O Jogo Penal em “O Outro Gume da Faca”: Considerações sobre a novela de Fernando Sabino a partir do Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, de Alexandre Morais da Rosa

22/11/2015

Por Eduardo de Carvalho Rêgo - 22/11/2015

Introdução

Ensina-se nas faculdades de Direito, não sem um certo cinismo, que a persecutio criminis tem por escopo principal a promoção da Justiça. Diz-se que o combate ao ilícito penal é a própria razão de ser do Estado, estatuído com o objetivo de promover a convivência pacífica e a consequente paz social, dando-se a cada um o que é seu.

Sem dúvida, o discurso oficial utiliza-se de propósitos aparentemente bastante nobres para convencer (e convence!) o cidadão comum, o homem médio (e também o cidadão extraordinário e o homem acima da média) de que o Direito Penal é a chave para a resolução dos conflitos individuais e sociais.

Porém, o que se verifica na prática é que o aparelho penal funciona numa outra lógica, distanciada da nobreza proclamada no discurso: em vez de buscar a promoção da Justiça, o processo penal visa, na verdade, manter a máquina penal funcionando, custe o que custar, porque é o crime que lhe dá vida e lhe confere utilidade. O filósofo francês Michel Foucault já alertava para a lógica penal distanciada do discurso quando demonstrou que ela opera a partir da construção do conceito de delinquente pelo aparelho penal[1]. Vera Regina Pereira de Andrade, por sua vez, há tempos chamava a atenção para a eficácia às avessas do sistema penal, ao dizer que “Mais do que uma trajetória de ineficácia, o que acaba por se desenhar é uma trajetória de eficácia invertida, na qual se inscreve não apenas o fracasso do projeto penal declarado mas, por dentro dele, o êxito do não projetado”[2].

Com efeito, em sociedades capitalistas e mercantilistas como a nossa, o processo penal, como tantas outras coisas, vira um negócio. E, como todo negócio, só anda bem se tiver matéria prima (seres humanos), demanda (crimes) e lucro (financeiro ou não). Cabe a pergunta: o que seria do Ministério Público, da Advocacia e do Poder Judiciário se não houvesse crimes para denunciar, defender e julgar? Assim é que o Promotor, o Advogado e o Juiz precisam do crime para dar sentido às suas existências. Em certo sentido, o desejam.

A grande contribuição da Literatura para o Direito é, de certa forma, denunciar essa lógica nada nobre e completamente descompassada com o discurso oficial que opera no dia-a-dia, ou seja, na vida real dos processos penais. A partir da Literatura pode-se compreender, sem os tecnicismos inerentes à linguagem jurídica, o modus operandi de criminosos, juízes, delegados, promotores, advogados, etc.

A escolha pela novela policial de Fernando Sabino se deu por duas razões: (i) os romances ou novelas policiais não têm sido abordados como fonte de inspiração para os principais estudos em Direito e Literatura no Brasil, talvez por alguma espécie de preconceito em relação ao gênero; e (ii) O Outro Gume da Faca conseguiu antecipar em muitos anos aquela lógica trabalhada por Alexandre Morais da Rosa em seu Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, no sentido de que as partes envolvidas num processo penal ou num inquérito policial não visam buscar a promoção da Justiça, mas, sim, ganhar o jogo penal[3].

Relativamente ao segundo aspecto, importa mencionar, desde já, que, numa primeira leitura, a trama parece girar indubitavelmente em torno de temas como traição, assassinato e culpa. Não obstante, numa leitura mais atenta, o que se percebe é que o pequeno livro trata, sobretudo, da difícil tarefa de investigar o crime perfeito, isto é, aquele crime que não deixa sequer rastros de autoria, tal qual o duplo homicídio cometido por Aldo Tolentino em O Outro Gume da Faca. Nesse sentido, é preciso atentar para a atuação do Delegado Amarante, o jogador-investigador. É ele quem, sempre desconfiado, dá fôlego ao inquérito policial, chamando a atenção para elementos que parecem secundários, mas que, repentinamente, vão aos poucos mudando os rumos da investigação. Se não há dúvidas de que Aldo é o protagonista da novela, o Delegado Amarante é, dentro da lógica dos jogos, o “jogador a ser batido”.

Em suma, o que se pretende neste texto é demonstrar como a investigação criminal conduzida pelo Delegado Amarante na novela de Sabino revela a lógica dos jogos, a ponto de, em resposta ao crime perfeito cometido por Aldo, o jogador-investigador utilizar-se de artifícios jurídicos para incriminar um terceiro – não por acaso o filho “problemático” e “drogado” do verdadeiro assassino –, consagrando-se o vencedor daquele jogo penal.

Direito e Literatura nos romances policiais

Em outra oportunidade, ponderei que “Realizar uma pesquisa em Direito e Literatura deve ser mais do que simplesmente procurar o Direito em uma obra literária ou utilizar um romance, por exemplo, como mera ilustração para uma determinada teoria jurídica”. Disse ainda que

A verdadeira importância de um estudo dessa envergadura está, salvo melhor juízo, no pensar o Direito a partir da Literatura; interpretar como ele funciona em relação aos personagens envolvidos na trama e como a história narrada modifica ou aprimora o entendimento do leitor no que se refere ao papel desempenhado pelo Direito nas próprias relações sociais[4].

A preocupação, externada em nítido tom de censura, tinha por trás a desconfiança em relação à profusão de estudos apresentados à comunidade jurídica sem maiores reflexões ou rigores científicos, utilizando muitas vezes a Literatura como mero instrumento de divulgação ou crítica de institutos jurídicos específicos, num determinado lugar e tempo.

Evidente que essa confusão teórica não ocorria por oportunismo ou má-fé daqueles poucos acadêmicos que, resolutos, resolviam dedicar seu precioso tempo a pensar o Direito a partir da Literatura. Ao contrário, parece-me que esse cenário se construiu justamente pela incipiência do Direito e Literatura no Brasil.

Embora em tempo recorde – pois passaram-se apenas dois anos da publicação do texto acima mencionado – a perspectiva dos estudos em Direito e Literatura modificou-se. Com a criação da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL) em 2014 e com a consolidação do Colóquio Internacional de Direito e Literatura (CIDIL), que já está em sua terceira edição, o nível dos trabalhos apresentados e publicados em nosso país tem crescido naturalmente.

