Por Alexandre Bizzotto - 22/03/2015
(Veja a Parte 1)
Parte 2 A caixinha de maldades: ganhando projeção na realidade No contexto de intolerância, vislumbra-se que a execução penal é o ponto alto (juntamente com as prisões cautelares) da distribuição de sofrimento para todos atingidos pelas garras do sistema penal.Depois do desgaste da fase de conhecimento, apresenta-se o momento da concretização da sentença condenatória ou da imposição da medida de segurança com a apropriação do Estado do corpo do condenado/internado e a formal restrição de direitos inerentes à liberdade física.
Salvo os desvios impróprios das prisões cautelares que têm funcionado como antecipação da pena, na fase da execução, o apenado e seus familiares começam a sentir as vicissitudes do procedimento executivo. Após as angústias e incertezas da discussão sobre o acertamento da responsabilidade sobre fatos imputados, resta ao apenado à resignação com o cumprimento da pena aplicada ou a insurgência por meio da manutenção da liberdade nervosa da situação de foragido. Qualquer das escolhas se revela uma fonte de distribuição fática de maldades.
A opção pela fuga, algo inerente ao humano ansioso pela preservação da liberdade corporal, acaba normalmente sendo tortuosa. Há de se considerar o desgaste emocional do foragido e de seus familiares. A espera de ser preso a qualquer instante pode se constituir em tortura psicológica que provoca danos relevantes.
É de se observar que a grande massa da população de condenados é de pessoas integrantes da classe econômica mais excluída dos benefícios do neoliberalismo. Caso não haja recursos para que seja bancado o preço informal da manutenção da liberdade até a incidência da prescrição, o aprisionamento se torna questão de tempo.
Ademais, a fuga poderá acarretar o risco de enfrentamento policial com resultados drásticos ou, o que é muito comum, a busca do sustento por intermédio do mergulhe profundo e perigoso em novas condutas criminosas e o decorrente agravamento da situação penal futura.
Por sua vez, a resignação física do condenado com a submissão voluntária à pena ou a sua imposição em consequencia da imediata substituição da prisão cautelar (ou a prisão pela captura) dá início à fase mais melancólica do processo penal que é a da execução pena privativa da liberdade.
As vicissitudes do cárcere são descritas pela doutrina [1] e pelos meios de comunicação. Os estabelecimentos penais são verdadeiros campos de concentração para presos pobres que são tratados tal qual lixos humanos, para utilizar a expressão da Zygmunt Bauman.
Agentes prisionais, extremamente desmotivados pela situação de carreira estatal que lhes é imposto e, envolvidos pelo império da crescente intolerância, muitas vezes repassam suas indignações contidas para os presos, exercendo ou deixando de exercer suas funções para sonegar direitos, o que Andreia de Brito Rodrigues aponta como uma modalidade de bullying criminal. [2]
Impende salientar que a grande parcela dos presos são pessoas jovens, o que potencializa o sentimento de frustração de cada um. O processo de encarceramento coletivo provoca a multiplicação da violência que pode ser canalizada para os que estão no convívio forçado.
Inúmeras inimizades são ali geradas e cultivadas e, se não resolvidas dentro do cárcere, são transferidas para os espaços de liberdade concedidos quando do gozo de benefícios legais. É o que ocorre quando os presos são transferidos para os regimes semiaberto e aberto, que pela sua natureza atendem a um menor controle vigiado, o que proporciona uma maior liberdade para eliminar o problema existente.
Sabe-se que em boa parte de nossas comarcas, os regimes semiaberto e aberto não têm a estrutura prevista na LEP, ensejando inúmeras adaptações penais que podem recair no recolhimento noturno com trabalho diário. Nessa situação, os presos são obrigados a utilizar-se de necessários caminhos para se chegar ao local determinado, tornando-se muito comum as emboscadas e a efetivação de tiroteios próximos aos locais de recolhimento.
Levando-se em conta que a sociedade não tem admitido à construção de estabelecimentos penais no centro econômico das cidades, é fácil notar que os acertos de conta se dão longe do convívio dos que se autodenominam cidadãos de bem. Coisas de presos, diriam os entusiastas com o processo de exclusão física da parcela estigmatizada da sociedade.
