Por Luiz Ferri de Barros - 27/09/2016
Em Atenas, o berço da democracia, uma assembleia popular com a participação de 500 cidadãos condenou à morte Sócrates, à época com 70 anos de idade e considerado o homem mais sábio de seu tempo.
Não existe novidade na ideia de se instituir um regime político fundamentado na democracia direta, mediante assembleias e conselhos populares nos quais os cidadãos tomariam acento de forma rotativa, para deliberar sobre os assuntos de Estado e sobre as leis, nisto incluída a administração da justiça.
Pelo contrário, esse tipo de democracia foi o primeiro a existir. Sob o seu manto, em 399 a.C., há cerca de 2.400 anos, em Atenas, uma assembleia popular com a participação de 500 ou 501 cidadãos julgou e condenou à morte Sócrates, à época com 70 anos de idade e considerado o homem mais sábio de seu tempo.
Esses juízes compunham o tribunal dos heliastas, escolhidos por sorteio entre cidadãos das dez tribos que formavam a população de Atenas, assim como a Ekklesia. A Ekklesia, termo grego do qual deriva a palavra igreja, permitindo a participação popular direta, consistia no coração de um dos regimes políticos mais famosos de todos os tempos: a decantada democracia grega, que floresceu no século de Péricles, a idade de ouro da civilização ateniense, levando Atenas a ser conhecida como o berço da democracia.
Entretanto, a maioria da população da cidade-Estado era de escravos. Não mais do que 10 ou 20 por cento eram cidadãos atenienses e somente eles usufruíam dessa democracia e dela participavam, com o direito de legislar e a obrigação de defender, como juízes, em virtude do juramento heliástico, a obediência a essas leis, julgando o justo e o injusto.
Simplificadamente, foi no âmbito desse arcabouço político-institucional que os cidadãos atenienses condenaram Sócrates à morte, o mais sábio filósofo da antiguidade grega, exatamente aquele que mais se preocupou com a verdade, a virtude e a coerência do pensamento e do discurso.
Cabe enfatizar que Sócrates foi julgado e condenado de acordo com as leis, o que, se depõe pela lisura do julgamento, crescentemente colocou em xeque tais leis e a própria cidade, cujo esplendor decaiu por derrotas militares frente aos espartanos.
A acusação
Existem dois registros do julgamento de Sócrates escritos por seus contemporâneos, um por Platão, outro por Xenofonte.
Apologia de Sócrates, de Platão, é o mais conhecido e interessante desses registros. Trata-se de um pequeno grande livro, de leitura indispensável. Considerado pelos historiadores um relato verossímil em relação aos costumes e às leis da época, a oratória socrática é vazada na bela prosa quase poética de Platão.
Sócrates foi acusado de não aceitar os deuses da cidade, introduzindo novos cultos, e também de corromper a juventude: crimes a serem punidos com a morte por meio da ingestão de cicuta. Foram três os acusadores de Sócrates: Meleto, um poeta menor, cuja motivação parece ter sido a de chamar a atenção sobre sua pessoa; Lícon, que nutria certo ressentimento pessoal contra o filósofo; e Anito, um rico curtidor de couros, que por sua influência granjeava maior peso à acusação.
Não muito tempo depois de seu julgamento e morte, uma estátua foi erigida em homenagem a Sócrates em Atenas, enquanto a sorte reservada a seus acusadores é bom indício de como a cidade, afinal, reagiu à condenação do filósofo – ou como o destino manifestou-se a respeito: Meleto foi condenado à morte, Anito foi exilado e apedrejado pelo povo, e Lícon suicidou-se.
A defesa
Apologia de Sócrates é, exatamente, o discurso de defesa do filósofo perante a assembleia ateniense, conforme a versão de Platão.
Tendo contra si acusações que contemplam a pena de morte, Sócrates não defende sua vida em nenhum momento: antes dedica-se a defender seu pensamento. Trata-se de uma peça de oratória memorável, seja por sua organização lógica, seja por sua beleza.
