O “JEITINHO BRASILEIRO” E O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO NO PROCESSO PENAL

05/07/2019

A expressão “jeitinho brasileiro” diz muito sobre os hábitos de grande parcela da nossa população. Não existe propriamente uma pesquisa acadêmica que revele o percentual de pessoas que costumam driblar as normas existentes para, de uma forma ou de outra, conseguir alcançar os seus objetivos. Mas, na vida real, é possível constatar a frequência de tal prática. Não nos referimos apenas àqueles que violam as normas penais e cometem crimes graves, como homicidas, estupradores ou traficantes de drogas. Nestes casos, não há propriamente um “jeitinho brasileiro”, mas sim graves violações às normas penais em vigor. Fazemos referência àquelas pessoas que, na vida cotidiana, não esperam o sinal de trânsito acender a luz verde, furam a fila do supermercado ou não devolvem o troco a maior que lhes é entregue no restaurante.

Há poucos dias, conversávamos com um grupo de alunos e explicávamos que é plenamente possível um acusado ser absolvido em um processo criminal, mesmo diante da existência de provas consistentes da prática de sua conduta. Diante da perplexidade dos estudantes, passamos a imaginar situações em que as provas obtidas para a comprovação da prática criminosa tenham sido produzidas com graves violações às normas legais. Se a base da tese condenatória são depoimentos colhidos de testemunhas torturadas, não se pode proferir a sentença de condenação. Se houve interceptação telefônica sem autorização judicial, não se pode condenar o acusado com base nas conversas ilicitamente obtidas. Se os documentos que embasam a pretensão condenatória foram obtidos ilicitamente, não se pode condenar o réu. Não foi muito difícil convencer os alunos da clareza do art. 5°, LVI, da Constituição Federal, Isso porque, tendo o texto constitucional afirmado que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, os exemplos que fornecemos aos alunos, de forma evidente, impediam a prolação da sentença de condenação.

A questão veio à baila em razão da discussão envolvendo o ex-presidente Lula e os diálogos supostamente ocorridos, via mensagens, entre o ex-juiz e agora Ministro Sérgio Moro e a equipe do Ministério Público que atua no processo conhecido como Lava-Jato. Não pretendemos abordar o caso concreto propriamente, até porque não conhecemos a fundo as informações existentes quanto ao mesmo. Porém, é preciso registrar que, de fato, são as circunstâncias específicas de cada caso concreto que podem revelar, ou não, a existência de provas obtidas por meio ilícitos. Uma vez revelada tal ilicitude, não há muito como negar a inadmissibilidade das provas.

Diante da nossa explicação, os alunos passaram a indagar a possibilidade de alguém ser absolvido, diante da existência de provas cabais da prática do crime, sem que haja qualquer ilicitude na obtenção das mesmas. Em outras palavras, os estudantes queriam saber se a existência de provas verdadeiramente lícitas da prática criminosa, necessariamente, impõe a condenação do acusado.

Para a frustração de muitos dos estudantes com os quais papeávamos, tivemos que esclarecer que o processo criminal deve observar as regras estabelecidas pelo legislador, não se podendo, a qualquer custo, condenar o réu, mesmo que existam provas lícitas da prática criminosa. Além da existência das mencionadas provas lícitas, é imprescindível que o processo criminal se desenvolva com base nas regras que preveem o seu desenvolvimento.

Demos o exemplo do princípio da correlação e explicamos como o seu desrespeito pode ensejar absolutas injustiças, permitindo que criminosos sejam absolvidos por falta de técnica processual. De acordo com o mencionado princípio da correlação, o réu deve ser julgado à luz da imputação que lhe é feita pela acusação, seja na denúncia oferecida pelo Ministério Público, seja na queixa-crime oferecida pelo querelante.

O princípio da correlação corresponde a uma decorrência óbvia do princípio da ampla defesa, prevista no art. 5°, LV, da Constituição Federal. Se o texto constitucional assegura, aos acusados em geral, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, é evidente que os acusados não podem ser surpreendidos no momento da sentença. Aliás, a surpresa é um péssimo convidado do processo criminal. As manifestações apresentadas por uma das partes devem ser examinadas com cautela pela outra parte. As provas produzidas em juízo devem permitir a participação e a reflexão de ambas as partes. O atropelo processual é sempre prejudicial.

Portanto, se o princípio da correlação é decorrência direta do princípio da ampla defesa, consagrado pelo texto constitucional, não se pode deixar de observá-lo sob hipótese alguma. Há uma lógica evidente nisso. Se o réu, ao início do processo, tem conhecimento do teor da acusação que lhe é dirigida, a defesa passará todo o processo preocupada em defendê-lo à luz da imputação inicial.

As provas documentais serão trazidas aos autos considerando o teor da acusação inicial. As testemunhas irão depor em juízo considerando os termos da denúncia ou da queixa-crime. O réu será interrogado e buscará defender-se da acusação que foi inicialmente formulada contra ele. Diante disso, teríamos como o maior dos absurdos a situação em que o juiz improvisa no momento da sentença e condena o réu por fatos distintos daqueles narrados na peça de acusação.

É claro que dificilmente um juiz condenaria alguém pela prática do crime de estupro, tendo a denúncia afirmado que o réu praticou o crime de furto. Situações extremas como essa, verdadeiramente, não ocorrem na vida forense cotidiana. Mas a preocupação com o princípio da correlação deve ser maior. O promotor de justiça ou o querelante devem ser precisos. A conduta imputada ao réu deve ser específica e narrada com detalhes, de modo a viabilizar o exercício da ampla defesa.

A questão preocupa ainda mais quando o tipo penal admite que o réu pratique o crime através de várias maneiras. Por exemplo, no crime de receptação, o art. 180, caput, do CP, prevê as condutas de adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar. Nesse caso, a acusação deve ser precisa.

Se a acusação imputar ao réu a conduta de adquirir e as provas produzidas nos autos revelarem que o réu praticou a conduta de ocultar a coisa que sabe ser produto de crime, o princípio da correlação impede o juiz de proferir a sentença de condenação. O juiz não poderá improvisar para condenar o réu, diante das provas existentes em seu desfavor.

Portanto, cabe ao promotor de justiça, no momento da elaboração das suas alegações finais, fazer tal análise criteriosa entre a conduta imputada ao réu na denúncia e a conduta verdadeiramente comprovada. Havendo desconexão entre ambas, para a preservação do princípio da correlação, a denúncia deverá ser aditada para, a partir de então, a defesa ser ampla, como exige o texto constitucional.

Em verdade, o que pretendemos esclarecer aos estudantes foi a necessidade de observância das normas que tratam do processo criminal. A sua inobservância não é boa para ninguém, nem para a acusação, nem para a defesa. Não desejamos a absolvição de alguma pessoa contra a qual existem provas da prática criminosa. Cada um deve responder pelos seus atos, inclusive experimentando uma sentença penal condenatória. Mas a acusação deve ser precisa para viabilizar a ampla defesa. Por mais consistentes que sejam as provas contrárias ao réu, por melhor que seja a intenção do promotor de justiça e por maior que seja a preocupação do juiz em fazer justiça, o processo penal não admite improviso ou condenação mais ou menos. Ao contrário do que vemos na vida cotidiana, o “jeitinho brasileiro” não pode conviver com o princípio da correlação.

 

Imagem Ilustrativa do Post: edifício niemeyer // Foto de:Gabriel de Andrade // Sem alterações

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