As autoridades percebem a situação. No contexto da intolerância do bem, muitas vezes tem sido observado por parte de magistrados à adoção de postura alheia à realidade, com o apego ao cumprimento da legislação ordinária e respectiva tentativa de se reduzir à complexidade do problema para algo confortável situado na mera discussão pautada na tecnicidade do direito. Ou, quando muito, optam por transferir a responsabilidade do problema para as autoridades do Executivo.
É como se o ato do magistrado, de encontrar à solução logicamente compatível com o sistema delineado pela legislação, pouco importando a realidade, fosse o suficiente para o desempenho da atividade judicial de tutor dos direitos fundamentas dos presos vinculados à execução penal. Essa anuência com a situação real pode ser determinante para o agravamento dos processos de exclusão (e eliminação) daqueles sujeitos ao cumprimento de penas privativas de liberdade.
Alguns nortes para mitigar a distribuição da maldade
Por mais que seja difícil, principalmente em face da participação de todas as pessoas neste mundo de feiuras e belezas que estamos a fabricar, cabe ao juiz responsável pela condução da execução penal agir lembrando que o preso é ser incluso no todo que somos e não o monstro preconcebido pelos nossos medos mais presentes.
Na tentativa de se vislumbrar uma feição da atuação judicial que se aproxime da necessária alteridade, a observância de alguns nortes na prática da execução penal pode servir de filtro para que as inerentes porções de maldade exercidas na execução penal não tenham o condão de aniquilar a imagem ideal ou física do outro.
Nesse passo, são instrumentais importantes: o valor da dignidade humana; o princípio da individualização; o esquecimento como valor; o diálogo solidário; o critério da factibilidade; e a utilização recorrente das tutelas de urgência dos direitos fundamentais.
Dignidade humana. No lidar com os dramas da execução penal, cabe ao juiz ter delineado enfaticamente que cada pessoa é um universo revestido de valores diferenciados consoante a sua experiência de vida dentro de uma sociedade pluralista. O humano é a razão da existência da sociedade e de qualquer normatização sobre ela.
Respeito à dignidade humana significa respaldar o “indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projecto espiritual”. [3] A dignidade humana significa conceder a este todo o respeito em suas complexidades materiais e espirituais, valorizando a felicidade humana, pois essa deve ser o parâmetro maior de todo sistema normativo.
A dignidade humana é “o valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem” [4] e implica o absoluto e intangível tratamento respeitoso ao ser humano, propiciando-se contínuas maneiras de se expurgar toda forma de degradação da pessoa por parte do Estado.
Na execução penal, a dignidade humana que é “o princípio mais carregado de sentimentos” [5], deverá ser utilizada como instrumento facilitador para a descoberta de soluções judiciais concretas que levem o juiz a reconhecer-se no preso que está sujeito às suas decisões. Por mais que a imposição da pena seja um comando legal, há parcelas de dignidade que são intocáveis.
Cabe ao magistrado agir amparado no valor dignidade, como se este fosse uma saudável espécie de camisa de força cunhada pelo sentimento de amor ao próximo. O perceber a dor que circunda a todos os envolvidos na caminhada da execução penal, é vital para que não se perca o sentido de tudo o que é feito, devendo prevalecer o Estado Democrático de Direito.
Individualização. A sociedade, com suas múltiplas singularidades é terreno propício para a criação de formas diferentes de se encarar o mundo e as suas dificuldades. Modelos de vida são sedimentados e, cada um, com as suas peculiaridades e respectivos conceitos de vida social. Concepções econômicas, religiosas, morais, culturais e naturais expressam decisivamente no humano e o ajudam a esculpir, na tela da vida, as obras a serem seguidas, copiadas e transformadas.
O valor constitucional do respeito ao ser diferente impõe que o juiz sopese todos os fatores que circundam a efetivação da execução penal. O cumprimento da pena é pautado formalmente na premissa inicial da guia de execução, que é o documento que representa o acertamento penal do juízo do conhecimento.
Por tal razão, a quantidade de imposição de pena é limitada na guia da execução, que funciona como se fosse o retrato inicial do processo de execução. A partir de tal premissa, cabe ao magistrado encontrar os meios que tornem a vida de cada indivíduo que cumpre pena menos drástica possível. Limitado pela legislação punitiva, devera o juiz moldar a execução concreta, igualando no que for imperativo do Estado e diferenciado no que for peculiar a cada preso.
