O interesse público na berlinda das subjetividades: festa ou ambulância? – Por Leonel Pires Ohlweiler

22/06/2017

No ano de 2015, por ocasião da Semana Acadêmica da Universidade do Contestado, Santa Catarina, proferi a palestra intitulada “A Crise Hermenêutica do Direito Administrativo no Constitucionalismo Contemporâneo”, na qual, para debater o uso simbólico e, por vezes, indevido do signo linguístico interesse público, trouxe dados do Tribunal de Contas da Paraíba que, ao investigar os gastos de Municípios daquele Estado, ficou estarrecido com a utilização de dinheiro público em festas juninas. Aliás, na ocasião, o Ministério do Turismo teria destinado cerca de 22 milhões para municípios utilizarem em tais festejos, ou seja, queimando dinheiro público! Igualmente 6,7 milhões naquela época em emendas parlamentares foram aprovadas com igual finalidade.

De lá para cá, quais mudanças no horizonte de sentido da Administração pública? Como compreender a afirmação de Ruy Cirne Lima[1] segundo o qual o Direito Administrativo, como direito especial, é aquele fundamentado sobre o influxo da utilidade pública, finalidade própria do Estado de concretizar a satisfação das necessidades da sociedade?

Conforme notícia no site do TCE-PB, o Presidente do Tribunal, Conselheiro André Carlo Torres Pontes, reiterou em sessão ordinária do Tribunal Pleno, os termos da recomendação expressa que a Corte de Contas fez, por meio da Circular 007/2017, alertando os prefeitos dos 223 municípios paraibanos sobre os cuidados que devem observar ao promoverem festividades financiadas com recursos públicos, sendo que o alerta foi encaminhado a todos os Municípios.

É claro, o problema acima referido é tão-somente exemplificativo, pois se aplica a questão para todos os municípios brasileiros sobre a questão que pode ser traduzida assim: diga-me o que entende por interesse público, que lhe direi que Administração você é? Por certo a ironia demonstra a preocupação com nossos construtores do interesse público, ainda mais em tempos difíceis pelos quais nossas instituições passam.

Nos dizeres de Hospers, citado por Gordillo, “as palavras não são mais que rótulos das coisas”[2]. É por isso que dependendo da “mercadoria” a ser entregue pelos administradores, ao seu bel prazer, as coisas são envoltas com o rótulo interesse público.

Gastar dinheiro público em festas juninas? Como afirmei, muito embora a dimensão cultural da festa, ao que tudo indica é literalmente jogar dinheiro público na fogueira, em especial em tempos de crise econômica.

Aliás, é complexa essa relação de justificar a realização do interesse público pelo aspecto cultural. Não se pode olvidar: a linguagem possui importante dimensão de poder e as práticas jurídico-discursivas laboram com técnicas linguísticas de normalização e padronização, pois o mais importante é um “discurso de seguridades máximas, construído para garantir a fiscalização interior dos indivíduos, isto é, do panóptico dentro do homem”[3].

Vejam a normalização do debate: de repente passa a ser algo cotidiano gastar o suado dinheiro dos contribuintes em grandes festejos, exigindo a intervenção de Tribunais de Contas para dizer aquilo que os gestores já deveriam saber. Reconheço as grandes dificuldades, inclusive até hoje não solvidas, sobre a construção do sentido de interesse público, minimamente para servir como indicação de controle de atos, ações e programas da Administração Pública, basta a breve passagem pela doutrina e jurisprudência. Trata-se de vetusta questão sobre a qual foram produzidos inúmeros artigos e obras específicas, figurando ainda em manuais de Direito Administrativo.

No entendimento de Eberhard Schmidt-Assmann, os interesses públicos e privados diferenciam-se por sua orientação, ou seja, interesses públicos são aqueles que se encaminham diretamente a procurar o interesse geral[4]. A compreensão de Héctor Jorge Escola, em monografia específica sobre o tema, ainda desperta discussões quando alude que “el interés público – de tal modo – es el resultado de un conjunto de intereses individuales compartidos y coincidentes de un grupo mayoritario de individuos, que se asigna a toda la comunidad como consecuencia de esa mayoría, y que encuentra su origen en le querer axiologico de esos individuos, apareciendo con un contenido concreto e determinable, actual, eventual o potencial, personal y directo respecto de ellos, que pueden reconocer en él su proprio querer y su propia valoración, prevaleciendo sobre los intereses individuales que se le opognan o lo afecten, a los que desplaza o sustituye, sin aniquilarlos"[5].

