Por Atahualpa Fernandez - 17/05/2015
“Los genes sujetan a la cultura con una correa. La correa es muy larga, pero inevitablemente los valores serán limitados de acuerdo a sus efectos en el genoma humano. El cerebro es producto de la evolución. La conducta humana -así como las más profundas capacidades de respuesta emocional que la impulsan y guían- es la tortuosa técnica por la que el material genético humano se ha mantenido y se mantendrá intacto”. E.O. WILSON
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Sobra dizer que a maior parte das faculdades de direito parecem estar, na atualidade, submetidas a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista (anticientífica e antirracionalista) e uma retórica de atração autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada, sobretudo, por um positivismo de “normas, regras e princípios”, um sociologismo (ou economicismo) desumanizado e desencarnado, um “jusnaturalismo” com alguma peculiar ontologia substancialista e/ou um «neoconstitucionalismo» de direitos humanos ou fundamentais e suas esquizofrênicas ponderações.
Enquanto alguns (os pós-modernos) fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas, outros (os “cientistas” jurídicos, os “puristas” da dogmática, os paladinos da hermenêutica e da argumentação e os “filósofos” dos direitos humanos) fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério e carente da menor autoconsciência com relação à realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana e, em particular, da necessidade de uma teoria da racionalidade reformada (até o momento fundamentada na confiança nos poderes virtualmente ilimitados da razão). Enfim, por uma completa falta de precisão relativa à adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.
Deificando o mundo do cultural (como sistema de signos e representações arbitrários que existem independentemente das mentes dos indivíduos e da condição humana) e hipostasiando em excesso sua consistência ontológico/metodológica ou suposto fundamental à margem de uma natureza humana como objeto de investigação empírica[1], o modelo jurídico atual (em sua máxima expressão) tende a considerar a cultura como a única natureza humana, caracterizando-se mais como um mosaico de crenças e teorias de índole quase religiosa, metafísica ou transcendental, e/ou como um conjunto de idealizações e conjecturas acerca de uma hipotética ordem natural, antropológica, histórica, hermenêutica, metodológica, normativa, valorativa ou de faticidade do social na construção/modelação do indivíduo e da sociedade.
Concepções meramente especulativas que terminam sendo consagradas em postulados, regras, critérios e métodos filosóficos e jurídicos de toda índole, em tópicos forenses ou que, simplesmente, pretenderam impor-se através de fórmulas tão aparentemente vagas e imprecisas como «a natureza das coisas», «o justo do caso concreto», «o bem comum», «círculo hermenêutico», «juízo de ponderação» ... É verdade que cada um pode pensar ou predicar o que quer, mas essas ideias começam a ter diferente valor por suas consequências práticas, especialmente porque se trata de uma espécie de «opinologia» sobrevalorada ou um gênero literário completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica: uma província do imaginário que lida com um continente meramente especulativo.
É nessa paisagem dramaticamente errônea e cognitivamente hostil à realidade por parte da maioria das faculdades de direito que alguns juristas parecem estar sempre imunes a toda evidência ou argumentação que não se ajuste ao seus herméticos, imaculados e aprendidos sistemas de crenças ou visão do mundo. Ao encontrarem-se enfrentados a esses novos, estranhos e perigosos fatos tendem automaticamente a reforçar suas arraigadas convicções e a ocultar os dados adversos “debaixo do tapete”. Uma espécie de «desatenção cega», que consiste na incapacidade de ver também o que não estamos acostumados a ver ou que não temos de antemão na cabeça, ou um tipo de «prejuízo confirmatório», que consiste na circunstância de que recordamos, insistimos e notamos somente os fatos que confirmam nossas crenças e olvidamos aqueles que as desafiam[2].
Parece que o maior obstáculo ao pensamento calmado, razoado e baseado em evidências sobre a natureza humana é a própria natureza humana (J. Derbyshire). O problema é que já não parece lícito e nem tão pouco sensato pretender entender e explicar a cultura humana sem considerar que todo fenômeno cultural é, antes que qualquer outra coisa, um fenômeno psicobiológico. Não se pode utilizar a cultura como explicação de qualquer fenômeno, senão que a cultura é algo que em si mesmo requer explicação. Pretender “explicar” a cultura (e a variação cultural) com a cultura é, em última instância, «re-descrever» um fenômeno, não uma explicação: a cultura não é independente da biologia e a cultura como explicação causal é um mito.
Natureza e cultura não são duas alternativas para a explicação do fenômeno jurídico, senão duas caras de um mesmo e único processo. A reconstrução das claves filogenéticas (e ontogenéticas) de nossos mecanismos mentais de acordo com os princípios da seleção natural e nos contextos ambientais em que tiveram lugar é a condição de possibilidade para uma abordagem empiricamente adequada, coerente e fundamentada da cultura humana. Descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de anos; o mítico “contrato social” já estava inventado muito antes que a espécie humana aparecesse sobre o planeta, e nenhuma referência à moral ou ao direito pode silenciar estas raízes.
A mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar além de toda dúvida razoável: o processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo, deram lugar a nossa grande riqueza moral e jurídico-normativa. Com o direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para estabelecer e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, para justificar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer limites aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.
Não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância redutível a um mero exercício acadêmico para os juristas e os filósofos. O processo de realização do direito (de sua elaboração, interpretação e aplicação) é um dos mais problemáticos entre todas as empresas jus-filosóficas. E a eleição da forma de abordar o direito supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina o sentido do raciocínio prático ético-jurídico.
Daí que um naturalismo moderado, comprometido com a consideração da natureza humana como objeto empírico, me parece exigível e algo que pode ajudar a superar o “problema” do direito. Quero dizer, admitindo que a maneira pela qual deveríamos viver é um tema que não pode separar-se completamente dos fatos, de como são as coisas, toda e qualquer teoria jurídica, para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam reputadas “aceitáveis”, deveria antes conseguir o “nihil obstat”, o certificado de legitimidade, das investigações naturalistas mais sólidas, dedicadas a aportar uma explicação científica da natureza humana. É nesse sentido que o naturalismo pode ensinar muito sobre a nossa forma de ser (o que somos, como atuamos, o que nos ocupa, o que nos preocupa e o que podemos ser e fazer), na medida em que o aspecto mais importante de sua mensagem é o que minimiza as barreiras existentes entre natureza e cultura, entre espírito e cérebro.
Este é o momento e a oportunidade para voltar a definir o que é o ser humano, para recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente para aceitar que o homem não pode ser contemplado somente como um ser cultural carente de instintos naturais. A consideração adequada da natureza humana, ainda que muitas perguntas sigam sem resposta, pode ajudar-nos a compreender cabalmente a natureza de nossa cultura e a iluminar com novas interpretações os velhos problemas que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito.
Por quê? Pois porque o que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento”, aos quais, de uma maneira ou outra, o grosso dos juristas continuam atados e que os cegam ante a evidência de que direito não poderá seguir suportando, por muito mais tempo, seus modelos teóricos elaborados sobre as construções meramente especulativas, completamente alheias à tarefa de estabelecer vínculos adequados com as dinâmicas profundamente enraizadas na natureza humana.
Não devemos (o que pressupõe que não podemos) olvidar que a moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade e que precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões jurídicas e/ou éticas bem informadas e justas. Somos antes de tudo animais e tudo o que seja fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano, sua natureza biológica e sua origem evolutiva, é falso. O objetivo de uma boa formação jurídica deve ser o de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de fomentar a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver (a viver) com o outro na busca de uma humanidade comum. O modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico e da justiça e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de um direito que há de servir à natureza humana e não ao contrário.
Quando Newton reconheceu que havia chegado muito longe na compreensão de algumas das leis mais importantes da natureza, admitiu que o sucesso se devia ao fato de ele ter se erguido sobre os ombros de gigantes. Mas Newton esqueceu um pequeno e fundamental detalhe: o fato de que os gigantes que o precederam - assim como ele próprio- só (e somente só) conseguiram manter-se em pé porque uma multidão de mulheres e homens de tamanho comum os ajudou a crescer e a se desenvolver, graças a seus genes, seus cuidados e sua inata faculdade/sentimento moral. Poucas filosofias da moral e do direito poderão ignorar este fato. E tê-lo descoberto é um mérito especial das ciências da vida que se ergueram sobre os ombros de Darwin.
Notas e Referências:
[1] Uma atitude similar à descrita por Paul Watzlawick: “Un borracho está buscando afanosamente bajo un farol. Se acerca un policía y le pregunta qué ha perdido. El hombre responde: «La llave». Los dos hombres buscan la llave. Al fin, el policía pregunta al hombre se está seguro de haber perdido la llave precisamente ahí. El hombre responde: «No, aquí no, allí detrás, pero allí está demasiado oscuro». ¿Le parece absurda esta historia? Si cree que sí, busque también usted fuera de lugar”.
[2] Em um determinado momento do filme "O Show de Truman", um jornalista pergunta ao produtor: “Como é que Truman nunca chegou a suspeitar sequer qual era a verdadeira natureza do mundo em que vivia?”. Ao que o produtor responde: “Porque tendemos a aceitar a realidade do mundo que se apresenta a nossos olhos”. Quer dizer: aceitamos a realidade tal e como se nos aparece e não nos fazemos mais perguntas – no nosso caso, essa fração pasmosamente pequena do direito que nos ensinam.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem Ilustrativa do Post: Human Evolution? // Foto de: Bryan Wright // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/spidermandragon5/2922128673/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode