O JOGO DO BICHO E O CONFLITO ENTRE O INCONSCIENTE COLETIVO E O TRATAMENTO FÁTICO-JURÍDICO

11/11/2024

Coluna semanal: A teoria se aplica na prática

Coordenador: Thiago Minagé

Lá em 1995, o sambista carioca Luiz Ayrão já satirizava a popularidade e adesão de muitos populares, durante muitas décadas, ao jogo de azar na canção “O Jogo do Bicho”:

“Depois do avião, a maior invenção foi o jogo do bicho

Que um barão inventou, mas um burro jogou todo o trabalho no lixo

Proibiram esse jogo, atirando no fogo da contravenção penal

E ironia do destino, hoje o país é um cassino, a jogatina é geral”

O documentário produzido pela emissora Rede Globo, “Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho” viralizou recentemente e reacendeu a discussão acerca deste jogo que circula com certa facilidade pelas vielas, bares, botequins, tendas, etc, há 100 anos, permeando quase todos os bairros da cidade do Rio de Janeiro e que movimenta, anualmente, mais de R$ 1 bilhão de reais, contudo, por não ser regulamentado, o Jogo do Bicho não é taxado pelo Estado.

A série documental revela uma estruturação impecável do jogo do bicho, movimento que é extremamente organizado e se estabelece em 11 áreas da capital fluminense, além de evidenciar os conflitos entre “banqueiros” (donos de bancas de jogo), pelas tomadas de pontos de aposta. Por se tratar de uma atividade surpreendentemente lucrativa, os conflitos foram escalando violentamente e dezenas de pessoas já morreram em decorrência do referido esquema.

Distante dos personagens desta história e indo ao que de fato interessa, assim como os demais jogos denominados “de azar”, a prática do Jogo do Bicho é proibida pela Lei das Contravenções Penais, no art. 58, e a regulamentação do referido jogo está em discussão no Congresso Nacional há mais de 30 anos.

De acordo com o texto legal, quem “explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração” pode ser punido com prisão simples de quatro meses a um ano, além de multa. E mais, em consonância com o que dispõe o referido decreto-lei, “aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio” pode receber multa.

Isto é, banqueiros, gerentes, “recolhes” (motoqueiros ou não, incumbidos derecolher os envelopes com os valores das apostas, mediante salário ou comissão) e apostadores participantes desta estrutura poderão sofrer as sanções previstas em lei no caso de denúncia e flagrante policial.

Não se deve perder de vista que o jogo do bicho (ainda) é prática ilegal e qualquer jogador está suscetível a ser penalizado.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já julgou ações sobre a competência dos estados para legislar sobre jogos de azar, incluindo o jogo do bicho. Em várias ocasiões, o STF reafirmou que cabe à União legislar sobre o tema, mantendo, assim, o jogo do bicho sob a tutela da Lei de Contravenções Penais.

A interpretação é que, até o momento, a regulamentação é de competência exclusiva do Legislador Federal e qualquer mudança deve ocorrer via Congresso Nacional.

Diante disso e com tanto anseio de parte da população pela discussão da temática, atualmente tramita no Senado Federal um projeto de lei que tem por finalidade a legalização destas e de outras apostas, como de jogos de cassino e corridas de cavalo. O projeto em discussão foi admitido em julho deste ano pela Comissão de Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, todavia não há previsão para a votação em plenário.

Os defensores da legalização julgam que os “jogos de azar” já movimentam consideravelmente o setor econômico com mais de 35 mil pessoas empregadas, devendo, assim, estar sujeitos à regulamentação. Aqueles parlamentares que tentam inviabilizar o PL, em oposição, defendem que a regulamentaçãopode incentivar o vício em jogos de azar e fomentar crimescomo a lavagem de dinheiro, por exemplo.

Fato é que o jogo do bicho levanta um debate importante sobre a efetividade das normas jurídicas penais, a influência do comportamento social no Direito (sob uma perspectiva macro) e, sobretudo, a necessidade (quase cultural) de punir deliberadamente, potencializado por aquele antiquado discurso punitivista e populista.

