O Judiciário na execução de políticas de saúde – Por Clenio Jair Schulze

08/08/2016

Uma das questões mais tormentosas do constitucionalismo reside em definir os limites de atuação de cada Poder.

Como regra, cabe ao Executivo, em conjunto com o Legislativo, a criação e a execução de políticas públicas de saúde.

Por isso é importante a discussão sobre o papel do Judiciário nas hipóteses de descumprimento das políticas de saúde fixadas na Constituição.

O Supremo Tribunal Federal tem admitido o controle judicial de políticas públicas de saúde quando demonstrada a não observância das diretrizes estabelecidas pelo texto constitucional (v.g. ARE 745745 AgR/MG, Relator Min. CELSO DE MELLO). Neste campo, o Judiciário brasileiro vem exercendo o papel de guardião das promessas (Garapon).

No campo do fornecimento de medicamentos é tranqüilo o entendimento da Corte: “O Supremo Tribunal Federal tem se orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade” (ARE 926469 AgR/DF, Relator Min. ROBERTO BARROSO, julgamento em 07/06/2016, Primeira Turma, DJe 20-06-2016).

Nestes casos, o que se tem, em última análise, é a incorporação indireta de medicamentos por ordem judicial[1] (TRF2, Apelação Cível 0013959-29.2010.4.02.5001, Relator Desembargador Federal RICARDO PERLINGEIRO, julgado em 26/04/2016, DJ 05/05/2016).

Mesmo assim, ainda persiste a pergunta: um juiz pode determinar a construção de um hospital, de um posto de saúde ou a contratação de médicos?

Estas questões são objeto de repercussão geral já reconhecida mas ainda não julgada pelo STF, conforme se verifica da seguinte decisão:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ESPEFICIAMENTE QUANTO À SUFICIÊNCIA DE PROFISSIONAIS NA ÁREA DE SAÚDE. ALEGADA CONTRARIEDADE AOS ARTS. 2º E 196 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Repercussão geral reconhecida do tema relativo aos limites da competência do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes em concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde, ao qual a Constituição da República garante especial proteção. (STF, RE 684612 RG/RJ, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, j. 06/02/2014, DJe 05-06-2014)

Não obstante a ausência de posição definitiva sobre o tema, a verdade é que o STF vem adotando uma atuação forte e contundente no controle da atuação dos entes públicos responsáveis pelas políticas públicas de saúde.

Há decisão do Supremo, por exemplo, condenando Município à contratação de pessoal da área médica, mediante concurso, para integrar o corpo clínico de hospital, bem como aquisição e manutenção dos equipamentos hospitalares[2]. (AI 759.543 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 17-12-2013, 2ª T, DJE de 12-2-2014)

Tal posição não é pacífica no Judiciário. Há decisões contrárias, por exemplo, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROVIMENTO DE CARGOS. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA HARMONIA E SEPARAÇÃO DOS PODERES. Diante da independência e harmonia entre os Poderes, mostra-se indevida a interferência do Judiciário para autorizar o provimento de cargos, cuja atribuição é de exclusiva competência do presidente da república. (TRF4, Apelação Cível 0012168-38.2008.404.7200/SC, RELATOR Juiz Federal GUILHERME BELTRAMI, julgado em 10/08/2010)

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. COREN. DETERMINAÇÃO DE CONTRATAÇÃO DE ENFERMEIROS E TÉCNICOS DE ENFERMAGEM EM NÚMERO MÍNIMO. UNIDADE HOSPITALAR. HARMONIA DOS PODERES. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. Obrigar ente público à contratação de mais e novos profissionais de Enfermagem, em número determinado, como objetiva o COREN em ação civil pública, caracteriza agressão ao sistema de separação/harmonia de Poderes e ao comando do artigo 2º da CRFB. 2. A Resolução n. 293/2004 do COFEN, ao impor a observância de número mínimo de Enfermeiros em instituições de saúde, extrapola o regramento normativo delineado nas Leis n. 5.905/1973 e 7.498/1986, em desprestígio às disposições do artigo 5º, II, da Carta da República. 3. Apelação improvida. (TRF4, AC 5003095-39.2013.404.7213, TERCEIRA TURMA, Relator NICOLAU KONKEL JÚNIOR, juntado aos autos em 12/03/2015)

De qualquer forma, a despeito da ausência de posição definitiva, a judicialização destes temas demonstra que há, em verdade, omissões do Executivo e do Legislativo.

Cabe à sociedade, assim, exigir mais equilíbrio e respeito dos agentes públicos, sob pena de aumentar ainda mais o já existente déficit de democracia e o alto índice de descumprimento da Constituição.


Notas e Referências:

[1] [...] “DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO MANIPULADO. REQUISITOS LEGAIS E EXCEPCIONALIDADE. ÔNUS PROBATÓRIO DO DEMANDANTE. 1. Apelação interposta contra sentença que, em ação ordinária, julgou improcedente o pedido de fornecimento de Carbonato de Cálcio 1,2g + Vitamina D3 400UI (120 cápsulas), Metotrexato 20mg (9 cápsulas) e fórmula manipulada de Hidrocloroquina 400mg + Famotidina 60mg + Amitriplina 30mg + Meloxicam 10mg + Ácido Fólico 5mg + Prednisona 5mg (60 cápsulas). [...] É necessária a análise dos requisitos da efetividade, eficiência, segurança e custo-efetividade do medicamento pleiteado, sendo aconselhável ao magistrado exigir a apresentação de documentos relacionados com o caso, bem como proceder à oitiva prévia do médico responsável pela prescrição e, inclusive, dos gestores [...] A segurança e fiscalização empendidas em sua dispensação deverão ser as mesmas utilizadas na dispensação de medicamentos já incorporados à lista do SUS. 6. Uma prescrição médica sem o devido detalhamento é insuficiente para autorizar a concessão de medicamento e sua incorporação indireta junto ao SUS. Recai sobre o demandante o ônus de provar o atendimento  aos  requisitos  do  art.  19-O,  parágrafo  único,  da  Lei  nº  8.080/90,  bem  como  a imprescindibilidade do pleiteado.” [grifado] (TRF2, Apelação Cível 0013959-29.2010.4.02.5001 (2010.50.01.013959-0), Relator Desembargador Federal RICARDO PERLINGEIRO, julgado em 26/04/2016, DJ 05/05/2016)

[2] “Ampliação e melhoria no atendimento à população no Hospital Municipal Souza Aguiar. Dever estatal de assistência à saúde resultante de norma constitucional. Obrigação jurídico-constitucional que se impõe aos Municípios (CF, art. 30, VII). Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão inconstitucional imputável ao Município do Rio de Janeiro/RJ. Desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal (RTJ 183/818-819). Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796). [AI 759.543 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 17-12-2013, 2ª T, DJE de 12-2-2014.]”


 

Imagem Ilustrativa do Post: Brasília // Foto de: Carla Salgueiro // Sem alterações

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