Por Eduardo Januário Newton - 08/07/2015
A redação de renomado sítio eletrônico voltado para a comunidade jurídica (clique aqui) trouxe uma notícia que repercutiu no universo virtual, vide os mais de 2.000 compartilhamentos, e justificou o interesse no exame da situação veiculada.
Em síntese, pode-se afirmar que o caso versava sobre decisão liminar concedida em ação de habeas corpus. Até aí nada demais; afinal, a despeito de todo um discurso voltado para uma maior incidência da “solução penal”, com a comprovação dos requisitos da tutela de urgência, espera-se a sua concessão pelo órgão do Poder Judiciário que aprecia o invocado constrangimento ilegal praticado ou em vias de se materializar. Na verdade, o foco da notícia era outro, qual seja, a medida urgente foi proferida após uma heterodoxa postura assumida pela autoridade apontada como coatora: simplesmente se negou a prestar as informações requisitadas pelo desembargador relator. Para tanto, foi invocada uma possível carência de recursos humanos e de tempo.
Antes mesmo de apreciar o que foi chamado de “inusitada realidade”, não se pode deixar de reconhecer o diligente comportamento assumido pelo relator da ação mandamental. Conforme se verifica no conteúdo da decisão liminar, aquele que pode ser considerado como porta-voz do órgão colegiado realizou pesquisa no sistema informatizado do Poder Judiciário fluminense e, com base nas informações obtidas, acolheu o pedido liminar pleiteado.
Afora esse dado que merece o devido e necessário reconhecimento, é então pertinente apresentar o seguinte questionamento: pode o magistrado, quando indicado como autoridade coatora, simplesmente deixar de prestar as informações requisitadas em sede de habeas corpus?
A requisição de informações não possui previsão legal expressa, uma vez que o artigo 656, Código de Processo Penal trata tão-somente da apresentação do preso.
“Art. 656. Recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar.
Parágrafo único. Em caso de desobediência, será expedido mandado de prisão contra o detentor, que será processado na forma da lei, e o juiz providenciará para que o paciente seja tirado da prisão e apresentado em juízo.”
A ausência de previsão legal, não permite justificar a sua recusa na apresentação, até mesmo porque a requisição pode ser compreendida como um costume jurisdicional e que acabou por substituir a figura da apresentação do preso diante da autoridade judicial que analisa a alegação de constrangimento ilegal.
Destarte, a omissão legal das informações, que devem ser prestadas pela autoridade tida como coatora, não pode servir como justificativa idônea para que não seja atendida a requisição de informações.
É necessário prosseguir no enfrentamento da questão apresentada. Por envolver especificamente a situação em que a autoridade apontada como coatora é magistrado, mesmo que de maneira sintética, é imperiosa a necessidade de se examinar a moldura constitucional voltada para a magistratura para, dessa forma, aferir se há, ou não, lastro para a recusa noticiada em apresentar informações requisitadas.
É inegável que o processo histórico brasileiro possui relação com o tratamento constitucional conferido ao Poder Judiciário. O fato de as garantias da inamovibilidade e vitaliciedade se encontrarem expressamente positivadas na Constituição da República vigente é um exemplo claro dessa relação entre o passado e a atual realidade. Em um momento não muito longínquo, a magistratura nacional foi não só ameaçada, mas também violada por aqueles que exerciam o poder de fato. A partir do momento em que Ministros da mais Alta Corte se viram compulsoriamente afastados de seus cargos por ato de força, nenhum outro juiz poderia decidir de maneira tranquila e serena, ainda mais quando o exercício da judicatura pudesse ir de encontro com os interesses de um governo autoritário.
Um caso emblemático da ingerência indevida no Poder Judiciário realizada pela ditadura civil-militar consistiu na aposentadoria compulsória de três renomados juristas que compunham o Supremo Tribunal Federal: Hermes Lima, Vitor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Este último, ao ser entrevistado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), relatou como se efetivou a sua aposentadoria:
“No antigo edifício do Supremo, no Rio de Janeiro, havia umas duas ou três salas onde os ministros frequentemente se encontravam. A mudança para Brasília tinha sido feita havia pouco tempo, todo mundo era do Rio de Janeiro, e então praticamente todas as tardes os ministros passavam por ali, tomavam um cafezinho, conversavam. No dia seguinte [ao 13 dezembro de 1968], estavam lá praticamente todos os ministros que moravam no Rio, e houve uma especulação sobre o que podia ocorrer em consequência da edição do AI -5. O novo presidente do Tribunal, Gonçalves de Oliveira, tinha um feitio diferente de Ribeiro da Costa, era um homem mais acomodado, não era um homem de tomar posições muito ostensivas em relação ao problema do Ato Institucional. Na realidade, ele achava que não ia acontecer nada contra os ministros do Supremo, mas eu contestei. Disse que estava absolutamente convencido de que nós seríamos cassados. Não tive mais a menor dúvida sobre isso. Quando? Era questão de esperar. Ficamos esperando e, de fato, a 16 de janeiro, Hermes Lima, Vítor Nunes e eu fomos aposentados, numa reunião de ministério em que, no final, Costa e Silva disse: ‘Aproveito a oportunidade ... ‘ Hermes Lima não se conformava com isso: ‘Aproveita a oportunidade para nos cassar? O sujeito aproveita a oportunidade para alguma coisa boa, não é?’”[ii].
Mesmo que não existisse legalmente, é possível, afirmar que em grande parte do período da ditadura civil-militar (1964-1985) subsistiu um modelo de persecução penal paralelo. A tortura como forma de obter confissões já era existente, mas foi institucionalizada como prática nesse sistema que desprezava a existência de garantias fundamentais. Aliado a esse aspecto processual, ante o risco que pairava sobre a magistratura havia a positivação real de um perigo tipo penal aberto: o crime de hermenêutica, isto é, a depender dos interesses contrariados poderia o magistrado sofrer as represálias pelo Poder Executivo. Não é por outra razão que as apurações sobre o chamado “Esquadrão da Morte”[iii] e o desvelamento judicial sobre a farsa que constituiu a tentativa de imputar a morte do jornalista Vladimir Herzog como suicídio devam ser sempre celebradas.
O atual cenário jurídico, sem sombra de dúvida, é outro, não existindo mais essa possibilidade de perseguição aos magistrados que venham a decidir contra os interesses estatais.
Ademais, como forma de impedir qualquer risco de retorno as repugnantes práticas autoritárias é que deve ser compreendido o conjunto de garantias voltadas para a magistratura. Dito de outra maneira: a verdadeira blindagem constitucional instituída para a magistratura é uma clara resposta ao passado.
No entanto, é importante frisar que não se pode adotar postura pendular, isto é, de um cenário de tolhimento da atividade jurisdicional não se pode praticar uma autonomia que mais se aproximaria de uma indesejada “libertinagem decisória”.
A partir do reconhecimento de um deslumbramento jurisdicional, é possível compreender o desenvolvimento adquirido pelos estudos referentes à teoria da decisão. Esse fenômeno encontra-se, ainda, inserido em um processo de crítica, que é imprescindível, frente a institutos próprios do esquema filosófico sujeito-objeto (livre convencimento, verdade real e protagonismo judicial).
Para a discussão travada neste texto, é oportuno volver os olhares sobre a da independência funcional dos magistrados. Apesar de não se encontrar expressamente prevista no Texto Constitucional, ao contrário do que se verifica, por exemplo no contexto constitucional português[iv], não resta dúvida de que não se mostra possível a responsabilização do magistrado pelos seus atos decisórios, salvo naquelas hipóteses em que o agir contrário ao ordenamento jurídico se manifestar doloso.