Convém lembrar que o público alvo da execução penal é feito predominantemente por pessoas integrantes da classe mais pobre. Essa situação necessita ser sopesada pelo magistrado no momento de apreciar cada situação. Agir como se todos estivessem plenamente protegidos por defensores é uma armadilha que atinge os direitos fundamentais dos presos.
Existindo diferenças decorrentes da própria pessoa, como doenças, debilidades físicas e mentais, questões de trabalho, perigos de morte bem como peculiaridades familiares, cabe ao juiz da execução penal assumir a diferença individualizando a situação com a perseguição de respostas que melhor se enquadrem à situação que lhe é colocada.
Nessa perspectiva, é fundamental que o magistrado parta de premissa isonômica na individualização. Os apenados, já se sentindo humilhados na condição prisional, necessitam perceber que as diferenças existentes nas decisões no processo da execução são decorrentes de isonomia estatal com todas as situações de diferenciação fáticas que aparecerem.
Explica-se: se o magistrado conceder um benefício por questões de diferenciação concreta, deve observar o mesmo critério para casos semelhantes. A falta de tal postura provoca um clima de sentimento coletivo de maior injustiça dentro do cárcere, com resultados que podem ser explosivos para o estabelecimento prisional.
Esquecimento. Postura muito comum dos magistrados na execução penal é a de se ficar remoendo os fatos já acontecidos. O intérprete fica preso ao passado fortalecendo a imagem estigmatizada do preso e recriando imagens que em nada auxiliam para os objetivos declarados da execução penal.
Ao se lidar com a execução penal, revela-se importante a utilização do método do esquecimento em relação à valoração dos fatos já decididos e acertados em sede do processo de conhecimento. Neste quadro, busca-se o objetivo de lidar com o transcurso do procedimento de execução sem que ranços emocionais negativos impeçam o desvelamento de soluções compatíveis com a situação projetada para o futuro do preso.
Salo de Carvalho lembra que “a força viva produzida pelo esquecimento possibilitaria à humanidade condições de felicidade, pois bloquearia os efeitos da presentificação do passado”. [6] A vinculação dos critérios jurídicos tão somente ao comportável pela memória intelectiva e emocional acaba por apequenar as perspectivas humanas de melhor convivência com seus dramas.
Sabe-se que biologicamente o corpo humano se renova cotidianamente. Uma pessoa que praticou um fato em certa data, após tempos, modifica-se. Igual situação ocorre filosoficamente e socialmente. A mudança é inerente ao humano. Somente a racionalidade congelante do direito é que procura trabalhar com noções imutáveis ao se apegar de modo doentio à memória. Conforme lembra Cristina Rauter, “o tempo da burocracia é um outro modo de aprisionamento”. [7]
Auxilia a atuação do juiz na execução penal a utilização de uma espécie de clinica do esquecimento no sentido de exercer-se o presente do necessário procedimento judicial sem que o apontamento valorativo dos fatos passado reconhecidos se revele em obstáculos para novos retratos.
Absolutamente não se defende o descumprimento dos comandos judiciais contidos na guia de execução, pois essa, de modo democrático, o magistrado deve cumprir em consonância com os comandos legais e constitucionais. Todavia, propugna-se que o juiz deve ignorar as diferenciações preconceituosas e despidas de sentido a fim de deixar o preso livre da elaboração da imagem do futuro, pois essa somente cabe às opções pessoais do preso.
Em qualquer ato judicial praticado no procedimento de execução é a pessoa do preso que importa e não a sua bagagem história. Não que se deva desconhecer absolutamente o passado, mas sim interpretá-lo aos olhos do presente na certeza de se construir uma solução a partir do presente contextualizado.
Pensar o presente com os desejos voltados para uma reconstrução do passado na execução penal é algo flagrantemente sem sentido de realização, ainda mais quando se lembra que o indivíduo momentaneamente preso em algum momento vai voltar a integrar o convívio social.
Diálogo solidário. O Estado Democrático de Direito pretende construir relações dialogais, nas quais o reconhecimento para com o outro e as suas diferenças sejam colocadas em um plano em que possam ser discutidas para se chegar a contínuos consensos que podem ser restabelecidos e fortificados com a atualização de novos anseios.
A imposição de pena já delineada no processo de acertamento não invalida a necessidade de que seja observado um diálogo no procedimento da execução penal. A submissão à pena não afasta os variados espaços de diálogo que, pelas singularidades dos sofrimentos que são emanados pela execução penal, precisam ser permeados pelo compromisso com a solidariedade.
Nas belas palavras de Luciano Baronio, que são adequadas para a execução penal, hoje “exige-se uma forte solidariedade capaz de reintegrar com plenos direitos na sociedade àqueles indivíduos que foram “excluídos” e que, na prática, acabamos abandonando à margem da vida”. [8]
O processo quando chega à fase de execução penal normalmente encontra o preso e seus familiares extremamente humilhados pelo ritual de degradação da persecução penal. Como revela Antoine Garapon, a “permanência do rito na justiça mostra o parentesco profundo e um pouco obscuro que o processo mantém com o sacrifício”. [9]
Não se quer com a afirmação do sofrimento do preso e dos seus queridos romantizar as pessoas que democraticamente foram condenados, muitas vezes por fatos de gravidade ímpar. Quer-se apenas lembrar que a punição já foi estipulada com a condenação e, independentemente dos fatos cometidos, os atingidos diretamente ou indiretamente pelo processo (afinal são humanos) estão mais debilitados do que na fase inicial de todo histórico que deu ensejo à condenação.
Cabe ao magistrado e às pessoas que trabalham diretamente com ele (e isto é importante demais) ter a sensibilidade de perceber o momento e adotar postura mais solidária. Sempre quando possível é preciso abrir diálogo com os presos e seus familiares.
Nas visitas aos presos no sistema prisional, no gabinete do magistrado com as visitas de familiares, advogados e presos ou no momento das audiências, o juiz deve assegurar a qualidade de informações atentando-se, importa repetir, para o sofrimento prolongado, principalmente o familiar.
A maior tolerância e até mesmo o carinho com os presos e seus familiares devem ser exercitados pelo juiz de modo que a pessoa que busca o socorro, ali sofrida, não acentue o seu sentimento de humilhação e saiba que apesar de tudo que passou ou ainda passará, é indivíduo incluído na absoluta intangibilidade do respeito.
Critério da factibilidade. É de fundamental importância na aplicação dos dispositivos relativos à execução penal a atenção ao critério da factibilidade. Conforme diz Alexandre Morais da Rosa, há de “existir operabilidade – razão instrumental entre meios e fins – capaz de possibilitar a aplicação do mundo da vida”. [10]
O magistrado ao verificar as condições de aplicação do texto legal deve construir a norma para o caso concreto sob o olhar da factibilide entre a realidade estrutural do sistema carcerário e as abstratas previsões legais.
Na fala de Enrique Dussel, quem “projeta realizar ou transformar uma norma, ato, instituição, sistema de eticidade, etc., não pode deixar de considerar as condições de possibilidade de sua realização objetiva, matérias e formais, empíricas, técnicas, econômicas, políticas, natureza em geral e humanas em particular”. [11]
A realidade carcerária do país e de cada comarca necessita ser aferida pelo juiz da execução penal para que o cumprimento dogmático do texto legal penal não provoque danos irreparáveis ao transcurso da aplicação da pena. Não se pode colocar 80 presos em um estabelecimento em local onde cabem 40, pois é preciso dizer o óbvio, 40 não são 80. Não pode ser exigido um grau 10 de compromisso do preso se o Estado lhe confere grau 2 de asseguração das promessas feitas no ato do encarceramento a partir da LEP.
Não cabe ao magistrado utilizar-se dos presos na qualidade de massa de pressão para permitir o entulho do cárcere para coagir o Executivo a agir na construção (sempre incessante) de novos presídios. Incumbe-lhe dar instrumentalização possível dos dispositivos da LEP e leis penais incriminatórias frente às exigências constitucionais e seus dispositivos de conteúdo de direitos fundamentais em compasso com a realidade estrutural dos estabelecimentos prisionais.
Conforme constata Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, “o sistema prisional brasileiro constitui-se num dos maiores atentados aos direitos humanos, desde o seu surgimento até os dias atuais, conforme nos dão conta os diversos os diversos estudos realizados sobre a situação carcerária”. [12]
Vendar os olhos e os sentidos para a realidade não fará com que ela desapareça. É relevante que o juiz tenha a ciência de que mesmo quando atua concedendo um benefício ou deixa com sua decisão de piorar (mais) a situação do apenado, não significa que sua conduta evita a distribuição calculada de maldades. Eventual progressão de regime ou reinclusão com a relevação de falta grave, embora possam ser medidas que acalentem o preso, não afastam a realidade sobre o local do destino dos beneficiados.
