O juiz que encarava cabras

07/11/2016

Por Luís Carlos Valois – 07/11/2016

O uso de música e outros tipos de sons desconexos como método de guerra é antigo. Pode-se inclusive remontar à conquista de Jericó, narrada na Bíblia: as famosas trombetas de Jericó. Como instrumento de tortura, tática policial ou de interrogatório, é mais recente por motivos óbvios, já que só há pouco tempo – em termos de história – deixaram de estar legitimadas as chicotadas, as rodas, o garrote, o ferro em brasa etc.

O certo é que barulho incomoda, e o terror que causa à pessoa submetida horas e horas, dias e dias, ao mesmo som, não impressiona tanto quanto o sangue e o suor de uma sessão de pau de arara. O torturador, no caso, pode sair menos torturado das seções de tortura com sons.

Na história recente, em 1990 o FBI usou música alta em um cerco contra religiosos fundamentalistas armados, no Texas. Em situação de cárcere, na década de 1970, prisioneiros do IRA na Irlanda do Norte narraram que o ruído alto a que foram expostos era o pior aspecto do encarceramento (SMITH, 2008). Métodos parecidos foram usados nas prisões norte-americanas, como as de Abu Ghraib e de Guantânamo.

Uma longa pesquisa jornalística, que resultou no livro chamado “Os homens que encaravam cabras”, e também em um filme estralado por Gerge Clooney, é igualmente uma trama originada no exército dos EUA sugerindo estar o uso da música como tortura envolvido no interesse policial de se passar mensagens subliminares à vítima e nela induzir sentimentos que iriam da alegria à “aflição, angústia, ansiedade...” (RONSON, 2010, p. 210).

A história é a da mística de que o exército dos EUA teria um treinador que, apenas com o poder da mente, poderia matar uma cabra. Daí vieram experimentos, sempre no sentido de se criar um super-soldado que, sem armas e, portanto, sem sangue, faria parar o coração do inimigo.

O treinador guru, entretanto, queria que seus poderes de controle da mente fossem usados só para o bem. Assim, teria escrito um manual que, posteriormente, foi adulterado e utilizado para o mal. Dessa forma, bem resumidamente, chegou-se ao ponto de usar a música como método de tortura em Abu Ghraib e Guantânamo.

A pesquisa, como dito, é jornalística, traz poucos documentos, e é baseada mais em entrevistas. Pouco se sabe realmente do alcance da tortura com sons e muito menos, mais objetivamente falando, da capacidade de os mesmos induzirem sentimentos. Se o objetivo inicial era de paz é algo vago, até porque não é o que parece vindo de quem resolve matar uma cabra indefesa.

De uma forma ou de outra, um juiz brasileiro, do Distrito Federal, resolveu recentemente expedir uma decisão em que autoriza à polícia “o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o sono” (Vara da Infância e da Juventude – DF, Processo 2016.01.3.011286-6, 30.10.16). Isso além de permitir a suspensão de água, energia, luz, o acesso de alimentos e de terceiros ao local, com o objetivo de facilitar à polícia a retirada de estudantes que ocupavam, em protesto, uma escola.

O “para impedir o sono” pode ter sido inspirado no Enhance Interrogation Methods norte-americano, manual de métodos autorizados a serem utilizados em interrogatórios de suspeitos de terrorismo (CEPLAIR, 2011). A suspensão de água e luz, a vedação do acesso de alimentos, há em qualquer filme de guerra.

No caso, os estudantes estariam em situação pior do que a dos presos norte-americanos, porque o manual citado prevê a restrição de alimentos – dieta líquida – mas não a suspensão total de alimentação. Talvez os torturadores do Norte tenham pensado em fazer com que seu método parecesse o mínimo possível com uma tentativa de homicídio.

São medidas de violência ausentes de qualquer legislação brasileira, expressas em uma decisão jurídica. A despeito da incorreção, da inconstitucionalidade, da ilegalidade, que não se vai discutir aqui para não levantar qualquer possível sombra de legitimidade, é uma decisão que causa medo.

Se a polícia tortura nas vielas escuras da periferia ou nos corredores sombrios de uma delegacia afastada, mas é correta e bem fardada nas esquinas à luz do dia, isso ainda causa um sentimento de segurança. Podemos correr para a luz do dia, nos refugiar em uma esquina de um bairro nobre.

A imagem de segurança deve ser a última a morrer em uma sociedade moribunda, sem esperanças. Até hoje o judiciário estava fazendo de conta que nossas prisões funcionam como a lei manda, que a polícia só é violenta quando provocada, que não há tortura, nem métodos cruéis sendo exercidos diariamente, mas – por incrível que pareça – um de seus membros resolveu sair desse estado de hipocrisia autorizando a própria tortura, e isso causa muito medo.

Podemos supor, para salvar um pouquinho da crença em um Estado de Direito, que o juiz estava pensando no bem comum, como o instrutor guru do exército norte-americano que encarava cabras, tendo suas “boas intenções” desvirtuadas, e com o tempo utilizadas na tortura de prisioneiros. Mas que inimigos são esses os do juiz, que não foram objeto sequer de uma ordem secreta, um manual prévio, uma legislação de exceção: alguns estudantes.

Medo, muito medo.


Notas e Referências:

CEPLAIR, Larry. Anti-communism in Twentieth-century America: a critical history. California, EUA: ABC-CLIO, LLC, 2011.

RONSON, Jon. Os homens que encaravam cabras. São Paulo: Record, 2010.

SMITH, Clive Stafford. Welcome to ‘the disco’. In: The Guardian, 9.6.08. Disponível em: <www.theguardian.com/world/2008/jun/19/usa.guantanamo>. Acesso em 06.11.16.


Luís Carlos Valois

. Luís Carlos Valois é Juiz da Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, membro da Associação de Juízes para a Democracia – AJD, e membro da Law Enforcement Against Prohibition (Associação de Agentes da Lei contra a Proibição) – LEAP..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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