Penso que esse crescimento tenha a ver também, e sobretudo, com a escolha dos textos literários a serem abordados sob o viés do Direito: quando se pensa o Direito a partir de Sófocles, Fiódor Dostoiévski, Franz Kafka, Herman Melville, Albert Camus, Eça de Queirós ou Machado de Assis, por exemplo, as possibilidades são naturalmente múltiplas, admitindo-se uma pluralidade de interpretações distintas, porém igualmente interessantes e válidas.

Assim é que os melhores trabalhos atualmente disponíveis no mercado são análises de obras literárias clássicas. A título de exemplo, menciona-se que, no ano de 2013, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade organizaram obra intitulada Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade, na qual reuniram textos com análises sobre as obras de Franz Kafka, Honoré de Balzac, Daniel Defoe, Ulisses, entre outras grandes escritores da Literatura mundial[5].

Não obstante o satisfatório rumo que a pesquisa em Direito e Literatura está tomando no Brasil, penso que já seja hora de incluir em seu contexto o mais popular – e talvez por isso mesmo o mais criticado – dos gêneros literários: o romance ou a novela policial.

Pode-se conceituar o romance policial como aquela literatura de suspense na qual a trama gira em torno do cometimento de um ou vários crimes e de sua respectiva apuração. Geralmente, há um profundo antagonismo entre o criminoso (mau) e aquele agente, geralmente policial (bom), designado para desvendar o crime cometido. Nas palavras de Adriano Ramon Lani,

[...] no romance policial, o que está quase sempre em jogo é identificar e punir alguém que rompeu o ordenamento jurídico, ameaçando a ordem social. O relato vai, assim, pôr em cena um personagem heróico (mito) que, munido de conhecimentos técnico científicos, oferecerá soluções (ideológicas), identificação e punição do culpado.[6]

A julgar pela sua conceituação, a princípio não haveria qualquer razão que justificasse possível preconceito desenvolvidos com Direito e Literatura em relação ao romance ou novela policial, tendo em vista que as temáticas usualmente trabalhadas nessa espécie de gênero literário são muito afetas ao universo jurídico: crime, investigação, inquérito, processo, julgamento, punição, etc.

Ocorre que, justamente por utilizar-se de categorias tão intimamente ligadas ao Direito Penal, não necessariamente com o rigor técnico que um bom profissional do Direito utilizaria, o romance policial acaba muitas vezes se tornando um prato cheio para simplificações – tanto por parte do autor quanto por parte de seus leitores.

Dentre os especialistas em Literatura, o romance policial também não é unanimidade. Inclusive, muitos o rotulam de “subliteratura”. Veja-se o comentário de J.C. Guimarães:

Apesar do sucesso estrondoso, inclusive entre escritores do nível de um Borges, um Bioy Casares, o romance policial é normalmente tido pela crítica, em especial a norte-americana, como subliteratura. Razões não faltam para explicar a severidade desse julgamento. O gênero quase sempre carece do fundamental, aquilo que Carpeaux, em “História da Literatura Ocidental”, chamou de “verdade moral e psicológica”, tão apreciada e indispensável ao gênio de um Dostoiévski, de uma Virginia Woolf ou de um Machado de Assis. A ausência desse elemento axiológico – espécie de lei pétrea do grande romance clássico – deve-se possivelmente ao fato de a ação ser mais importante do que a densidade para a finalidade da trama. E mais: o quebra-cabeças que encerra corresponde de fato a um jogo de peças pré-moldadas, baseado num “a priori” que vem a ser a existência de um crime, um detetive e um assassino. É uma convenção, com a chatice de todas as convenções e enquadramentos.[7]

De igual modo, para Georg Lukács o romance policial não seria um romance legítimo, mas apenas uma caricatura. Chamando o romance policial de “leitura de entretenimento”, o autor ponderou:

[...] o romance possui uma caricatura que lhe é quase idêntica em todos os aspectos inessenciais da forma: a leitura de entretenimento, que indica todas as características exteriores do romance, mas que em sua essência não se vincula a nada e em nada se baseia, carecendo com isso de todo o sentido.[8]

J.C. Guimarães arremata, dizendo que “O romance policial, gênero que não se enquadra nas categorias modernista e de vanguarda, é fértil em escritores de talento inferior[9].

Não se pretende aqui combater as críticas, e nem dizer se elas são justas ou injustas, mas o fato é que existem escritores bons e escritores ruins em todos os gêneros literários. Provavelmente os maus escritores de romances policiais vencem em números absolutos os bons escritores. Porém, um gênero que conta com nomes como o de Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Fernando Sabino não pode ser simplesmente descartado: compete àqueles que pretendem trabalhá-lo selecionar os escritos relevantes, descartando os irrelevantes, como, de resto, se faz com tudo na vida.

De certo modo apaziguando a polêmica, Raquel Vieira Parrina Sant’Ana identificou, em sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, boas qualidades no que chamou de “literatura policial”:

O fato é que a literatura policial representa um dos gêneros mais bem-sucedidos de todos os tempos. Poucos estilos foram capazes de florescer em lugares tão diferentes – desde os Estados Unidos à adaptação perfeita à cultura britânica, o giallo italiano, o polar francês, o suirishousetsu japonês, etc. – e influenciar tão massivamente a evolução de outras artes, como o cinema, e ainda o teatro, o rádio e a televisão. Suas origens já foram apontadas em lugares tão diferentes quanto no Oedipus Rex, no Zadig, ou em As mil e uma noites. Muitos outros gêneros se originaram dele, como a ficção científica, o drama de tribunal, além de suas próprias subdivisões, como o policial duro, o filosófico, o analítico... Talvez seja o único gênero literário a se tornar um jogo de tabuleiro[10].

O que se pretende defender neste artigo é que é possível pensar o Direito a partir da literatura policial de boa qualidade. E, para tanto, é preciso que o jurista se desarme de preconceitos e deixe de torcer o nariz, principalmente quando se deparar com eventual falta de técnica, linguagem coloquial ou maneirismos desenvolvidos pelos literatos em estudo. Pouco importa se o autor do romance policial sabia ou não a diferença entre denúncia e queixa-crime, agravo e recurso em sentido estrito ou pronúncia e condenação. O que importa é que sua trama seja capaz de despertar o leitor interessado para as situações que ocorrem no cenário jurídico e que acabam influenciando o próprio dia-a-dia dos indivíduos. Em suma: desde que o romance ou novela policial problematize de forma séria a realidade jurídica do tempo em que se vive, poderá constituir material desejável para o campo de estudo Direito e Literatura.

Tendo isso em vista, a escolha de O Outro Gume da Faca, de Fernando Sabino, parece acertada, pois, além de ser um autor respeitado e de qualidade, conseguiu trazer em sua novela diversos assuntos interessantes para serem discutidos pelos profissionais do Direito. Se, como ponderado por Raquel Sant’Ana, o romance policial é o único gênero literário a se tornar um jogo de tabuleiro, talvez não haja obra melhor para dar ensejo à análise do processo penal conforme a teoria dos jogos, tal como desenvolvido pelo jurista Alexandre Morais da Rosa em seu Guia Compacto.

Síntese da novela de Fernando Sabino

A novela[11]O Outro Gume da Faca, do escritor brasileiro Fernando Sabino, conta a história do modesto advogado Aldo Tolentino, cinquenta anos, pai de três filhos – dois dos quais teve com Maria Lúcia, sua segunda e atual esposa.

A trama se desenrola a partir das desconfianças de Aldo em relação ao agir de Maria Lúcia. Relata o narrador que, quando percebeu o comportamento estranho de sua esposa, consubstanciado numa repentina agressividade e num súbito desejo sexual nunca antes demonstrado, o personagem principal da novela armou um cenário perfeito para investigar os passos da esposa durante sua ausência em casa, no expediente do escritório de advocacia que dividia com o amigo Marco Túlio:

Alegando que, na sua ausência, as crianças entravam à vontade no escritório [de casa] e mexiam em tudo, Aldo Tolentino ultimamente dera para trancar a porta à chave ao sair para o trabalho.

Naquela manhã, todavia, teve antes o cuidado de soltar o trinco da janela que dava para a varanda, deixando-a apenas encostada.[12]

O plano de Aldo era afastar-se do seu local de trabalho no horário do expediente, sob a escusa de compromissos no Fórum, e retornar imediatamente à sua residência, instalando-se secretamente no escritório que havia deixado destrancado, onde havia uma extensão do telefone que poderia ser acionada no momento em que a esposa fizesse menção de realizar ligações:

A princípio pensou simplesmente em segui-la. Abandonou logo a idéia, era um risco que não podia correr: se ela por acaso percebesse, estaria desmoralizado. Então optou pelo plano que agora punha em prática. E ali estava, à espera. Esperaria o dia inteiro, se fosse preciso. Sentia remorso pelo que fazia, mas não tinha alternativa: era para o bem de ambos, para salvar aquele casamento.

Não se passaram nem vinte minutos, e ouviu o ruído do telefone. Alguém discava lá em cima, no quarto. Tirou com cuidado o fone da extensão, ficou à escuta.[13]

Mas a ligação que revelou o segredo buscado por Aldo só foi recebida por Maria Lúcia muitas horas depois do momento em que havia se instalado em segredo no escritório de casa, quando o envelhecido advogado “já não podia mais de impaciência, arrependido daquele plano louco”:

Foi quando o telefone tocou.

Esperou ansioso que ela atendesse lá em cima. A campainha soou várias vezes e parou. Então ele retirou com cuidado o fone do gancho.

– Desculpe, eu estou saindo do banho – era Maria Lúcia, mas com uma voz diferente, mais grave e sensual: – Pensei que você não ia telefonar nunca mais, não agüentava esperar. Então fui tomar meu banho.

Respondeu uma voz de homem – ele reconheceu imediatamente a voz de Marco Túlio. Por um instante, desnorteado, chegou a achar que o colega queria falar com ele. Logo entendeu tudo, e a emoção foi tão forte que começou a tremer. Teve de afastar um instante o fone, para que a respiração descontrolada não o denunciasse. Conseguiu se dominar e voltou a ouvir.[14]

Na conversa entre os amantes, Marco Túlio revelou à Maria Lúcia um plano para passarem alguns dias juntos: tendo em vista à viagem da esposa Sônia à Petrópolis, dera um jeito de mandar Aldo numa viagem de negócios a São Paulo:

– Tudo arranjado. É esta a surpresa: vai a São Paulo amanhã. Desencavei uma reunião lá para ele. A reunião pode se prolongar por uns três dias. Depende de Sônia ir ficando por lá. Que tal?

– Ele ainda não voltou do foro?

– Ainda não. Está lá desde manhã.

– Então por que você não telefonou antes? Me deixou esse tempo todo esperando.

– Porque eu próprio tive um dia ocupadíssimo. Foram mil providências para ter o resto da semana livre. Você precisava ver como ele ficou com a idéia da viagem. Rindo à toa. Se sentido importantíssimo. E foi para o foro pôr em dia os processinhos dele para poder viajar sossegado.

– Neste caso, você pode vir para cá amanhã – lembrou ela: – Ficamos aqui mesmo, vai ser ótimo.

– E as crianças?

– Já estarão dormindo quando você chegar. O quarto delas é lá no fundo, não tomam nem conhecimento. E o estafermo está viajando.

– Quem?

– Paulo Sérgio, o filho dele. Por falar nas crianças, vou ter de desligar, elas daqui a pouco estão chegando do colégio e invadindo meu quarto.

– Você está falando de onde? Do quarto?

– Eu não contei que ele é tão esquisito que deu para trancar o escritório e levar a chave? Diz que é por causa dos meninos. Veja se alguém pode agüentar um homem desses.

Trêmulo, a respiração opressa, Aldo mal podia segurar o fone.[15]

Traído pela esposa e pelo colega de escritório de advocacia, Aldo então pôs em prática o plano que possibilitou pegar os dois em flagrante: não obstante tenha ido a São Paulo na viagem de negócios, resolveu tomar um avião de volta ao Rio de Janeiro naquela mesma noite, utilizando-se da carteira de identidade que havia secretamente tomado do office boy que trabalhava consigo no escritório de advocacia. Era o plano perfeito: informara à recepcionista do hotel que assistiria ao jogo de futebol no quarto e que, nesse ínterim, não gostaria de ser incomodado por ninguém. Solicitou até uma ligação no início do jogo, certificando-se de que não iria perdê-lo por estar dormindo, deixando programado um gravador com a resposta de agradecimento.

Enquanto todos pensavam que estava assistindo ao jogo na televisão, Aldo dirigiu-se à sua residência no Rio de Janeiro:

Pretendia apenas surpreendê-los, não era isso mesmo? Já não sabia bem o que pretendia. Não pensava em matar, mas também não pensava em morrer. O plano era para o que desse e viesse: tinha que se defender. Se alguma coisa acontecesse de pior, a culpa não seria sua: para todos os efeitos ele estava em São Paulo. Não foi para lá que Marco Túlio o mandou?[16]

Chegando em casa, viu o automóvel de Marco Túlio estacionado na rua em frente e logo se lembrou de uma pistola que o amigo sempre carregava consigo. Ficou imaginando se na noite de hoje a teria levado à sua residência. Ao adentrar e aproximar-se de seu quarto, ouvia cada vez mais fortes as vozes da esposa e do amante. Avistou a pistola, pegou-a, “no exato momento em que eles, a rir, voltavam para o quarto”:

Girou sobre si mesmo e deu com os dois, o riso por uma fração de segundo ainda estampado no rosto, estatelados de terror à porta do banheiro – ele com uma toalha em torno da cintura, ela inteiramente nua. Não teve tempo de dizer nada: ela fez menção de se virar para voltar ao banheiro, ele em desespero avançou instintivamente em sua direção. O primeiro tiro a atingiu no pescoço, o segundo o alcançou no peito – viu, siderado, ambos tombarem ao mesmo tempo, ela de lado, ele de frente, braços estendidos quase roçando seus pés.[17]

Embora consternado, Aldo tomou um táxi em direção ao aeroporto e embarcou de volta a São Paulo a tempo de retornar ao hotel nos minutos finais do jogo entre Santos e Botafogo. Adentrou ao seu quarto e só saiu no dia seguinte, com destino à reunião de negócios que havia sido arranjada por Marco Túlio.

Mais tarde, a Secretária do Escritório de Advocacia, Dona Mirtes, entrou em contato com Aldo, solicitando o seu retorno ao Rio de Janeiro, tendo em vista o acontecimento de “Um acidente com o Dr. Marco Túlio e Dona Maria Lúcia”[18].

Foi então que o assassino travou conhecimento com o Delegado Amarante. Embora o Chefe de Polícia tenha inicialmente desconfiado de Aldo, o homem logo se convenceu de que o advogado carioca era inocente. Assim sendo, conduziu Aldo ao funeral da esposa e prosseguiu com a investigação, em que o maior suspeito era Paulo Sérgio, filho mais velho de Aldo, que havia voltado de viagem no mesmo dia em que o pai cometera o crime contra Maria Lúcia e Marco Túlio.

Paulo Sérgio havia chegado de sua viagem pouco depois do crime. Seu quarto era nos fundos, no andar térreo, mas subiu ao andar de cima ao ver a luz acesa, e deu com que os jornais chamavam de cena macabra, sinistra, horripilante. Cometeu a leviandade de apanhar no chão a pistola, acreditando que o assassino ainda podia estar no interior da casa e, assim armado, pudesse dominá-lo. Percorreu a casa inteira, e não descobrindo ninguém, além das crianças que dormiam, as empregadas estando ausentes, de folga – telefonou para a polícia, que o encontrou completamente desarvorado, de arma ainda na mão.[19]

Vendo que o filho seria responsabilizado pelo crime que não havia cometido, Aldo resolveu contar a verdade ao Delegado Amarante. Entretanto, o assassinato havia sido tão bem planejado, o crime cometido havia sido tão perfeito, que a autoridade policial não acreditou na versão. Para ele, tratava-se do pai querendo assumir a culpa do filho:

– Respeito a sua atitude, Dr. Tolentino. E não tenho vergonha de confessar que ela me enche de admiração pelo senhor. Também sou pai, e espero que Deus me poupe de jamais estar em situação semelhante à sua. Mas, sinceramente, eu não sei se, em seu lugar, seria capaz de fazer o mesmo.[20]

Provavelmente presumindo a culpa do pai traído, o filho confessou a autoria do crime e se recusou a aceitar a ajuda de Aldo, que não teve tempo de pôr em prática os planos de assumir a defesa técnica do filho, impetrando imediatamente um habeas corpus para que Paulo Sérgio pudesse responder o processo em liberdade: logo após deixar a delegacia, recebeu a ligação comunicando o suicídio:

– Alô, Dr. Tolentino?

Custou a reconhecer a voz do delegado, e mais ainda a entender o que ele queria dizer, cheio de cuidados e rodeios.

– Diga logo – resmungou.

O delegado informou que Paulo Sérgio havia se enforcado com a camiseta em sua cela.

– Vou já para aí.[21]

Contudo, a narrativa termina com Aldo se dirigindo até a copa de sua casa, pegando um vidro de remédios e tomando todos os comprimidos. De volta ao escritório em que havia descoberto a traição de sua mulher, pôs-se a dormir.

Alexandre Morais da Rosa e o Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

A teoria dos jogos é um ramo da matemática. Conforme explica Alecsandra Neri de Almeida, “A teoria dos jogos é a aplicação da lógica matemática no processo de tomada de decisões nos jogos, utilizada na economia, na política, na guerra e caracterizada, como nos jogos, por conflitos de interesses determinando a melhor estratégia para cada jogador”. Em acréscimo, a articulista detalha:

A teoria dos jogos tem a finalidade de prever os movimentos dos outros jogadores, sejam eles concorrentes ou aliados, através dessa teoria os jogadores se posicionam da melhor forma para obter o resultado desejado.

O objetivo da teoria dos jogos é entender a lógica na hora da decisão e ajudara responder se é possível haver colaboração entre os jogadores, em quais circunstâncias o mais racional é não colaborar e quais estratégias devem ser adotadas para garantir a colaboração entre os jogadores.

A teoria dos jogos, por meio da matemática, equaciona os conflitos, onde o foco são as estratégias utilizadas pelos jogadores.[22]

O maior expoente da teoria dos jogos foi o matemático americano John Forbes Nash Junior, que teve sua vida retratada no filme Uma Mente Brilhante, dirigido por Ron Howard e protagonizado por Russel Crowe no ano de 2001. Em sua tese Jogos Não-Cooperativos, publicada em 1951, “Nash provou a existência de ao menos um ponto de equilíbrio em jogos de estratégias para múltiplos jogadores”, dizendo que “para que ocorra o equilíbrio é necessário que os jogadores se comportem racionalmente e não se comuniquem antes do jogo para evitar acordos”[23].

Em suma, a teoria dos jogos pode ser compreendida como um conjunto de estratégias que auxiliam os indivíduos (entendidos estes como jogadores) na tomada de suas decisões dentro de um contexto acadêmico, profissional, esportivo, etc., sendo que tais decisões, para serem bem sucedidas, devem necessariamente levar em conta também as decisões tomadas pelos outros jogadores. A palavra de ordem para desempenhar um bom papel no contexto da teoria dos jogos é estratégia e a chave para entender a teoria dos jogos é abandonar a lógica individualista, buscando sempre entender a melhor jogada a partir da interação com o outro, seja ele o aliado ou o oponente.

Alexandre Morais da Rosa, em obra editada recentemente, procura entender o processo penal a partir da teoria dos jogos. Segundo L.A. Becker, que prefacia o livro, “Assim como na guerra e no jogo, no processo cada um busca egoisticamente a vitória (desequilíbrio), não a ‘justiça’ (equilíbrio) – Huizinga”.[24] É como se o processo judicial, notadamente o penal, fosse realmente um jogo, no qual as partes em conflito buscam desesperadamente a vitória. Nessa toada, nem Ministério Público nem denunciado, nem querelante e querelado, querem justiça: eles querem convencer o julgador de que as suas razões são as mais corretas. Em suma, as partes antagônicas querem vencer o jogo!

De acordo com a teoria dos jogos, “esse comportamento egoístico produz um resultado pior para o conjunto de jogadores”[25]. Evidente, pois, quanto mais combativos e antagônicos os jogadores, mais as partes têm a perder com o jogo penal. Daí se afirmar que “Não se pode estudar isoladamente os jogadores e os julgadores. Somente na relação entre eles é que o jogo processual faz sentido[26].

Com efeito, a teoria dos jogos aplicada ao processo penal tem por escopo auxiliar os jogadores a “moverem suas peças” adequadamente, de modo que não haja uma total disparidade entre as partes envolvidas na querela. É preciso que cada jogador tenha a exata noção do papel que desempenha dentro do processo penal. Nesse sentido, várias dicas são prescritas por Morais da Rosa:

No processo penal a sorte possui seu lugar e deve ser considerada na elaboração da estratégia e das táticas no decorrer da partida, mas guardam pertinência com a capacidade, experiência e atitude do jogador. A protagonista dos jogos processuais é sempre uma ação humana e daí a importância da teoria dos jogos.

Em texto clássico Calamandrei já afirmava que decorar as regras de xadrez não torna o sujeito um grande enxadrista, bem como saber as regras processuais não o capacita, por si, como grande jogador processual, mas sem saber as regras, todavia, não se joga. Compreender a dogmática crítica é pressuposto para quem quiser se tornar um grande jogador ou julgador.[27]

A teoria dos jogos aplicada ao processo penal afasta o mito da verdade real, pois delimita o campo de atuação dos jogadores (o que não está nos autos não está no mundo), de modo que o desempenho dos atores em cada movimentação processual será muito mais decisiva do que a utópica busca pela Justiça: “O julgamento depende da confluência de diversos fatores lançados no processo e somente se trabalha com expectativas, tendo-se aversão aos platônicos da Verdade Real”[28].

A verdade real é algo inatingível. Ou melhor, é algo que pode ser atingido apenas pelas partes envolvidas no fato criminoso no exato momento em que vivenciaram tal experiência. As versões dos fatos posteriormente contadas por vítima e réu ou querelante e querelado são necessariamente distorcidas e não podem ser tornadas absolutas (nem uma nem outra) pelo julgador.

No fim das contas, o que resta aos partícipes do processo é tão somente o jogo, a disputa pela vitória. Isso equivale a dizer que a peleja entre os jogadores em conflito na tentativa de convencer o julgador é a síntese do processo. A teoria dos jogos impõe que toda movimentação dentro das regras do jogo, toda movimentação legítima, é válida, sendo devida a vitória por aquele jogador que for mais esperto, astuto, estrategista e inteligente.

Em O Outro Gume da Faca, o jogo penal começa na montagem do crime perfeito cometido por Aldo e finda com a sua desconstrução pelo Delegado Amarante, culminando na criminalização do jovem Paulo Sérgio. O interessante é que a captura de um terceiro alheio ao fato criminoso não depõe contra o sistema, sobretudo porque é evidente que a desconstrução do crime perfeito jamais poderia redundar na captura do verdadeiro culpado – até porque, se isso fosse possível, o crime não seria perfeito. A conclusão não é das mais complexas, aliás é quase óbvia: se na lógica do jogo penal o que importa é a vitória processual, então pouco importa que a culpa recaia sobre alguém que não tenha nada a ver com o crime.

Considerações sobre a autoria no crime perfeito

Vulgarmente, diz-se que o crime perfeito é aquele que não deixa indícios de autoria. Nesse sentido, pode até haver arma do crime, corpo de delito e muito sangue no local de investigação; entretanto, mesmo que o crime seja descoberto em seus maiores detalhes, ele será perfeito se não houver nenhum suspeito ou, sob o ponto de vista do autor do crime, se a responsabilidade recair sob um terceiro.

Por outro lado, quando se analisa o processo penal a partir da teoria dos jogos, em que o objetivo das partes é vencer o processo e nada mais, a lógica se torna um pouco distinta, sendo quase possível afirmar que não existe crime perfeito. Diz-se “quase” porque há, em tese, uma única hipótese de crime perfeito: aquele que ninguém tem notícia. Fora isso, há amplas possibilidades para o jogo penal. Em uma palavra: se o autor do crime deixa abertura para uma investigação penal que, ao seu final, potencialmente incrimine alguém, então o crime não é perfeito.

Nessas ocasiões em que há o crime, mas não há suspeitos, geralmente se recorre à velha fórmula dos suspeitos usuais, tal como na cena do filme Casablanca (1941), em que o Major Strasser é baleado e o Capitão Renault, para proteger Rick – interpretado por Humphrey Bogart –ordena ao seu subordinado: “Procure entre os suspeitos de sempre”[29].

Mas quem seriam esses suspeitos de sempre? A quem se recorre quando não se encontra o verdadeiro autor do crime? Essa pergunta não é tão complicada de se responder quando se tem em mente a realidade social em que se vive.

Michel Foucault, filósofo francês que viveu entre os anos de 1926 e 1984, identificou em sociedades mais desenvolvidas do que a brasileira uma espécie de bode expiatório perfeito, o suspeito usual de todas as horas, que denominou de delinquente. De acordo com Foucault, o poder[30] exercido sobre os indivíduos criminalizados no interior das cadeias, além de torná-los “dóceis” e “úteis”, produz um saber sobre essas pessoas. É criada então uma espécie de “detento-modelo” ou “delinquente-modelo”, apto a disseminar a “delinquência” por toda a sociedade. Esse saber produzido nas prisões, combinado com o exercício de poder, auxilia, ainda, na seleção dos indivíduos na coletividade, de acordo com o perfil daqueles que já habitam as penitenciárias[31].

De igual modo, Francisco Bissoli Filho atenta para a situação do ex-presidiário dentro do contexto criminal brasileiro:

[...] o indivíduo selecionado e etiquetado, além de estigmatizado pela própria reação social, acaba, muitas vezes, sendo induzido a um desvio secundário, iniciando uma carreira criminal.[32]

O delinquente foucaultiano e o ex-presidiário do qual fala Bissoli Filho são exemplos de bodes expiatórios clássicos. Mas há outros. Outra figura sempre pronta a responder ao chamado penal é o jovem problemático, rebelde, geralmente traficante e/ou usuário de drogas, bastante identificado com o conceito de marginalidade, que ajuda a criar e a difundir. Não por acaso, esse é o perfil de Paulo Sérgio, filho de Aldo, que assume a culpa mediante a confissão do crime que não cometeu. É emblemático que ele assuma a autoria do crime, porque a impressão que fica é que ele não assumiu a culpa apenas para inocentar e honrar o pai, mas também porque essa era a atitude que se esperava dele, do marginal.

Como dizia Foucault, o delinquente é útil porque dissemina a delinquência na sociedade, garantindo ao sistema penal material humano para criminalizar. Ou, para utilizar a imagem marcante de O Outro Gume da Faca, garantindo material humano que possibilite o jogo penal entre os atores do processo penal.

O jogo penal em O Outro Gume da Faca

O jogo penal em O Outro Gume da Faca inicia-se, obviamente, com o planejamento do crime e a criação do álibi por parte do personagem principal Aldo, conforme já detalhado no capítulo 3 do presente artigo.

Porém, os contornos do embate penal começam a se desenhar com a entrada em cena do Delegado Amarante e de suas desconfianças em relação a Aldo, que se iniciam a partir do resumo da noite anterior, tal qual relatado por seu auxiliar, o Comissário Penalva:

O pessoal de São Paulo continua no levantamento, mas por enquanto só apuraram isto – e passou a ler: – Confirmado: passageiro vôo 235, Rio-São Paulo, das 17 horas, chegada às 17 e 55 horas. Confirmado: registro no hotel às 18 e 30 horas, sob o nome Alto Tolentino, reserva pela MT Advogados Associados – firma do falecido, o senhor sabe: eles eram sócios.

– Continue – ordenou o delegado, derreado atrás de sua mesa, olhos fechados, como se cochilasse.

– Confirmado: testemunho do funcionário Indalécio de Souza, da recepção – pediu vistoria no aparelho de televisão, sendo imediatamente atendido. Confirmado: testemunho da telefonista Elza Vitória, do turno da noite – registro de ligação interurbana para o Rio, a cobrar, falou com a Dona Maria Lúcia – a falecida, não é? Confirmado: pedido do hóspede do apartamento 304 para ser chamado Às 21 e 30 horas e que não o incomodassem durante o jogo, atendido. Confirmado: às 23 e 35 horas o mesmo perguntou se alguém o havia chamado – negativo. Antecedentes – nada consta.

– Tem coisa confirmada demais nessa história – o delegado comentou, se erguendo: – Vamos receber o homem.[33]

No livro de Sabino, como de resto ocorre também no dia-a-dia da realidade penal, a atitude do jogador-investigador é sempre de desconfiança. Não é a inocência que se presume, mas, sim, a culpa. As confirmações sobre os passos de Aldo no dia anterior repassadas pelo Comissário Penalva não isentam Aldo da autoria do crime, mas, ao contrário, o consolidam como suspeito: para o Delegado Amarante, o álibi detalhado é indício de artificialidade, de embuste.

Posteriormente, na entrevista oficial entre o Delegado Amarante e Aldo as desconfianças do primeiro em relação ao segundo se afloram e o jogo penal se desenrola de maneira bastante explícita, por meio de um embate entre investigador e assassino. A conversa inicia assim:

– Sabe de uma coisa, Dr. Tolentino? Pode parecer estranho, mas o marido traído desperta mais desprezo que a mulher e o amante. A não ser que ele se vingue.

[...]

– Por causa disso, tem marido que mata, só para depois confessar que matou.

– Por causa disso o quê?

– Por causa da opinião dos outros. Para se resguardar, para recuperar sua auto-estima. Ou para lavar sua honra, como tem quem prefira dizer. São crimes praticados em legítima defesa da honra, reconhecida juridicamente, conforme o senhor sabe. Levam sempre à absolvição.[34]

O viés psicológico por trás da abordagem do Delegado Amarante é notório. Para ganhar o jogo penal, ele se dispõe a elogiar a conduta criminosa, na tentativa de encorajar seu adversário a realizar uma confissão. Mas o assassino permanece firme em seu desígnio de sair vencedor do embate e não cede às pressões de seu oponente.

O interrogatório prosseguiu com o Delegado Amarante perguntando que horas Aldo havia embarcado para São Paulo:

– Às cinco da tarde. Marco Túlio foi pessoalmente me levar ao Santos Dumont, aguardou até o momento em que o avião levantou vôo.

– Por quê?

A pergunta do delegado o surpreendeu:

– Por quê? Bem, talvez quisesse ter a certeza de que eu havia embarcado.