Não dá para o magistrado negar parcela de responsabilidade sobre a sonegação dos direitos fundamentais escondendo-se no positivismo jurídico. Caso o juiz conste à ausência de estrutura carcerária para garantir os direitos dos presos (saúde, educação, segurança, trabalho, religião, defesa judicial digna) ele deve, sendo isto possível, acabar ou minimizar a situação, mesmo que para isto tenha que afastar a idéia da punição em favor da sedimentação da democracia.
Tutela de urgência. A maneira que optamos na construção do mundo de hoje faz com que o fator tempo seja algo poderoso na influência das relações humanas e de seus direitos. O tempo, na lição de François Ost “determina a força instituinte do direito”. [13] Impossível, sob pena de abalo estrutural, desprezar a ingerência do fator tempo, ainda mais quando a velocidade é um dos paradigmas do mundo atual.
Barbosa Moreira, ao abordar os efeitos do tempo sobre o direito adverte que “não são raras as hipóteses em que a inevitável demora da prestação jurisdicional é capaz simplesmente de inviabilizar, pelo menos do ponto de vista prático, a proteção do direito”. [14]
Surgindo o estado de perigo a determinado direito, apresenta-se como necessária a concessão de provimento judicial de imediata proteção por meio de decisão que tenha a pretensão de acompanhar a velocidade dos anseios emergentes para cada caso posto.
A Constituição da República de 1988 contemplou na redação do artigo 5ª XXXV a inafastabilidade de proteção judicial quando ameaçado um direito. Logo, com a ameaça, o comando constitucional torna indeclinável a atuação do Judiciário respaldando o problema concreto com a concessão da tutela de urgência adequada.
Na seara penal, não obstante esteja ocorrendo uma renovação de conceitos para se ampliar o rol de medidas legais colocadas para o juiz, principalmente no que tange ás medidas substitutivas à prisão cautelar, ainda existem imensas lacunas na prática, e, especialmente, na esfera da execução penal.
A reunião forçada de população carcerária que cresce em progressão geométrica em locais fechados sem que muitas vezes haja condições para se propiciar um convívio saudável de assistência de direitos ou, mesmo de convivência pacífica entre os presos, provoca corriqueiramente situações que demandam a pronta e célere intervenção do juiz criminal para que direitos essenciais dos presos não sejam ignorados.
Registre-se que a ordinariedade dos serviços da execução reclama a prévia manifestação do Ministério Público para a apreciação do feito. Entretanto, muitas vezes a realidade urgencial da situação impõe que o magistrado atue na concessão de liminar para que o direito do preso não sucumba, conferindo-se a vista dos autos ao Ministério Público após a decisão para que seja aferida a medida concedida. É o exercício da tutela de urgência.
Impõe-se dizer que a concessão de tutela de urgência em sede da execução penal tem estrita vinculação com a proteção aos direitos fundamentais. Não pode o magistrado utilizar-se da tutela de urgência como subterfúgio para descumprir regras de garantia. Nestes casos, é cogente a prévia manifestação ministerial com a efetiva integração e participação da defesa técnica.
Pode ser lembrada a título de exemplo a imediata retirada ou deslocação de presos de pavilhões ou de estabelecimentos prisionais mediante decisão liminar para que a vida deste transferido não seja tirada por outros presos ou por carcereiros de determinado local.
Consoante se observa no cotidiano forense de certas localidades, há diversos casos em que presos autorizados ao trabalho externo ou para gozar saídas temporárias são vítimas de homicídios decorrentes de acerto de contas anteriores que foram feitas tanto dentro como fora do cárcere.
Neste ensejo, a notícia trazida para o juízo de forma minimamente comprovada de homicídio não consumado ou mesmo de planos para a sua consumação não permite que seja aguardada a delonga da burocracia estatal para ocorrer uma transferência ou a concessão de regime domiciliar.
Outras hipóteses não exaustivas da necessidade de provimento de urgência podem ser apontadas. A concessão de decisão de urgência autorizando a extensão de horário para o recolhimento noturno com o objetivo de resguardar o estudo; ou para a manutenção do trabalho do preso; bem como a concessão de suspensão do recolhimento noturna (ou a retirada do regime fechado) a fim de se permitir tratamento médico não conferido de modo satisfatório pelo Estado.