O professor Aury Lopes Junior, inclusive, é um crítico severo da forma como, no Brasil, o Direito Penal e, por tabela, o Processo Penal se ocupam de tarefas que são flagrantemente irrelevantes para eles, abarrotando ainda mais as serventias dos tribunais país afora.

Segundo a opinião do autor:

“(...) Em outras palavras, a pretensão de “punir tudo” pode conduzir a um “não punir nada”... ou quase nada. Enquanto o sistema perde tempo com condutas irrelevantes, despidas de relevância social ou até relevantes, os crimes graves ficam parados na prateleira do cartório. Essa é uma conta que o direito penal precisa acertar, para retornar o seu lugar de ultimo instrumento a ser chamado, posto que se ocupa da tutela dos bens jurídicos mais relevantes. Portanto, estamos respondendo erroneamente a pergunta: “O que punir”. ...”

É óbvio que apesar da proibição formal, o jogo continua a operar abertamente em várias partes do estado do Rio de Janeiro, alimentado pela aceitação social e, em alguns casos, pela tolerância de autoridades locais. Além disso, a atividade gera receita significativa, o que envolve questões complexas de economia informal e emprego para muitos trabalhadores.

Em relação à Lei de Contravenções Penais a crítica que se faz é a ineficácia das punições. Por outro lado, se houver regulamentação que viabilize, de alguma forma, formalizar ou tributar a prática, como ocorre em outros países, isso permitiria uma maior arrecadação de impostos e o controle das atividades paralelas e ilícitas associadas, entretanto, os críticos à legalização argumentam o possível aumento da exploração econômica de pessoas vulneráveis.

Outro fator muito suscitado por parte daqueles que defendem o exercício de modo regular do jogo do bicho, é que muito embora o Estado torne clandestina a referida atividade, o Poder Estatal regulamentou outros jogos da mesma natureza do jogo do bicho, onde o fator determinante para o êxito é simplesmente a sorte: Mega-Sena, Raspadinha e Loteria Esportiva, são alguns exemplos.

 

Conclusão

Por fim, o jogo do bicho exemplifica muito bem uma situação prática-jurídica: o descompasso entre a norma legal e a realidade prática, onde uma prática considerada contravenção persiste com relativa aceitação social. A Lei de Contravenções Penais de 1941, continua a proibir essa atividade, mas as sanções não têm sido eficazes para erradicá-la.

A regulamentação ou proibição definitiva é um tema, do ponto de vista político, espinhoso e implica debates, tão somente pelo Congresso Nacionalsobre moralidade, economia e a função reguladora do próprio Estado Democrático de Direito, razão pela qual este cenário sugere justamente a efetiva necessidade de reavaliar a legislação vigente para que reflita a realidade social e econômica do país, considerando, sobretudo, o impacto nas comunidades onde o jogo do bicho é uma prática rotineira e culturalmente estabelecida.

 

Projeto de Lei

https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/06/19/bingo-cassino-e-jogo-do-bicho-ccj-aprova-liberacao-de-jogos-de-azar-no-brasil

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154401

 

Documentário

https://globoplay.globo.com/vale-o-escrito-a-guerra-do-jogo-do-bicho/t/QJbzp1t9X5/

 

Música

https://www.letras.mus.br/luiz-ayrao/o-jogo-do-bicho/

 

Dados

https://extra.globo.com/casos-de-policia/disputa-pelo-negocio-bilionario-do-jogo-do-bicho-dos-caca-niqueis-no-rio-deixou-48-mortos-em-10-anos-20417129.html

 

Lei das Contravenções Penais

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm

 

STF

https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=26&sumula=1188#:~:text=Ademais%2C%20porque%20as%20loterias%20est%C3%A3o,%3A%20CF%2F1988%2C%20art.

 

Livro

Lopes Jr., Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica. 10ª Edição 2024 – São Paulo: SaraivaJur, 2024.

 

Imagem Ilustrativa do Post: colourback_11018 // Foto de: godata img // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/141899785@N06/28158535051

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura