O juiz natural da causa e a competência em matéria de prerrogativa de foro na visão do STF[1].

16/06/2018

Dentro do tema Jurisdição existem dois princípios processuais que norteiam o assunto, o juiz natural da causa e a indeclinabilidade do poder jurisdicional (art. 8.1 da CADH). O primeiro está associado ao direito fundamental que qualquer cidadão tem previamente de saber por qual juízo ou tribunal será acionado, bem como a vedação e criação de juízo ex post facto. O último assegura que nenhum juiz pode declinar do seu poder-dever de julgar, salvo questões de impedimentos e/ou suspeição, aqui naturalmente para resguardar a imparcialidade[2].

Apesar dos referidos princípios serem compreendidos como uma garantia de qualquer cidadão, visando a estabilidade dos julgamentos e evitando manipulações políticas de efeitos persecutórios, na lição de Binder,[3] a realidade aparenta seguir na contramão, e aqui pretendemos nos limites próprios do escrito, expor o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal[4] nos crimes aos quais os autores são detentores da prerrogativa de foro.

O STF acabou decidindo, em suma, que os agentes que tenham foro privilegiado “(...) só deve ser observado nos casos em que a prática de crimes se deu no exercício do cargo e em razão do cargo(...)”. Decisão que acabou sendo reiterada no Inq. 4667, também de relatoria do Min. Roberto Barroso.

Os argumentos dos acórdãos são plausíveis e contundentes, dentre os quais foram destacados a politização da Corte, tensões com o Congresso, mais exercício da jurisdição nesses casos, podendo ser acrescentado a mora processual, o desatendimento a identidade física do juiz e o excesso de processos no Supremo em ações dessa natureza, o que acaba deixando de lado o seu fim precípuo que é ser guardião da Carta Magna.

Os referidos fundamentos são claros e atendem a proporcionalidade, afinal ao jugar processos originariamente o STF acaba atuando como juízes de primeira instância, ainda que auxiliados por juízes instrutores, afinal caberá aos Ministros da Corte a avaliação da matéria probatória, circunstância distinta da função de avaliar matéria constitucional.

Diante desse quadro, o recente posicionamento do STF parece a primeira vista ser o mais adequado, é um remédio aos males dos crimes por prerrogativa de foro. No entanto, como todo remédio, há um efeito colateral, e esse precisa ser examinado. E os problemas surgem da prática, e essa não pode ser desconsiderada, afinal a prática não pode ser um universo dissociado dos fundamentos teóricos. Observemos.

O intuito da nova linha parece ser restringir o julgamento originário do Supremo a crimes relacionados ao cargo do agente e temporalmente ao exercício do mandato, afinal como diz o acórdão “(...) em razão do cargo(...)”, fato até natural, mas o que parece natural acaba desconstruindo a naturalidade e lógica das coisas.

Surge o primeiro questionamento, e com a aproximação das eleições isso precisa ser respondido. Exemplifiquemos, se determinado Deputado cometer um delito que não seja em razão de seu cargo, o processo será de competência da primeira instância, obedecendo, em geral, os dispositivos do CPP, ou se for em face do cargo e durante o mandato será julgado no STF, enquanto perdurar o mandato, até aí os acórdãos tratados respondem.

Mas consideremos, e a ponderação não é simples especulação, por exemplo, se determinado Deputado for autor de um crime relacionado ao cargo e durante seu mandato esteja respondendo uma ação na Suprema Corte, mas nesse iter acabe seu mandado de Deputado e depois se eleja Prefeito, onde será julgado? No STF não mais, pois deixou de ser Deputado. Seria então no Tribunal de Justiça e/ou Tribunal Regional Federal, afinal os Prefeitos têm prerrogativa de foro nesses? Sim, tem prerrogativa, porém tomando por base o raciocínio da decisão do STF, que apenas fez referência a Deputados e Senadores, só deveriam ser julgados em foro privilegiado os sujeitos que cometessem infrações relacionadas ao cargo e durante mandato, então esse Prefeito eleito não poderia ser julgado no Tribunal de Justiça e/ou Tribunal Regional Federal, ante a inexistência de qualquer relação do delito com o cargo de Prefeito.

Poderia, portanto, esse Prefeito ser julgado na primeira instância? Também não é possível responder categoricamente, porque a decisão do Supremo é restrita a Deputados e Senadores, e tomou como parâmetro o art. 53 da CF quanto a prerrogativa de foro, logo não é possível fazer extensão aos demais agentes que têm prerrogativa de foro.