– Como é que o senhor sabia? Estava a par do que havia entre ele e sua esposa, então?

– Não, não estava. Fiquei sabendo agora. E neste instante é que isto me ocorreu.

Precisava tomar cuidado com aquele homem: qualquer descuido seria fatal. E, pelo começo, via-se que iria pôr muitas armadilhas em seu caminho.[35]

O jogo penal não é para iniciantes. Os jogadores são treinados para vencê-lo a qualquer custo. As artimanhas utilizadas por cada uma das partes têm por objetivo a resolução do quebra-cabeça penal, que pode levar à condenação ou à absolvição do indivíduo investigado. Por mais que o Delegado Amarante insistisse, Aldo era um advogado experiente e, nessa condição, insistiu em defender sua inocência, relatando ao Delegado Amarante os seus passos em São Paulo na noite anterior. A última cartada do jogador-investigador foi relativa ao jogo de futebol que Aldo alegava ter assistido:

– Assisti ao jogo aqui mesmo na delegacia.

– Aqui? – Aldo anteviu um ponto a favor, naquele jogo em que ambos agora francamente se empenhavam: – Foi no Rio, e ainda assim mostraram aqui, pela televisão?

– Pelo rádio – emendou o delegado, salvando-se no último momento. – Que é que o senhor achou?

Aldo procurava conter a emoção que o perturbava, manter a cabeça fria a cada novo lance:

– Que achei do jogo? Bem, do Botafogo hoje em dia não se pode achar grande coisa.

– Eu digo do gol.

Outra cilada? Esta era elementar demais. Ou o delegado de fato não sabia?

– Não houve gol: terminou zero a zero.

– Houve um gol anulado.

– Também não houve. Aquilo não foi gol: a bola não chegou a entrar.

O delegado riu:

– Na opinião de botafoguense...[36]

Nesse ponto do jogo, o Delegado Amarante percebe que suas possibilidades de vitória contra Aldo são mínimas. Não adiantaria insistir em outras armadilhas contra o entrevistado: o experiente advogado não cederia a elas. A declaração do jogador-investigador, então, vem em tom de resignação:

– Pode ir em paz, Dr. Tolentino. Contra o senhor, estou convencido de que não há absolutamente nada. Isto eu posso afirmar com segurança.

[...]

– Houve um momento em que o senhor duvidou de mim, não foi?

O delegado sorriu, constrangido:

– Bem, não é propriamente duvidar. O senhor custou muito a perguntar pelas crianças e achei estranho isso. Só depois é que vi que tinha elementos para imaginar que estariam bem. E não desistiu de ir ao enterro, embora eu sugerisse: outro marido qualquer teria preferido não se expor, em circunstâncias tão... constrangedoras, digamos assim. Na polícia a gente aprende a duvidar de tudo e de todos o tempo todo. Mas houve um momento sim... em que eu... Bem, agora posso revelar: a telefonista do hotel achou sua voz diferente ao acordá-lo. Cheguei a pensar que poderia ser outro homem, um cúmplice, imagine. A gente tem de pensar em tudo.[37]

Ao descartar Aldo de sua lista de suspeitos, o Delegado Amarante, na condição de jogador-investigador, tinha duas opções: ou aceitava a derrota (o que, como já ressaltado, não era realmente uma opção válida), ou buscava outro culpado. Buscou, então, outro culpado: assim é que Paulo Sérgio, o filho de Aldo, o qual os jornais da cidade retratavam como o “marginal que um dia até quisera possuir a madrasta”[38] e o jovem “atormentado por problemas, dado às drogas”, que haviam provocado “uma fixação sexual na esposa do próprio pai”[39], desde o início, se apresentou como uma opção viável.

Como já mencionado, Paulo Sérgio se enquadrava tão bem no perfil do assassino que nem mesmo a posterior confissão desesperada do pai, com riqueza de detalhes, foi suficiente para convencer o Delegado Amarante de que ele havia cometido um erro. Aliás, esse conceito de “erro” é bastante relativizado ao final da história, pois fica a sensação no leitor de que o Delegado Amarante, em verdade, cometeu um verdadeiro acerto ao voltar seus olhos para Paulo Sérgio, a ponto de ver garantida a seu favor a vitória no jogo penal.

Para Aldo, ficou a sensação de derrota no jogo penal e a opção do suicídio por ingestão de comprimidos na cena final. A novela mostra que de nada adianta tentar enganar o jogador-investigador por meio da execução de um crime perfeito, pois o sistema sempre acaba selecionando e capturando alguém para responder pelo ato criminoso. No caso de Aldo, sua atitude e sua derrota levaram o filho à cadeia e à morte.

Conclusão

Em O Outro Gume da Faca, Fernando Sabino parece ter desvendado aquilo que Alexandre Morais da Rosa chamaria muitos anos mais tarde de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, na medida em que concluiu sua novela demonstrando que filosoficamente não há espaço para um crime perfeito, isto é, não há lugar para um crime que passe impune pela investigação estatal. A lógica do jogo penal faz com que o Estado, por meio de seus diversos agentes, necessite incriminar ou criminalizar alguém, mesmo que esse alguém seja inocente.

Assim, embora Aldo tenha eliminado Maria Lúcia, a esposa adúltera, e seu amante Marco Túlio sem deixar qualquer rastro que ligasse o crime à sua pessoa, o Delegado Amarante, o jogador-investigador, não aceitou facilmente a derrota, por meio da conclusão do inquérito penal sem a indicação de um suspeito. Na falta de provas mais robustas, ou mesmo indícios que conduzissem ao verdadeiro autor do crime, a Autoridade Policial recorreu a subterfúgios jurídicos (e aos próprios preconceitos disseminados pela imprensa) para identificar em Paulo Sérgio, filho de Aldo, o perfil do criminoso e, com ele, a possibilidade de vitória no jogo penal. Não é despropositado sublinhar que Paulo Sérgio era considerado um jovem rebelde e problemático, sobretudo por ser usuário de drogas – perfil que se encaixa perfeitamente no conceito de delinquente trabalhado por Foucault e pelos criminólogos em geral.

