O Judiciário e a Voz da Criança

04/01/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Pensemos o seguinte: nos processos judiciais afetos à criança e ao adolescente, quem são os principais sujeitos dessa relação?

Evidentemente, a criança e o adolescente, situação essa que traz uma “novidade”, eis que se evidencia a expansão da cidadania subalterna a que se refere Lefort[1], pois a criança, o adolescente por força do imperativo constitucional, saíram das sombras de um silêncio imposto pelo menorismo, que dava voz e luz somente aos adultos.

Nesse contexto o Poder Judiciário é chamado a ter um novo papel e, com isso, uma reestruturação, tanto no que concerne aos seus recursos materiais, quanto aos recursos humanos. Daí resulta a imperiosa e contínua formação dos que atuam no sistema de justiça, sejam os juízes, promotores, advogados e esquipe multidisciplinar.

Em termos de conjunto normativo um considerável e robusto sistema a compor a Doutrina (jurídica) da Proteção Integral, em seu tripé constituidor: a Convenção sobre os Direitos da Criança, ONU, 1989, a Constituição da República Federativa do Brasil, 1988 e a sua principal norma regulamentadora, o Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990.

No entanto, a realidade se sobrepões dificuldades no tocante a efetiva participação em processos em que a centralidade é a criança, o adolescente.

A citada Convenção sobre os Direitos da Criança traz entre seus dispositivos:

ARTIGO 12

1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.

2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.[2]

Vê-se de modo claro, o direito de a criança de expressar uma opinião e de ter esta opinião levada em consideração em assuntos ou procedimentos que lhe digam respeito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente determina em seu art.16, II que a criança e o adolescente têm o direito de opinião e expressão.

Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:

[...]

II - opinião e expressão;

A liberdade de opinião sintetiza a liberdade de pensamento e de sua manifestação, consolidada no art. 5º, IV da Constituição Federal de 1988.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;       

Já no que no que concerne o direito à convivência familiar e comunitária, e mais especificamente ao tratar da Família Substituta, o Estatuto da Criança e do Adolescente afirma, em seu art. 28, que a colocação em família substituta poderá ser feita mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, e o § 1º admoesta: “Sempre que possível, a criança ou o adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente considerada”.

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.

§1oSempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada. 

§2oTratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em audiência.

Em tema da adoção, em se tratando de adotando maior de 12 anos de idade, será necessário, como exposto acima, além do consentimento dos pais ou do representante legal, o seu próprio consentimento:

Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando.

§2º. Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento

Percebe, pois, uma importante inovação da Lei nº 8.069/1990, que demonstra respeito pela opinião do adolescente, uma vez que se trata de ato fundamental para o seu futuro; dessa forma, não havendo tal consentimento, a adoção não poderá ser autorizada. Verifica-se, concretamente no dispositivo em apreço, que efetivamente a lei brasileira considera a criança e o adolescente como sujeitos de direito e não meros objetos cuja “posse” estejam sendo discutida judicialmente.

Podemos, ainda, fazer menção aos seguintes dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente que dizem respeito ao direito de emitir opinião: artigos 111, V; 124, I, III, VIII; 161, § 3º e 168[3].

E, ainda, na compreensão da Lei  nº 13.431, de  4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência,  alterando dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecida como  Lei da Escuta Especializada e do Depoimento Especial, são diversos os dispositivos que situam a necessidade do dar voz à criança.

Mas na prática por que a dificuldade de participação? Podemos objetivamente elencar:

  • Estruturas físicas, por vezes obsoletas, que podem até assustar crianças e adolescente, oriundos de lares empobrecidos;
  • Inexistência de formação contínua dos atores do sistema de justiça;
  • Arrogância de muitos juízes, promotores, advogados que se colocam num pedestal e não permitem uma dialogicidade;
  • Uma linguagem distante, obscura. Muitos se servem de um desnecessário “juridiquês” que, na realidade, rompe até mesmo com a concepção de Montesquieu, na obra “O Espírito das leis”, segundo a qual as normas deveriam ser compreensíveis. Mas muitos não desejam isso, têm medo de perderem seu lugar de poder, ao empoderarem as crianças com o poder da voz. Enfim, muito há o que ser feito.

O caminho da simplicidade precisa ser trilhado pelos atores do sistema de justiça, ainda tão presos a estruturas físicas impróprias, vestimentas distanciadoras e linguagem não inclusiva.

O direito à voz, ao mesmo tempo que demanda conquista, demanda também um novo se sujeitar – um sistema de justiça que abra suas portas e janelas e deixe-se invadir pela luz que emana da criança sujeito.

 

Notas e Referências:

LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 26 maio 2021.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 26 maio 2021.

[1] LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[2] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 26 maio 2021.

[3] Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:

[...]

V - direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; [...]

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:

I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público;

II - peticionar diretamente a qualquer autoridade;

III - avistar-se reservadamente com seu defensor;

[...]

VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos; [...]

Art. 161.  Se não for contestado o pedido e tiver sido concluído o estudo social ou a perícia realizada por equipe interprofissional ou multidisciplinar, a autoridade judiciária dará vista dos autos ao Ministério Público, por 5 (cinco) dias, salvo quando este for o requerente, e decidirá em igual prazo [...]

§3o Se o pedido importar em modificação de guarda, será obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida.  

Art. 168. Apresentado o relatório social ou o laudo pericial, e ouvida, sempre que possível, a criança ou o adolescente, dar-se-á vista dos autos ao Ministério Público, pelo prazo de cinco dias, decidindo a autoridade judiciária em igual prazo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Martelo da justiça // Foto de: Fotografia cnj // Sem alterações

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