É certo que tais medidas podem ser revogadas caso ocorra manifestação ministerial trazendo ponderações relevantes que demonstrem um quadro diferente do inicialmente retratado. Como regra, a decisão urgencial não tem o caráter definitivo. O que importa dizer é que com o manejo de tal proteção à ameaça de direito, cumpre o magistrado com a sua função de tutor constitucional do devido e adequado procedimento de execução penal.
Para concluir
Não se pode ser ignorada pelo juiz a realidade que é encontrada no exercício da prática do cumprimento das penas privativas de liberdade. São inúmeras as mazelas. O conhecimento dos comandos legislativos deve andar juntos com a percepção a respeito da necessidade de se observar os instrumentos legais e estruturais que são colocados para o efetivo cumprimento da execução penal bem como sobre quem é a clientela do sistema prisional.
O objetivo deste trabalho é o de se defender que, apesar da crescente intolerância que ganha corpo nos anseios sociais e, particularmente no trato com as questões penais, cabe ao magistrado tutelar os direitos fundamentais dos presos. O Estado Democrático de Direito precisa deixar de ser apenas uma promessa dentro da execução penal para incorporar-se ao cotidiano judiciário.
Eduardo Galeano denunciou no fim do século XX que a “justiça tapa os olhos para não ver de onde vê o que delinqüiu nem por que delinquiu, o que seria o primeiro passo de sua possível reabilitação. O presídio-modelo do fim do século não tem o menor propósito de regeneração e nem sequer de castigo. A sociedade enjaula o perigo público e joga a chave fora”. [15] Que os magistrados tenham a sensibilidade de não serem coniventes com o modelo prático que o Estado tem imposta para a execução penal.
Veja a Parte 1 aqui
Notas e Referências: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e justiça penal: teoria e prática da pesquisa sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2010. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de: Juarez Cirino dos Santos. 3. ª ºedição. Rio de janeiro: Editora Revan, 2002. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. CACCIARI, Massimo; MARTINI, Carlo Maria. Diálogo sobre a solidariedade. Bauru: Edusc, 2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e (em face da) Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. -----------------------. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo: (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord). Direito e psicanálise – intersecções a partir de “O processo” de Kafka. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Edições 70. Tema: Antropologia Ano: 1991. DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Editora Vozes, 2002 ELIADE. Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006. ELIAS, Norberto; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro:Zahar Editor, 2000 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola o mundo ao avesso. Porto Alegre: LePM, 2001. GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaios sobre o ritual judiciário. Instituto Piaget, 1997. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991. LIMA, Roberto Gomes; PERALLES, Ubiracyr. Teoria e prática da execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei 7.210, de 11/07/84. São Paulo: Atlas, 1993. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual – oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. MORETZSOHN, Silvia. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007. OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005. RAUTER, Cristina. Clinica do esquecimento: construção de uma superfície. Tese de Doutoramento defendida na PUC-SP. ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no direito penal brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2001. RODRIGUES, Andreia de Brito. Bullying criminal: o exercício do poder no sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material. Florianópolis: Habitus, 2002. -----------------------------------. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2011. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário:crise, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995. [1] Por todos, é imprescindível a leitura do livro Falência da pena de prisão: causas e alternativas, de autoria de Cezar Roberto Bitencourt. [2] RODRIGUES, Andreia de. Bullying criminal: o exercício do poder no sistema penal [3] GOMES, J.J.Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 221. [4] ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no direito penal brasileiro, p. 49. [5] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e (em face da) Constituição, p. 26. [6] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia, p. 170. [7] RAUTER, Cristina, Clinica do esquecimento: construção de uma superfície. Tese de Doutoramento defendida na PUC-SP. [8] BARONIO, Luciano. In: CACCIARI, Massimo; MARTINI, Carlo Maria. Diálogos sobre a solidariedade, p. 11. [9] GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário, p. 256. [10] ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos, p. 29. [11] DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 268. [12] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e justiça penal: teoria e prática da pesquisa sociocriminológia, p. 321. [13] OST, François. O tempo do direito, p. 13. [14] MOREIRA, José Carlos Barbosa Temas de direito processual: oitava série, p. 89. [15] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, p. 113.

Alexandre Bizzotto é Doutor em Direito pela Univali-SC. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Juiz de Direito.
Imagem Ilustrativa do Post: Tiny Crumpler Matches, Dusty Table // Foto de: peanutian // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/peanutian/3358517376 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode