O macho inaugural

28/06/2023

O valor dado à abstinência sexual não é coisa exatamente da tradição semita (judaica, cristã, muçulmana). Por vários motivos, diversas culturas valorizavam ou valorizam o corpo “imaculado”. As notícias que alcancei informam que a virgindade apreciada era a da mulher, e se correlacionava, comumente, com serviços e homenagens a deuses.

Ao redor do Mediterrâneo, onde nasce a Tradição Ocidental, foi bastante comum a relação entre virgindade e serviço divino. Há registros de inúmeras narrativas mitológicas relatando mães virgens. A mitologia cristã, originária da mesma região, seguindo os valores e o imaginário do lugar e da época, conta o nascimento de um homem-deus de uma mulher casta.

A igreja católica, por longos séculos, reguladora religiosa do Ocidente, estruturada em hierarquia que exclui mulheres, para consumo interno, controla prioritariamente a virgindade masculina. No final do século I e no século II, existem muitos homens e mulheres celibatários, “em honra da carne do Senhor”. Orígenes, que se castrou, considerava que o matrimônio “é a figura da união de Cristo com a Igreja, enquanto a virgindade é sua realização mística e mais perfeita”.

Cipriano é o primeiro a usar o termo virgindade para se referir ao celibato masculino. No século IV, Atanásio define “o matrimônio como ‘via mundana’, enquanto a virgindade é o caminho mais eficaz para alcançar a perfeição”. Estabelece-se o celibato como “condição angélica, esponsais com Cristo, núpcias místicas, oferecimento total e perfeito a Deus”. O Concílio de Elvira, Espanha, em 300, obriga padres e bispos de província. Logo “esta disciplina alcança toda a Igreja” (Editado de História da Igreja Católica, bibliacatolica.com.br).

O lado feminino da questão é anterior, conforme Peter Stearns (Universidade George Mason – EUA). Foi há 10 mil anos, com a agricultura, que o hímen se tornou importante. Por que, de repente, a sexualidade feminina passou a ser vigiada? Era diferente entre quem não se estabelecera para o cultivo da terra. "Grupos caçadores-coletores tinham fascínio pela sexualidade. A bissexualidade era comum”.

"Houve a mudança porque, com a possibilidade de acumular patrimônio, filhas viraram moeda de troca entre famílias. Surgiu a herança e o dote. Com a residência fixa e as famílias agrupadas, ficou fácil, especialmente para pais, supervisionar os outros” (Tabu da virgindade feminina veio com a agricultura, diz cientista, Ricardo Mioto, FSP\ciência, 12set10, editado).

Isso tudo ficou sob domínio das organizações religiosas e dos patriarcas. Na nossa linhagem de crenças, o cristianismo, e mais particularmente a igreja católica, para consumo público, valoriza a virgindade da mulher. O mito fundante dessa linha é a cultuada “virgindade perpétua” de Maria, mãe de Jesus. Os concepcionários, defensores do dogma da conceição imaculada da referida senhora, veneram-na desde o século II.

Conforme a doutrina católica, Maria tinha declarado voto de virgindade, porém José, o marido, não se uniu a ela carnalmente, permanecendo, a moça, que, aliás, tinha 12 anos, com “aquela vulva pura que regenera os homens em Deus” (Irineu). A função marital era a de vigiar e proteger a mulher, posição que Agostinho, prestigiado “santo” da igreja sustenta, suponho fundado em Mt 1,19, que considera José um “varão justo”. Maria, em resumo, para efeito de gravidez, era esposa do “Espírito Santo”. Esse “ensinamento”, é sabido, tomou a Europa.

Com essa narrativa e com esse valor a virgindade chegou ao Brasil e foi codificada. O que começou como um controle de interesse e virou tabu acabou no Código Civil de 1916, no seu artigo 219, inciso IV, “que dispunha ser erro essencial sobre a pessoa do cônjuge o defloramento da mulher ignorado pelo marido. Escreviam os autores que a virgindade da mulher que contrai núpcias pela primeira vez é questão relevante e haveria verdadeira presunção de que o marido não teria se casado sabendo que não se tratava de virgem” (professorsimão.com.br).

Essas coisas já não têm a mesma incidência moral. O patriarcado está em franco declínio e as religiões são vencidas pela escolaridade crescente. O cristianismo e seus santuários sofrem concorrência do capitalismo (ou torna-se ele mesmo capitalista) e seus próprios “templos” de consumo. Não obstante, a virgindade feminina permanece um valor destacadamente superior à virgindade masculina, pelo menos do ponto de vista negocial.

É sabido que Catarina (Ingrid Migliorini) leiloou sua virgindade por mais de 1,5 milhão de reais. O leilão foi encerrado em 24out12. “A primeira vez está prevista para ocorrer durante um voo que partirá da Austrália ou Indonésia para os Estados Unidos. Entre as regras que devem ser obedecidas pelo ganhador está o uso de camisinha obrigatório. ‘Ele também não pode me beijar, não pode realizar nenhuma fantasia nem fetiche, nem usar nenhum brinquedo", explica ela. "O ato também não vai ser filmado’, diz” a moça (G1-https://curtlink.com/5QLDeqw).

A virgindade de Alexander Stepanov, também negociada, contudo, alcançou o valor de meia dúzia de mil reais. “O russo, que, assim como a brasileira Catarina, vendeu sua virgindade em um leilão online, estaria deprimido porque a maior oferta atingiu apenas U$ 3 mil e sua primeira relação será com um homem [...] O sonho de Alex era que a primeira vez fosse com uma garota também virgem” (terra-https://curtlink.com/2H1MO1f).

A disparidade de valores pode levar à impressão de que seja uma questão superficial de homem versus mulher. É tema de gênero, todavia: sobras de patriarcalismo estrutural. Se a hasta fosse de rim os valores seriam iguais. O negócio é sexo, porém, é de notar, ambas as virgindades foram adquiridas por homens; a distinção, pois, está no sexo da mulher. A mulher “típica” não se interessou pelo leilão. O homem “típico” ainda disputa e paga para poder declarar-se o macho inaugural.

 

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