Por Denival Francisco da Silva - 10/06/2015
Sou juiz de direito há 20 anos. Sempre me senti incomodado com esta história de achar o caminho mais simples para o julgamento (ou não julgamento), reduzindo a decisão em repetições de julgados dos tribunais, como se a solução para todos os processos já estivesse pronta, bastando copiar. Não renego a jurisprudência como fonte do direito. Todavia, tenho que estar convencido de que aquela decisão dos órgãos superiores está em consonância com minha consciência e ao caso concreto, sem exigir dela a medida certa para a decisão que devo proferir no caso específico. Preocupo-me com os princípios constitucionais, o que parece não tem sido a regra em outras decisões judiciais.
Assim, por enfrentar alguns temas de modo diverso ao convencionado, inclusive insistindo em decidir contrariamente ao que já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (órgão revisor direto de minhas decisões) e ao próprio STJ, sou visto por alguns, principalmente estes que não querem se dar ao trabalho de fazer um novo julgar e exercitar um pouco a reflexão sobre as questões postas especificamente em cada processo, tratando os dramas pessoais como situações idênticas, quando, a rigor, cada processo traz uma história exclusiva, acabo sendo compreendido (incompreendido) sob a pecha de “do contra”, “rebelado”, “visão ideológica de esquerda” e estas coisas todas, de quem não tem argumento para debater no campo das ideias (neste caso sobre os princípios constitucionais).
Bom. Certa vez, num encontro informal com colegas, numa mesa do lanche – erramos 6 (Isso mesmo! Nenhuma analogia à teledramaturgia.) – , um dos presentes incitou a discussão sobre determinado tema jurídico, salvo engano as recorrentes ações revisionais de contrato bancário (aliás, já há aí um tremendo equívoco dos autores desta ação ao denomina-las assim, e dos juízes ao concebê-las como tal, já incorrendo em erro no ato de decidir). O debate correu entre os presentes, cada um expondo seus pontos de vista. Para uns, tratava de picaretagem de tomadores de empréstimos, verdadeiros estelionatários e que deveriam ser censurados severamente. Outros tinham posições mais amenas, admitindo, até certo ponto, a possibilidade de discussão do contrato. Outros, mais moderados ainda, concedendo algumas das pretensões iniciais, a título de tutela antecipada ou como medida liminar. Enfim… O debate ia neste rumo e eu ainda sem emitir minhas posições, que de certo modo diversificava de muito daquilo que se debatia, onde pretendia tomar outro ponto de partida que eu via necessário para o debate. Nesta expectativa de chegar a minha vez, ia condensando toda aquela discussão numa única fala, para que assim que tivesse oportunidade de pronunciar pudesse fazer um apanhado geral. De certo modo, isso foi positivo, porque enquanto observava as posições de cada um, via a ação como um jogo lotérico por parte do jurisdicionado, de maior ou menor aderência às decisões dos tribunais. Tudo dependeria de quem conhecesse do pedido: sorte ou azar. Veja quanta insegurança no ato de julgar e de receber as decisões.
Quando finalmente deram pela minha presença (acho que foi mais ou menos assim), e alguém pediu minha opinião, já adiantando que sabia que eu tinha entendimento diverso, outro colega atravessou e disse:
– Ah, mas o Denival é doido!
Isso foi o bastante para que todos caíssem na gargalhada (inclusive eu, que surpreendido com aquele comentário, não pela concepção do falante, mas pela ocasião, oportunidade e franqueza, diante de minha presença), não me dando oportunidade de esclarecer minha posição. Encerrou-se ali o encontro e todos se retiraram, e eu com aquela sensação antidemocrática e de ofensa ao pluralismo político (um dos princípios fundantes da República Federativa do Brasil – art. 1º, IV, CF), porque naquele caso, pelo fato de diferir do convencional não me foi dado, sequer, oportunidade de exposição.
Todavia, fui para meu gabinete de certo modo satisfeito com o adjetivo, com a convicção (não sei se errônea) de que a ideia de doido, anunciada pelo colega com relativa cortesia, significava que eu não decidia cegamente conforme a jurisprudência, porque tinha opinião própria e um ponto de vista firme e que, portanto, diante de tantos ali seguidores incontestes da jurisprudência (um pouco mais, um pouco menos, mas sempre seguidores), tudo isso seria uma tremenda loucura.
Passados não mais que dois meses, num outro encontro de juízes, alguns reclamando (para variar) dos encargos financeiros assumidos, eis que o colega que há poucos dias havia me chamado de doido, contou sua sina. Disse que havia adquirido um apartamento na planta de determinada construtora. No curso do contrato, com os reajustes que não conseguira imaginar no ato de sua edição, o comprometimento de sua renda estava acima do que poderia dispor e, tendia a piorar. Depois, então, de ter integralizado razoável quantia (mas que significava apenas uns 10% do valor do negócio) e passados uns 6 meses da contratação, com mais 30 meses pela frente, procurou a construtora para renegociação. Não lhe impuseram dificuldade, dando-lhe logo o caminho. Podemos transferir seu contrato para um imóvel dentro de seu padrão econômico, de forma que as prestações enquadrem no seu orçamento. Feitas as contas, reanalisado, adiado o sonho daquele big apartamento, etc., aceitou. Porém, no momento de baterem o martelo, eis que a construtora o adverte para a cláusula contratual que previa o pagamento de multa em caso de distrato por parte do adquirente. Tentou ponderar que ali não se tratava de distrato, mas de renegociação, etc., etc.. Não teve jeito, a construtora só admitiria a barganha se o mutuário pagasse a multa de 30%, estipulada contratualmente, sobre o valor integralizado. Foi ai que ele, aderente/consumidor/juiz de direito, deu-se em conta da danada da cláusula. Enfim, com a faca no pescoço, com novas parcelas vencendo daquele contrato original, aceitou as condições impostas.
Bom, ao terminar o relato desta história, e na nossa presença, disse o colega que viu que não tinha como discutir com a construtora e que percebeu que a solução seria aceitar o que era proposto para depois levar o debate ao judiciário, convicto de que seria reconhecido o abuso. Ao terminar esta fala e já olhando para mim, disse-me:
– Tomara que esta ação seja distribuída para você, Denival.
– Eu, por que, eu?
– É sim, porque você tem posições pró-consumidor.
– Hummmm! Mas eu não sou doido? E se a construtora juntar na sua defesa, como soluções jurídicas a serem dadas, cópias de sentenças suas em casos similares?
Desta vez foi ele que ficou emudecido. Não por falta de oportunidade de fala, mas por ausência de argumentos.

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Denival Francisco da Silva é Doutorando em Ciências Jurídicas pela UNIVALI/SC. Mestre em direito pela UFPE. Juiz de Direito. Professor.
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