O legado de Darwin e o “problema” do Direito - (Parte 1)

16/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 16/05/2015

Quien alcance a comprender al babuino aportará más a la metafísica que el propio Locke.

CHARLES DARWIN

Parte 1

A teoria de Charles Darwin sobre a origem das espécies (publicada em 1859) integrou ao homem  no mundo animal e transformou para sempre o modo de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Uma admirável, arrebatadora e “perigosa ideia”; “quiçá uma das ideias mais poderosas de toda a história da humanidade” (R. Dawkins).

A herança que recebemos de Darwin pode ser mensurada, facilmente, considerando-se a influência atual da teoria da evolução. Que o homem é um animal, uma parte indistinguível da natureza orgânica, edificado de acordo com os mesmos princípios genéticos que qualquer outro ser vivo, não é somente uma evidência científica indiscutível, senão também um lugar comum na literatura científica (natural, social e humanística). Mas Darwin não nos ensinou somente o caminho da compreensão da evolução dos seres vivos. Sua teoria da evolução através da seleção natural serve também para compreender «por que» nos comportamos de forma moral e o que é a ética. É ela, de fato, a que pode dar-nos argumentos a favor da existência de universais éticos, desses que John Rawls considerava princípios essenciais da justiça[1].

Nada obstante, a introdução do saber acerca de nossa natureza biológica no discurso das humanidades e das ciências sociais resultou (e ainda resulta) complexa e incômoda – para não dizer impossível -, na medida em que sua legitimidade se concebe como limitada aos territórios alheios à influência da cultura. Natureza e cultura têm convivido como reinos separados durante séculos, ao amparo dos dualismos legitimadores de suas origens míticas. Daí que ainda surpreenda a muitos o argumento de que toda e qualquer ciência social que não tenha em conta o substrato animal da sociedade humana está ameaçada ou contagiada dos erros produzidos pelo desconhecimento, quero dizer, de que os homens vivem em sociedade não porque são homens (ou quase anjos), senão porque são animais.

O certo é que desde uma perspectiva mais científica que humanista, filosofamos depois de Darwin. Sabemos que descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana[2], com qualidades físicas e uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. Sabemos que a matéria prima da cultura são representações mentais, pessoais e compartidas, e que toda representação é, em última instancia, obra de nosso cérebro, um irrefutável produto da evolução por seleção natural (nada ocorre, nem nada existe no mundo humano que não tenha sido percebido, filtrado, elaborado e construído pelo cérebro, o que inclui como pensamos, interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-jurídicas).

Por primeira vez os avanços das investigações procedentes das ciências da vida e da mente oferecem linhas de convergência capazes de situar a reflexão humanística e social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir da mera especulação metafísica. Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação que trabalham para estender uma «ponte» entre a biologia e a cultura, o inato e o adquirido[3]. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão natural, biológica, do ser humano[4].

Já não somos porta-vozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários e valiosos para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixou seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural.

Este parece ser o ponto fundamental a partir do qual já não mais parece prudente tentar dissimular ou negar as vantagens de estabelecer um diálogo interdisciplinar, uma radical interdisciplinaridade que nos permita sair dos estritos limites de nossas próprias disciplinas para aprender das ciências vizinhas, ainda que assumindo os riscos e dificuldades teóricas e metodológicas de qualquer programa de investigação integrador. Uma integração que, no âmbito do jurídico, implicaria um diálogo entre as tendências naturalistas da ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os fundamentos do fenômeno jurídico sejam revisados à luz dos estudos e investigações dirigidos a dar uma explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana; isto é, sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana, que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.

Apesar disso, as tradições jurídico-filosófica e da ciência do direito ainda predominantes consideram aos humanos baixo uma perspectiva exclusivamente cultural, um ser “a parte” que representa a superação qualitativa dos instintos naturais da espécie ou detentor de uma “segunda natureza” responsável da suposta singularidade humana. A “paleonaturalização” que supôs liberar-se da transcendência divina se transladou, de forma paradoxa, ao rechaço de qualquer outra relação de dependência, incluída a biológico-genética. Não é necessário recorrer à “falácia naturalista” que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia moral – solucionada de maneira convincente por R. Hare – para reconhecer que há uma forma dominante de pensar que se resiste, inclusive com certa fobia, a aceitar o fato de que os humanos são uma espécie biológica.

Na verdade, é comum o relegar a um segundo plano – ou simplesmente deixar de lado – a consideração da natureza humana evolutivamente fixada como elemento significativo, nomeadamente no que se refere à evidência de que somos o resultado direto do modo como o conjunto mente-cérebro gera nossa identidade e os processos cognitivos e emocionais que nos levam a atuar, condiciona e limita nossa conduta, nossos valores, juízos morais e os vínculos sociais que estabelecemos. Nosso pensamento e nosso comportamento são o produto de processos físicos no cérebro (S. Pinker).


Veja a Parte 2 amanhã (17/05), também as 10h!


Notas e Referências:

[1] E não olvidemos que a teoria da evolução de Darwin não somente resta argumentos para crer em Deus, senão que aporta também argumentos para não crer. Um deles pode ser, por exemplo, todas as provas existentes de um desenho nada inteligente; mas um argumento mais importante é o problema do mal: “Se Deus existe, e se Deus é bom, por que há tanto mal (sofrimento) no mundo?”. Claro que esta questão é anterior a Darwin, é um “clássico” da teologia e filosofia, mas Darwin multiplica por mil o problema. Como explica Steve Stewart-Williams: “La selección natural desactiva muchas de las razones para creer en Dios y repasa los posibles papeles que le quedan a Dios (intervenir en el mundo o simplemente poner en marcha la evolución y mirar, etc…) después de Darwin. Es decir, que si el asunto del mal era un problema antes de Darwin lo es mucho más después. El problema es reconciliar la existencia del mal con la de un creador que supuestamente es omnisciente, omnipotente y bueno. Si lo sabe todo sabe que hay sufrimiento en el mundo (bueno, él creó el mundo así que tiene que saberlo). Si es bueno se supone que desearía eliminarlo y si es omnipotente tiene el poder para hacerlo. Pero el sufrimiento ahí sigue. ¿Por qué no interviene Dios? El problema no es sólo que no intervenga para ayudar; si pudo haber creado cualquier universo ¿Por qué creó uno con sufrimiento? o ¿Por qué creo cualquier universo? […] Además, si Dios no es omnipotente, ¿de qué sirve que le pida que ayude a los míos? Si Dios no lo sabe todo no podemos aceptar sus pronunciamientos sin escrutinio, o tener fe en lo que dice, ya que podría estar equivocado. Por último, si Dios no es bueno, ¿por qué debemos adorarlo y obedecerle?”. Não vou abordar esse debate, até porque seria inútil e infame discutir a evidência de que a quantidade total de sofrimento no mundo está mais além de toda consideração decente. E isso toca o coração da crença (ou da fé) em Deus.

[2] Nota bene: dizer que existe uma natureza humana é algo que não está admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente (especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma «tabula rasa» na qual que se pode escrever qualquer coisa, que sua maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Mas para os que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo ambiente em que se vive. O comportamento moral e o sentido da justiça não são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal (com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com variações).

[3] Assim, por exemplo, “las ciencias modernas de la conducta: la genética conductual, al mostrar que todo rasgo de conducta humano es heredable; la neurociencia, al mostrar que eventos cerebrales no conscientes anteceden a la voluntad consciente; la psicología cognitiva, al mostrar la enorme variedad de sesgos y errores sistemáticos que plagan el pensamiento corriente; la psicología evolucionista, al mostrar que el cerebro está moldeado por la evolución, así como las diferencias entre sexos; etc.”.

[4] Deveríamos estar agradecidos a todas áreas do conhecimento científico que deixaram definitivamente claro que somos criaturas biológicas, em grande medida pré-programadas, e que a natureza conta tanto como a educação. As disposições e os padrões de conduta dos seres humanos, incluídos o caráter, a personalidade e as atitudes, refletem os complexos efeitos de nossos genes (normalmente múltiplos genes), cujas expressões são modeladas “a lo largo de la vida por múltiples determinantes ambientales. Lo que somos y lo que llegamos a ser emerge y refleja la interacción, un estrecho entrelazamiento, de influencias genéticas y ambientales en una coreografía enormemente compleja, que sensillamente no cabe reducir a una parte o a la otra: lo que los genes hacen (y qué partes de nuestro ADN se expresarán y qué otras quedarán ignoradas) depende de los entornos en que funcionan. La naturaleza y la educación son inseparables y se determinan mutuamente”(W. Mischel). Como assinalou em certa ocasião Pasco Rakic: “Los genes nos dan las oportunidades y el entorno nos permite hacerlas realidad”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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