A garantia da independência funcional, sob pena de constituir privilégio indevido, se relaciona exclusiva e unicamente com o exercício do cargo. Além disso, não pode ela ser confundida ou associada aos conceitos de soberania ou irresponsabilidade funcionais. Existem limites para o seu exercício. A significativa parcela do poder de império detida pelo magistrado não é absoluta.
Dessa forma, mesmo não tendo sido invocada essa garantia ao exercício da magistratura, nenhum magistrado poderá se recusar a apresentar dados requisitados pelo relator em sede de ação mandamental sob o manto da independência funcional.
Há, ainda, um outro aspecto relevante para a proposta de debate trazida neste artigo. O controle do exercício do poder estatal é um signo da realidade democrática. A impugnação em si do ato apontado como coator, o que é materializado com o ajuizamento da ação de habeas corpus, é um importante passo no processo de contenção do poder. Porém, ele não é suficiente, o que permite visualizar um outro argumento crítico à noticiada recusa de prestar informações requisitadas.
A importância das informações não se se justifica somente pela possibilidade de que dados que eventualmente não tenham municiados a petição inicial da ação de habeas corpus venham a ser conhecidos, mas também poder servirem de elemento de justificação, ou melhor, de reafirmação, das razões fáticas e jurídicas que embasaram determinada decisão.
Se para o Executivo e o Legislativo é a urna que confere legitimidade para os agentes políticos, é na motivação do ato decisório que o Poder Judiciário consegue obter o seu fundamento de atuação.
Diante dessas considerações, não há como assentir com o posicionamento de Gamil Föppel e Rafael Santana, que indicam a possibilidade de recusa de atendimento de requisição de informações, o que simplesmente implicaria em presunção de veracidade das alegações apresentadas pelo impetrante:
“Nas informações, deve o apontado coator manifestar-se sobre a arguição de ilegalidade da coação ou ameaça que se lhe imputa, confirmando ou não as alegações do impetrante. Além disso, é recomendável o envio, pelo impetrado, dos documentos comprobatórios das suas afirmações, sem embargo da presunção destas, quando for o apontado coator autoridade pública. Tal presunção, registre-se, é ‘juris tantum’, consoante lição de José Frederico Marques:
‘As informações da autoridade coatora, de regra, devem ser tidas como verdadeiras – é o que ensinam a doutrina e a jurisprudência (...) Entre nós, há uma presunção juris tantum da veracidade e exatidão das informações, ainda quando o processo penal não se encontre constituído e formado’.
Em sendo omitida a peça informativa, pensamos que a presunção de veracidade há de recair sobre as alegações expostas na inicial, desde que estas não sejam manifestamente falsas ou inverossímeis. Assim se pronuncia Frederico Marques: ‘Se as informações não forem enviadas, o juiz terá como verdadeira as alegações do impetrante, a menos que dos próprios autos deva concluir o contrário.’”[v]
Outrossim, a partir da necessidade de controlar o exercício do poder estatal, afirma-se que a recusa em apresentar as informações requisitadas em ação de habeas corpus não possui amparo.
A partir do que foi exposto, pode-se seguramente afirmar que não há a possibilidade de recusa na prestação de informações requisitadas em sede de habeas corpus. Não há base legal para esse não-agir e essa inação vai de encontro com a possibilidade de uma salutar e necessária contenção do exercício do poder estatal. E se o questionamento da forma como atua o Estado é capaz de criar algum incômodo, jamais se pode esquecer que a cidadania, esse conceito que urge sempre ser visto como um personagem para que seja entendida como ser vivo e não como abstração de juristas, sempre estará ao lado dos que podem ser tidos como mero importunadores.
Notas e Referências:
[1] SILVA, Evandro. O salão dos passos perdidos: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. p. 402-403.
[2] BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[3] “Art. 216. Garantias e incompatibilidades. 2. Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei.”
[4] FÖPPEL, Gamil & SANTANA, Rafael. Habeas Corpus. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie(organizador). Ações constitucionais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2007. p. 34.

Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).
E-mail: newton.eduardo@gmail.com
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