Ele se recusa a apresentar-se aos juízes, como era o costume, de forma lamuriosa, implorando por sua vida e trazendo sua família e filhos pequenos para fazer pena aos jurados. Diz que isto não seria digno de um homem de sua idade.
Sócrates de início afirma ser odiado por parte de seus concidadãos e por parte do júri e, para explicar como isto veio a acontecer, conta que certa feita Querofonte, seu amigo, consultara o oráculo de Delfos para saber se havia alguém mais sábio que ele, Sócrates, e que a sacerdotisa Pítia, que formulava os oráculos, afirmara que não havia ninguém mais sábio.
Prossegue Sócrates em seu relato: “Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: ‘Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível”.
Para decifrar esse enigma, por fim, o filósofo diz ter resolvido fazer uma investigação: “Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: ‘Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que eu o era!’ Submeti a exame essa pessoa – é escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me então a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A consequência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes.”
Depois de interrogar os políticos e várias outras classes de homens, os poetas, os dramaturgos, os artífices, a cada vez colecionando mais inimizades, de um lado, e de outro lado tendo sua fama de sábio aumentada, o filósofo mais uma vez depõe por sua humildade ao interpretar o que sucedia nessas ocasiões: “É que, toda vez, os circunstantes supõem que eu seja um sábio na matéria em que confundo a outrem. O provável, senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana [tomando meu nome como exemplo] como se dissesse: ‘O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor’”.
Essas passagens ilustram, em síntese, o paradoxo do sábio que teve sua sabedoria expressa pela máxima: “Só sei que nada sei”. A assertiva não é, na verdade, uma declaração de ignorância. Trata-se antes de uma postura metodológica, investigativa, que auxilia na compreensão das coisas humanas e das coisas do mundo; e que busca evitar a soberba.
Sócrates prossegue o discurso rebatendo, pela argumentação lógica, as acusações específicas que lhe foram feitas. Numa das passagens interroga, de forma irônica, um dos acusadores, Meleto, como a lei permitia. Neste ponto, seu monólogo muda, dando espaço para breves diálogos, assemelhados aos diálogos que Platão escreveu tendo Sócrates como personagem e em que os contendores do filósofo são retratados como aparvalhados e colocados a nocaute com poucos e certeiros golpes.
Nessas passagens podemos perceber ligeira semelhança com seu método de ensino, a maiêutica, pelo qual atua como “parteiro” da verdade por meio de sucessivas perguntas ao interlocutor, que, como “parturiente”, ao fim descobre a verdade, conduzido pelas perguntas socráticas. Maieuta em grego quer dizer parteira e esta era a profissão da mãe de Sócrates, fato que o inspirou a assim denominar sua forma de arguir as pessoas.
Em outros momentos, o filósofo alega a virtude de seus comportamentos e os exalta. Em relação à acusação de corromper os moços, por exemplo, afirma que para eles pregava que “(...) não cuidassem tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma (...)”. Nessa passagem assevera aos juízes: “Por tudo isto, Atenienses, diria eu, [...] quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes.”
A mais alta declaração de independência, de altivez e de ironia de Sócrates perante seus julgadores vem após a decisão do tribunal. Já condenado à morte, cabe-lhe pela lei propor uma pena alternativa. Ele propõe aos atenienses, então, ser sustentado, à custa da cidade, no Pritaneu, local perto da Acrópole, onde com honras se nutriam os especiais beneméritos da pátria e ilustres hóspedes estrangeiros, o que seria mais adequado a ele “(...) do que a qualquer um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça, eis o que indico para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no Pritaneu”.
Despidas de qualquer ironia, porém com a mesma convicção sobre sua inocência e virtude, destacam-se as palavras finais de seu discurso, quando, após falar aos juízes que o condenaram, Sócrates dirige-se aos juízes que o absolveram. Ele diz: “Só tenho um pedido que lhes faça: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu os infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também”.
E, por fim, atestando mais uma vez sua serenidade perante a morte, ele se despede dos juízes com as seguintes palavras: “Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade”.
Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 3. Nº 14. São Paulo, dezembro de 2014.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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