Sem sombra de dúvida, o que chama mais a atenção na leitura dessa novela policial de Fernando Sabino é que, ao final, ressoa evidente como o jogador-investigador não visa a reconstituição dos fatos, a busca da verdade real ou a promoção da Justiça, mas, sim, o desempenho pleno de sua função no jogo penal, que é o de investir alguém na condição de suspeito/culpado. Descartado Aldo como autor do crime, o Delegado Amarante viu a necessidade de voltar suas atenções para outra pessoa, mesmo sem nenhuma prova contundente. Bem entendido: o Delegado Amarante não é um agente público simplório ou de duvidosa inteligência, ele é um jogador de ataque e, como tal, sua função é encontrar a qualquer custo o suspeito/culpado do crime investigado.

Ser bem sucedido no jogo penal significa vitória sobre alguém ou imputação de culpa a alguém, mesmo que à custa de um erro de julgamento. Esse “erro”, como visto, converte-se em acerto no momento em que o sistema penal consegue selecionar um de seus “suspeitos usuais” para responder pelo crime em investigação, dando fôlego à manutenção do status quo criminal.

A conclusão final, ao que parece, é que a condenação de um tipo específico de cidadãos, de indivíduos previamente rotulados, não enfraquece a lógica por trás do aparelho penal, mas legitima o jogo jogado entre as partes. A confissão de Paulo Sérgio, em última análise, acaba resolvendo o crime cometido por Aldo e isso faz com que, no final das contas, a máquina penal tenha funcionado.


Notas e Referências:

[1] De acordo com Michel Foucault, “Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do ‘biográfico’ é importante na história da penalidade. Porque ele faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. [...] O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 27. ed.Petrópolis, Vozes, 2003, p. 211).

[2]ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 293.

[3] Importante ressalvar que, com a sua obra, Alexandre Morais da Rosa tem o nítido propósito de melhorar (ou democratizar) o processo penal utilizando-se da teoria dos jogos. Parece-me que a intenção do autor não seja propriamente defender que o processo penal deva ser necessariamente entendido como jogo, mas, já que assim o é, o autor advoga que os partícipes da relação se preparem para tanto, inclusive dando dicas.

[4] RÊGO, Eduardo de Carvalho. Culpa e punição dos irmãos parricidas: o romance de Dostoiévski sob a perspectiva da pesquisa em Direito e Literatura. In.: OLIVO, Luis Carlos Cancellier de (Org.). Dostoiévski e a Filosofia do Direito: o discurso jurídico dos irmãos Karamázov. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012, p. 81-112.

[5] Cf. STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Orgs). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.

[6] LANI, Adriano Ramon. A Literatura da Cultura de Massa. Disponível em:  <http://monografias.brasilescola.com/educacao/a-literatura-cultura-massa.htm>.

[7] GUIMARÃES, J.C. O romance policial é subliteratura? Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/o-romance-policial-e-subliteratura>.

[8] LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 73.

[9] Idem, ibidem.

[10] SANT’ANA, Raquel Vieira Parrine. Contradições do detetive: a literatura policial como problema para a teoria literária em obras de Machado de Assis, Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño. 2012. 141 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

[11] Em entrevista intitulada Para Além do Crime, constante na 3ª edição de O Outro Gume da Faca, Fernando Sabino esclarece que o referido texto “É uma novela, muito embora hoje em dia a designação nem sempre se refere a um gênero literário entre o conto e o romance, confundida pelo grande público com novelas de televisão. Junto com O bom ladrão e Martini seco, já lançadas pela Editora Ática, compõe uma trilogia do amor, intriga e mistério sob o título A faca de dois gumes” (SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 5).

[12] Idem, ibidem, p. 9.

[13] Idem, ibidem, p. 19.

[14] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 22.

[15] Idem, ibidem, p. 24-25.

[16] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 42.

[17] Idem, ibidem, p. 44.

[18] Idem, ibidem, p. 51.

[19] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 79-80.

[20] Idem, ibidem, p. 88.

[21] Idem, ibidem, p. 101.

[22] ALMEIDA, Alecsandra Neri de. Teoria dos Jogos: as origens e os fundamentos da Teoria dos Jogos. Disponível em: <http://www.gilmaths.mat.br/Artigos/Teoria%20dos%20Jogos.pdf>.

[23] Idem, ibidem.

[24]ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 1.

[25]ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos..., p. 1.

[26] Idem, ibidem, p. 7.

[27] Idem, ibidem, p. 15-16.

[28] Idem, ibidem, p. 11.

[29] Tradução livre de “Roundupthe usual suspects”.

[30] Segundo Foucault, “O poder não é senão um tipo particular de relações entre os indivíduos. E tais relações são específicas: por outras palavras, elas nada têm a ver com a troca, a produção e a comunicação, mesmo que lhes estejam associadas. O traço distintivo do poder é o de que determinados homens podem, mais ou menos, determinar inteiramente a conduta de outros homens – mas jamais de modo exaustivo e coercitivo. Um homem acorrentado e espancado é submetido à força que se exerce sobre ele. Não ao poder. Mas se for possível levá-lo a falar, quando seu último recurso teria podido ser o de segurar sua língua, preferindo a morte, é porque foi impelido a comportar-se de um determinado modo. Sua liberdade foi sujeitada ao poder. Ele foi submetido ao governo. Se um indivíduo pode permanecer livre, por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeitá-lo ao governo. Não há poder sem recusa ou revolta em potência” (FOUCAULT, Michel. Omnes etSingulatim: para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assman. Florianópolis: Edições Nephelibata, 2006, p. 67).

[31] Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir..., p. 232.

[32] BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 24.

[33] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 49-50.

[34]Idem, ibidem, p. 66-67.

[35] Idem, ibidem, p. 69.

[36]SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 71-72.

[37] Idem, ibidem, p. 75-76.

[38] Idem, ibidem, p. 86.

[39] Idem, ibidem, p. 86.

ALMEIDA, Alecsandra Neri de. Teoria dos Jogos: as origens e os fundamentos da Teoria dos Jogos. Disponível em: <http://www.gilmaths.mat.br/Artigos/Teoria%20dos%20Jogos.pdf>.

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FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assman. Florianópolis: Edições Nephelibata, 2006.

________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 27. ed.Petrópolis, Vozes, 2003.

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Eduardo de Carvalho Rêgo (1)Eduardo de Carvalho Rêgo é Doutorando em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor de Filosofia do Direito e Ética Profissional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Advogado e Chefe de Gabinete no Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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