O juízo quanto à prescrição em perspectiva deveria ser obrigatoriamente feito no processo penal e sua análise não viola a presunção de inocência – Por Jorge Coutinho Paschoal

04/02/2016

Sempre se cogitou do interesse utilidade na dedução da ação penal quando se mostrasse quase certa a ocorrência da prescrição do (suposto) poder punitivo estatal.

Pensem naqueles casos em que o acusador, na iminência de propor a demanda, já possa fazer um prognóstico da eventual pena que, ao final, seria aplicada, em caso de uma hipotética condenação; levando-se em consideração a provável aplicação da reprimenda no mínimo legal, seria plenamente possível vislumbrar, virtualmente, a ocorrência da prescrição, dado o tempo transcorrido entre a data do fato e o recebimento da acusação.

Ora, uma vez feita esta análise, concluindo-se que, ao final do processo, haveria a inevitável prescrição, qual seria a razão de se permitir a sua dedução, com consequências graves na vida de uma pessoa (acusado), além de perda de tempo e de recursos pelo Estado, tirando o foco para apurar outros fatos penalmente relevantes?

Como expõe José Antonio Paganella Boschi: “a pergunta que se impõe é uma só: haveria algum sentido prático que justificasse o desencadeamento da persecução penal no caso em tela? A resposta, a nosso ver, é negativa, porque uma eventual sentença, mesmo condenatória, não geraria quaisquer efeitos, primários ou secundários... Noutras palavras: não seria executável!”[1] Assim, sempre reputamos obrigatória a análise quanto à prescrição antecipada, também conhecida como prescrição em perspectiva, ou virtual, sendo possível (e até recomendável) que o acusador e o juiz façam uma análise prévia quanto à utilidade do processo penal quando do juízo de admissibilidade da acusação.

Apesar dessa convicção, uma parcela da doutrina é contra a admissão da prescrição em perspectiva no processo penal. A tal respeito, Maria Thereza Rocha de Assis Moura[2] e Maurício Zanoide de Moraes[3] entendem que ela violaria a presunção de inocência, pois o juiz teria que fazer um prognóstico de condenação, o que atentaria contra este princípio.

Com todas as vênias, não concordamos com o argumento, já que o juiz, ao receber toda e qualquer acusação, sempre faz (e deve fazer) um juízo (prévio, porém provisório) quanto à eventual procedência da acusação.

Tanto isso é verdade que a própria justa causa para a ação penal relaciona-se “com juízo de mínima probabilidade de condenação”, como ensina a doutrina[4]. O que é isso se não um prognóstico de condenação, o que, certamente, não viola a presunção de inocência.

Convenha-se: antes de receber a imputação, o juiz deve verificar se o que está ali posto tem, ao menos, plausibilidade; em outras palavras, deve-se fazer um prognóstico, ainda que fugaz, quanto à possível procedência do que se acusa, pois, caso contrário, não se daria seguimento a um processo cujo pedido condenatório já se mostre, desde logo, ex ante, infundado. Nessa esteira, não há nada de errado ao se empreender essa análise.

A rigor, esse juízo (meramente estimativo e provisório) é imprescindível para conferir legitimidade ao processo (a justa causa), não podendo, jamais, ser confundido com consideração (definitiva) de culpabilidade, o que violaria a presunção de inocência.

Portanto, o juiz, ao fazer um prognóstico quanto a uma eventual e possível condenação, bem como quanto à provável reprimenda que, em caso de condenação, seria aplicável, está fazendo o que deve fazer ao admitir qualquer demanda penal: está protegendo o imputado contra acusações levianas (sem qualquer fundamento), bem como evitando processos inúteis. Não se pode falar nesses casos – tampouco, pela mesma lógica, naqueles em que se faça juízo de prescrição antecipada - em violação à presunção de inocência; o magistrado não trata o imputado como se culpado fosse, apenas fazendo juízo hipotético quanto à viabilidade da acusação, em prol de maior proteção do cidadão!

Como pondera Aury Lopes Júnior: “os opositores ao reconhecimento da prescrição pela futura pena a ser aplicada aduzem que ao presumir um decreto condenatório, com base em fato futuro, se está indo de encontro ao princípio in dubio pro reo, além de não permitir ao acusado a possibilidade de ser absolvido. Ora, é imperativo afirmar, em primeiro lugar, que, para o cidadão que está com seu status dignitatis abalado por estar sofrendo um processo, é preferível terminar com a situação aflitiva o mais rápido possível a continuar sendo submetido à ação penal (...) Nesses casos, a principal garantia do acusado não é o devido processo legal, mas sim a de não ser submetido a um processo inútil. Da mesma forma, não há violação da presunção de inocência, mas sim um reforço de tal presunção, ao evitar a estigmatização social e jurídica do acusado, bem como a angústia prolongada (stato di prolungata ansia, reconhecido pelo atual Código de Processo Civil italiano). Evita-se o processo e o sofrimento inútil[5].

Não obstante o entendimento jurisprudencial, inclusive sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 438[6], do STJ) quanto à inadmissibilidade da prescrição antecipada, entendemos plenamente possível e, aliás, até recomendável que sua análise seja feita o quanto antes; aliás, não é outra a linha de entendimento dos Professores Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes[7].

Cabe destacar que, hoje, é bem raro ocorrer prescrição virtual. Com a edição da Lei n. 12.234/2010, a prescrição, antes do oferecimento da acusação, segundo artigo 110, § 1.º, do Código Penal[8], orienta-se pelo máximo da pena cominada ao delito imputado.

Portanto, nos dias de hoje, para os fatos ocorridos após a edição desta lei, a prescrição, antes da dedução da ação penal, não mais será regulada pela eventual pena a ser fixada, em concreto. Do exposto, uma vez ultrapassado o tempo da prescrição, tendo em vista a pena máxima (ou seja, a prescrição em abstrato), não mais se estará diante de prescrição em perspectiva, ou virtual, mas de prescrição efetiva.


Notas e Referências:

[1] BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação penal: as fases administrativa e judicial da persecução penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 187.

[2] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal. São Paulo: RT, 2001 p. 213-214.

[3] “... não podemos concordar com a primeira premissa da qual parte a ‘prescrição antecipada’, ou seja, a perspectiva de ‘eventual’ condenação do suspeito. Tal comportamento é frontalmente contrário à determinação constitucional da presunção de ‘não culpabilidade’ e do cânone internacional da presunção de inocência” (ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 94). Continua o autor: “a presunção de culpa é realizada de ‘forma virtual’, porque, como já esclarecido, entra apenas como ‘pressuposto’ do raciocínio para se ‘conceder’ o dito ‘benefício’ não previsto em lei. É uma presunção de culpa, ‘quase’ não sentida, ‘rápida’, ‘diminuta’ e, pior, com a justificativa de um favorecimento para o cidadão. Porém, registre-se com ênfase: é uma presunção de culpa; e isso é inegável. Quanto ao pretenso favorecimento que a justificaria, tratar-se-á a seguir, contudo, pergunta-se: os princípios constitucionais mais duramente conquistados pela humanidade não começam sempre a ser rasgados com falsas promessas de benefícios aos cidadãos que deles abrem mão? Não são por pequenas trincas que se destroem os grandes diques? (...) A vida prática tem demonstrado que não são poucas as pessoas que ao contrário do adjetivo de ‘beneficiados’ prefeririam o de ‘absolvidos’. (...) Com base nessas ponderações práticas e, para além e acima delas, por respeito a um dos mais elementares direitos dos cidadãos de não serem sequer considerados hipoteticamente culpados antes de uma condenação definitiva, deve ser rejeitada a dita ‘prescrição em perspectiva’ como manifestação ou acontecimento revelador da perda do ‘interesse-utilidade’, na promoção da ação penal” (ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro, p. 95-97).

[4] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal, p. 245.

[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade garantista). 3.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 07-08, nota de rodapé n. 15 (destacamos).

[6] Súmula 438, do STJ: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.

[7] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11.ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 64.

[8] Art. 110, caput, CP: “A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente”. § 1.º “A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”.


 

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