores de amparo. Em outros termos, não é razoável almejar a proteção absoluta de um direito ao ponto de esvaziar completamente outros tantos.

A escolha sobre a alocação dos recursos, de forma a distribuí-los de forma compatível com, ao menos, o núcleo mínimo de todos os direitos fundamentais justa, é tarefa árdua da Administração Pública, em um juízo razoável e legítimo de conveniência e oportunidade.

Da mesma maneira, a opção por adotar política satisfativa integral de um direito social básico, desprovendo os demais de adequadas e mínimas medidas de contentamento implica em irresponsabilidade do ente público e infração do núcleo sensível de liberdades públicas fundamentais.

Sob tal enfoque, o Gestor não pode ser considerado omisso quando demonstra, por meio de adequada e contemporânea motivação de suas decisões, as razões de escolha de um ou outro caminho. A implementação de políticas satisfativas de direitos envolve uma série de fatores, dentro da realidade de cada ente político.

A chamada reserva do possível, que não se limita somente a questões orçamentárias e financeiras, mas se estende a outras limitações fáticas faz com que investimentos públicos nos variados setores encontrem barreiras razoáveis a justificar escolhas “diabólicas” do gestor.

De acordo com MELQUÍADES DUARTE, “incumbe à Administração Pública a importante missão de elaboração de políticas públicas, assim consideradas como um conjunto de ações e omissões que visam à proteção e promoção dos direitos fundamentais, inclusive os sociais, sendo o resultado da ponderação entre interesses conflitantes e recursos públicos limitados”[5].

Nesse sentir, é papel dos órgãos e entes que exercem o controle do ato administrativo, de forma interna ou externa, atentar-se à necessidade de contextualização das decisões do Gestor. Somente assim estar-se-á exercendo a legítima interferência de um Poder sobre outro.

 

Notas e Referências

[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 635.

[2] SEABRA FAGUNDES, Miguel. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 3. ed., 1957, p. 174, nota 9. Apud. CRETELLA JUNIOR, José. Op. cit., p. 194.

[3] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. 2011. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. Editora Malheiros.

[4]ALEXY, Robert. Capítulo 3: A estrutura das normas de direitos fundamentais. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. 2011. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. Editora Malheiros. P. 91.

[5] MELQUÍADES DUARTE, Luciana Gaspar. Capítulo 1: Os direitos fundamentais sociais. In: Possibilidades e Limites do Controle Judicial Sobre as Políticas Públicas de Saúde. 2011. Editora Fórum. P. 71.

 

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