Por fim, como ficam os inúmeros processos que tramitam originariamente no Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de segunda instância? Poderiam seguir a linha do STF ou não? A questão está aberta.

Superado a questão do juiz natural, é preciso compreender que as decisões mencionadas não são compatíveis com a indeclinabilidade da jurisdição, já que cabe ao Estado-Juiz decidir as questões postas sob sua competência, como decorrência do princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional. Assim, não basta um juiz decidir uma causa, pois não é qualquer juiz que poderá atender aos princípios acima, é imperioso atentar qual o competente para decidir a causa, pois só assim estará respeitado a indeclinabilidade e o juiz natural.

A partir do instante que um juiz, mesmo que da mais alta Corte, declina a competência para outro órgão, fora dos casos previstos na legislação, acaba violando o princípio da indeclinabilidade, e por via de consequência o juiz natural. E ainda que se queira fazer uma interpretação do art. 52 da Constituição Federal para justificar tal decisão, essa não nos parece ser possível, diante da clareza do dispositivo.

É preciso compreender com os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Barreto Leiva) que “76. El juez natural deriva su existencia y competencia de la ley, la cual ha sido definida por la Corte como la "norma jurídica de carácter general, ceñida al bien común, emanada de los órganos legislativos constitucionalmente previstos y democráticamente elegidos, y elaborada según el procedimiento establecido por las constituciones de los Estados Partes para la formación de las leyes"[42]. Consecuentemente, en un Estado de Derecho sólo el Poder Legislativo puede regular, a través de leyes, la competencia de los juzgadores.” Fica claro do precedente da CIDH que compete ao Legislativo o poder de regular a competência dos juízes, pela via transversa, não cabe ao juízes determinarem a competência.

Logo, a decisão do Supremo acabou alterando as regras de competência em matéria penal, e o questionamento exposto não está no desacerto dos acórdãos apontados, que em alguns pontos têm aspetos positivos, mas tem problemas, seja por invadir questão própria do Legislativo, seja por deixar aberto os efeitos colaterais da declinação da competência.

É a quebra de paradigmas, que até então sólidos, foram diluídos pela Modernidade Líquida, no que Bauman[5] coloca ser “O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos “poderes de derretimento” da modernidade”, trazendo a evidência novos direitos e outras relações até então não existentes, e como próprio do novo, a insegurança é um efeito, mas como novo e fluido não pode ser evitado.

Como explica Lopes Jr. [6] “A competência, ao mesmo tempo em que limita o poder, cria condições de eficácia para a garantia da jurisdição (juiz natural e imparcial)”. O processo é um Sistema de Garantias e assim deve ser entendido como instrumento de tutela do imputado, limitando, assim o poder punitivo do Estado, servindo como uma barreira protetiva do acusado contra o poder punitivo estatal, logo, uma mudança de competência, em qualquer crime, sem a devida alteração legislativa enseja uma distorção na perspectiva do processo, não só como um Sistema de Garantias (Ferrajoli), como do modelo processual acusatório.

A questão é que tal entendimento foi firmando pela última instância, consequentemente não há mais recurso no âmbito nacional, apesar das referidas decisões não terem efeito vinculante.

Apesar disso, a questão não se encerra, afinal o Brasil está sob a jurisdição da Corte Interamericana de Diretos Humanos e a normativa do Pacto de São José da Costa Rica. De tal maneira que uma vez afrontado os direitos inseridos no referido Tratado estará aberta a via para a responsabilização do Brasil no plano internacional, e não seria a primeira, portanto, é preciso rever o posicionamento adotado ou efetivar uma mudança legislativa no tocante ao foro por prerrogativa de função.

Notas e Referências 

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

SILVA, Edimar Carmo da; URANI, Marcelo Fernandez. Manual de direito processual penal acusatório. 2 ed. doutrina e jurisprudência. Curitiba: Juruá, 2013.

[1] Professor efetivo da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Ciências Penais pela PUC/RS. Coordenador Regional na Bahia do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Advogado.

[2] SILVA, Edimar Carmo da; URANI, Marcelo Fernandez. Manual de direito processual penal acusatório. doutrina e jurisprudência. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2017. p. 35.

[3] BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 93.

[4] STF, Inq. 3026, Rel. Min. Roberto Barroso.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.p.13.

[6] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 258.

 

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