O julgador e a questão da imparcialidade subjetiva e objetiva  

30/06/2019

 

Em tempos de aviltamento de garantias constitucionais e da necessidade de reafirmação do papel de um juiz dentro de um Estado Democrático de Direito, é improtelável a análise da imparcialidade do magistrado. Muitas vezes confundida como questão de cunho ético, a imparcialidade transcende essa órbita, e é garantia constitucional de um devido processo legal.

O sistema inquisitório, cujo cerne está na gestão de provas nas mãos do juiz, que investiga, acusa e julga – em busca da mitológica verdade real, foi superado pelo sistema acusatório. Ainda que não esteja previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, as garantias constitucionais como as do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, denotam a sua adoção.

Esse sistema faz alusão a um processo de partes, como um duelo que se estabelece entre acusador e defensor, perante o olhar imparcial do juiz.[i] O viabilizador de um sistema acusatório, é, portanto, um julgador imparcial. Nada obstante, nossa Constituição consagra o princípio do juiz natural (art. 5º, inc. LIII), e assegura a impossibilidade de um indivíduo ser processado senão pela autoridade competente, e por um órgão imparcial.

Há, também, a previsão do art. 8.1 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que traz como garantia processual um juiz independente e imparcial. Assim, pode-se dizer que “o princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para sua própria existência”.[ii]

Antes, contudo, é fundamental compreender que imparcialidade não é neutralidade. Não existe juiz neutro. Isso não significa que o juiz deva assumir uma posição ativa no processo, pois assim violaria o princípio acusatório. Porém, como todos os outros seres humanos, o juiz também é construtor da realidade. Outrossim, é inconcebível a ideia de um magistrado neutro, visto que carrega consigo “experiências vividas, ideologias e valores que amoldam a sua personalidade e acabam por determinar atitudes inconscientes como a intuição sobre determinado fato”.[iii]

Superada tal distinção, o Código de Processo Penal aborda a imparcialidade entre os arts. 252 a 254, em que estão elencadas as hipóteses de impedimento e suspeição. Dessa forma, o juiz é impedido, por exemplo, de atuar em processos que seu cônjuge, filhos e pais sejam parte, e considerado suspeito se for amigo íntimo ou tiver aconselhado uma das partes. A consequência de casos em que o juiz for impedido ou suspeito é a nulidade dos atos por ele praticados (art. 564, I, CPP).

Todavia, a análise da imparcialidade vai além de casos de suspeição e impedimento. Isso porque esses casos dizem respeito a imparcialidade subjetiva do magistrado, não levando em conta o aspecto objetivo dessa garantia. A distinção entre a imparcialidade objetiva e subjetiva tem como importante marco o julgamento do caso Piersack versus Bélgica, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Nesse julgado, decidiu o tribunal:

Efectivamente, es en torno a la «imparcialidad del Tribunal» donde se encuentra la sustancia de la sentencia, así como en su significado en el artículo 6.1 del Convenio: El Tribunal precisa, en primer lugar, el doble aspecto subjetivo y objetivo con el que debe analizarse la imparcialidad de los Tribunales. Subjetivo en cuanto a la convicción personal de un juez concreto en un caso concreto. Objetivo en cuanto a que un juez ofrezca garantías suficientes para excluir cualquier duda legítima sobre la imparcialidad de su actuación. No basta que el juez actúe imparcialmente, sino que es preciso que no exista apariencia de parcialidad; «en esta materia incluso las apariencias tienen importancia», ya que «lo que está en juego es la confianza que los Tribunales deben inspirar a los ciudadanos en una sociedad democrática».[iv]

Segundo o trecho acima, infere-se que imparcialidade objetiva diz respeito à um juiz que ofereça garantias suficientes para que não se funde dúvidas acerca de sua atuação, e está calcada na relação do juiz com o caso penal. Doutra banda, a imparcialidade subjetiva está relacionada ao vínculo do juiz com as partes.

 No referido caso destacou-se, igualmente, a importância da aparência de imparcialidade, que é essencial para a manutenção da confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos. Não se pode, então, ter um juiz que atue simultaneamente como órgão de acusação e como juiz. Isso desestabiliza a credibilidade da prestação jurisdicional e vai de encontro com o modelo teórico acusatório em que a separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos constitutivos.[v]

Da mesma maneira, a imparcialidade do julgador, em seu aspecto objetivo, resta prejudicada em razão de contato prévio do magistrado com questões da lide.[vi] Dentro desse contexto, é cediço que a forma com que o CPP disciplina os atos de investigação, analisados pelo mesmo juiz que posteriormente julgará a causa, comprometem a necessária imparcialidade para que haja um devido processo legal.[vii]

Isso significa dizer que a imparcialidade objetiva é reiteradamente vilipendiada pelo CPP. Afinal, o juiz está constantemente envolvido com as questões da investigação preliminar. Um juiz, por exemplo, que em fase de investigação conclua positivamente sobre a existência do crime, e a probabilidade de o investigado ser o seu autor está, em certa medida, “exercendo um prejulgamento que poderá comprometer sua imparcialidade para o julgamento da causa”.[viii]

Nesse sentido, a imparcialidade possui outros desdobramentos que não só os dados pelo CPP, cuja tratativa reside unicamente no aspecto subjetivo dessa garantia. O que ocorre é que Código ignora os aspectos da imparcialidade objetiva e a mácula ao julgamento final dela decorrente.

Em vista do até então exposto, conclui-se que uma releitura acerca da sistemática processual penal é crucial. A viabilidade de um sistema acusatório torna-se arriscada dentro de um sistema que, prematuramente, insere o juiz em contato com a causa que julgará. Isso o contamina e impede de ser imparcial. Uma reformulação dos limites de atuação do magistrado é impositiva para que se mantenha incólume a garantia da imparcialidade do órgão julgador.

 Tal reformulação é indispensável, posto que um processo corolário de princípios constitucionais consiste em um duelo travado entre as partes, onde o juiz se posiciona como árbitro, impedido de tomar partido da lide e agir como se parte fosse. Do contrário, estaremos fadados ao fracasso da justiça criminal, que padece em razão de um Código de Processo Penal carregado de autoritarismo, reflexo da circunstância político-social na qual se originou.

 

 

Notas e Referências

[i] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra Editora: Coimbra, 1974, p. 247.

[ii] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 166.

[iii] MISAKA, Marcelo Yukio. Os poderes instrutórios do juiz na investigação preliminar. In: Limites constitucionais da investigação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 321-41.

[iv] Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Case of Piersack V. Belgium, out. 1984, §30, a. Acesso em: < http://hudoc.echr.coe.int/spa?i=001-165173>.

[v] LUIGI, Ferrajoli. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. 5. ed. Trotta: Madrid, 2001. p. 564.

[vi] RAMIREZ, Germán Echeverria. Imparcialidad del tribunal oral en lo penal: Tras la conquista de la garantía. In: Rev. Derecho (Valdivia). v. 23,  jul. 2010. p. 269-310. Disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-09502010000100012>.

[vii] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito ao julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva do juiz nos sistemas em que não há a função do juiz de garantias. In: Processo Penal, Constituição e Crítica: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011. p. 343-365.

[viii] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito ao julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva do juiz nos sistemas em que não há a função do juiz de garantias. In: Processo Penal, Constituição e Crítica: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011. p. 343-365.

 

 

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