Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Como Tupẽ, eu ainda era apenas um menininho. Minha mãe trabalhava como mascate e viajava sempre. Nas férias eu a acompanhava. Em uma tarde nublada do dia em que voltávamos para nossa cidade, ela parou a Kombi. Estacionou, segurou-me pelo queixo e repetiu: “o que dói em você, meu filho?” Não soube o que responder nem pude. A dor se multiplicou e chorei como choram os adultos quando choram. Eu sentia e ela já imaginava ser uma saudade; daquela vez demoramos muito para voltar para casa. O que ela não sabia é que quando dizia “fique tranquilo, logo chegaremos” ela mais me afligia que me consolava. O banzo não era dos que logo reveria, era do que deixara para sempre – a perda de uma amizade sincera, que durara...dias!
Quando me despedi de Tupẽ ele se manteve impassível - melhor que na chegada. No momento em que o ônibus partiu, pela janela capturei sua imagem no colo da mãe com um largo sorriso – Tupẽ não ri à toa. A poeira da estrada de barro embaçava minha visão – e daí, se o nada que eu olhava nem dava mesmo para ser visto? A viagem seguiu, ninguém parou nem me perguntou se tinha dores, então nem chorei... A poeira se foi há muito e meu coração, engraçado, não mais desembaçou.
Respeito as coisas divinas, por isso confesso dois pecados. O primeiro não é tão grave, pois é compartilhado por muitos: idolatro as imagens! O segundo, é como uma oração herética e o tenho por causa do primeiro: as imagens produzidas pelo homem são mais belas que as da Criação. A revelação de imagens, em especial as que os fotógrafos fazem, tornam mais brilhante, nítida, contrastada e ou saturada a realidade que outros veem. Ou de outra forma, comparada ao que uma máquina é capaz de produzir, a natureza criada por Deus – incluída a visão – é fosca. A vida natural, diferentemente da virtual, engraçado, é embaçada.
A imagem número 0001 do álbum de fotos da aldeia Krahô é a de Tupẽ. É uma foto nítida. Nela se vê seus bracinhos detrás de seu corpo arqueado para trás tão fortemente que se a parede fosse a de sua oca, e não a da escola onde o fotografei, é bem certo que já teria se transformado em uma ‘passagem’ nada secreta. Sua testa franzida, a boca fechada, sua visão fincada na câmera e os ombrozinhos vergados para a frente denunciam seu incômodo:
o kupẽ (não índio) é um invasor.
Foram muitas as imagens de Tupẽ, brilhantes e embaçadas. Em uma dessas o enquadrei meio da foto para isolá-lo em um plano intermediário. No primeiro, foquei um lindo mēh (índígena) caminhando feliz, ‘puxando’ outro. No último, o desfoque não impede que se veja a aglomeração de pessoas – uma festa: a de batismo dos kupẽs visitantes, que ocorreu na metade do tempo em que permaneceria na aldeia. No plano de Tupẽ, tento fazer ver sua expressão corporal, que se assemelha à da primeira foto: boca fechada, testa franzida, ombros recolhidos, corpinho arqueado para trás e uma embaçada contrariedade. De diferente, a parede que era próxima é agora a festa, lá atrás, e o posicionamento de seus bracinhos: estão à frente e não é o de quem se deixa ser ‘puxado’, ao contrário. Mas por que Tupẽ apenas não solta a cordinha que embaça o seu destino? Quem sabe?
Porém, entre todas, a imagem mais significativa para mim é a da despedida em que ele abriu um ‘largo sorriso’! Que fique claro: Tupẽ não é triste, mas quase não ri e nunca fala - não me lembro de sua voz. Sobre isto, este silêncio ainda o ouço tão preciso quanto a imagem de felicidade na despedida... Ora, ouço o que não emite som e vejo inconfundivelmente o que não é possível ver ou discernir em meio ao tumulto, ao movimento, à distância e através da janela do ônibus completamente empoeirada? Que máquina é essa que usava quando me despedia de Tupē?...
Depois de Tupẽ, e não de Platão, sei que o mundo sensível é fosco em contraposição ao mundo das ideias, seguramente nítido. Depois de Tupẽ, e parodiando Platão, descobri que as imagens habitam o mundo embaçado e competem com a nitidez do mundo ideal, embaralhando a sombra à realidade. Depois que deixei Tupẽ percebi que a imagem do sorriso de despedida não foi capturada pelo sensor da câmera. Não há registro dela. E que olhos, então, a viu?
Quem viu, se viu, nem foram minha visão ou o coração, foi um menino embaçado que mora dentro da gente e carrega um joguinho de pares iguais. E quando uma imagem lá do futuro se assemelha, ainda que embaçada, com a que guarda, lá de outro tempo, ele cresce e vibra, estica os braços e as pernas e pula e pula que até nos dói as costelas – foda-se a razão!
O nome do menino da amizade sincera que tanto durou, o menino embaçado me assoprou de dentro do ouvido direito: é Tupẽ, que nem é menino nem confunda seu nome com kupẽ, ele é uma krare (criança) da nação Krahô. E no esquerdo me cantou o riso de Tupẽ. Akrajre (crianças) maravilhosas!
Depois de dez dias participando de um Workshop de Fotografia na Aldeia Krahô, com um grupo de inesquecíveis amigos artistas das imagens – verdadeiros kupẽ que mais parecem mẽhĩ – após uma longa viagem, cheguei em casa tarde da noite, com o pé doendo. Um ferimento mal cuidado infeccionou. Minha mulher ajudou a medicar, fomos deitar e no dia seguinte, sem dores e disposto, sentei-me em frente ao computador para revelar as fotografias que produzira. Abri o programa, vi a primeira imagem e...embaçada a vista, sussurrei ai!
Minha esposa atenta ouviu e deixou o café que preparava. Sentou-se ao meu lado, pegou em minha mão e perguntou: “dói muito, querido?” Não soube o que responder nem pude. A dor se multiplicou e chorei como choram as crianças. Ela olhou para o pé e para a tela, abraçou-me e percebeu: “fique tranquilo, um dia voltará”. Com a visão ainda fosca, sorri. Naquele instante compreendi que a amizade sincera nunca se perde, independe do espaço e, sobretudo, do tempo! Naquela manhã o tempo estava embaçado e à tarde também choveu.
Tupẽ: um krare dos Krahô (fotografia de autoria do Menino Embaçado)
*Foto do arquivo pessoal do autor*