Muito embora tais entendimentos, na passagem do abstrato para o concreto das ações administrativas é que diversos problemas ocorrem.

No campo dos festejos de junho, a notícia do Correio Brasiliense é um tanto quanto perturbadora. Conforme notícia postada no dia 31.05.2017 o Prefeito do Município de São Bento, na Paraíba, decidiu fazer uma enquete para saber se os moradores preferem festa ou ambulância! Sim, pasmem, o Poder Público local disse que possuía a quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para gastar e o cidadão, com três opções no site do Município, responderia o questionamento: “O Prefeito quer saber: com relação ao Arraiá Balançando a Rede, o que você prefere?” As opções foram assim elaboradas: a) prefiro a festa; b) prefiro transportes para a saúde e c) não sabe.

Não se trata de pessimismo estrutural ou implicância sistêmica, mas o fato é que decisões sobre o interesse público e os gastos com o dinheiro arrecadado de tributos é mais sério que isso. E para espanto geral da nação, a coisa não foi muito tranquila para o interesse público, pois até às 12h30min do dia 31.05.2017 a realização da festa vencia a enquete com 417 votos enquanto a compra da ambulância tinha 412 votos.  É claro que tal consulta não reflete o sentimento de interesse público das dezenas de moradores de São Bento preocupados com o dia a dia de trabalho duro e árduo.

Trata-se de mais um indicativo de como o interesse público pode transformar-se em grande estrutura de sentido para albergar interesses deturpados da burocracia, divorciados do mundo da vida dos cidadãos. Por vezes, este tão castigado signo linguístico, que acompanhou a trajetória histórica do Direito Administrativo, é erigido para a construção de uma espécie de opinião pública, como se a sua compreensão dependesse de modo definitivo de regras de maioria! Não defendo a ausência de relevância na construção dialogada do interesse público, pois construções participativas são capazes de impor alguma espécie de controle sobre as decisões administrativas, mas creio que existem algumas possibilidades fora desse campo de consulta.

Parece piada de mau gosto fazer enquete sobre queimar dinheiro público ou comprar ambulância para o transporte de doentes. A que ponto chegamos! A saúde pública tem que concorrer com rapadura, pinhão e fogueiras de São João.

A justificativa da grande consulta popular: “Tem havido muita discussão, então achei essa uma forma interessante de delegar à população a decisão final sobre o assunto”, conforme veiculado no site www.g1.com.br. Mas tem mais, conforme noticiado, o Prefeito disse “só vale gastar o valor na festa se for com a concordância da população, já que a Prefeitura só conta com recursos próprios para isso, pois é uma forma democrática de decidir e poderemos utilizá-la mais vezes no futuro.”

O pobre e coitado interesse público, surrupiado das autênticas instâncias de sentido do texto constitucional para o populismo de São João! Essa realmente não é a finalidade do Estado, e bastaria um olhar furtivo para o artigo 3º, inciso III, CF, a fim de compreende que os verdadeiros fins de um Estado são, por exemplo, construir uma sociedade justa, livre e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, promover o bem de todos, e não somente daqueles que gostam de comer pipoca e pular fogueira. Ainda, o artigo 5º do texto da Constituição possui um rol extenso de direitos e garantias fundamentais que devem ser assegurados, assim como os direitos sociais do artigo 6º, educação, saúde, alimentação, trabalho, previdência social, etc. Certo, o lazer também está lá, mas considerando as dificuldades e limitações orçamentárias, além de um Estado Social minimamente implementado para todos os cidadãos, como priorizar frente à saúde?

Isso para dizer o mínimo, pois não pretendo cansar os leitores com as legítimas perguntas sobre os reais possíveis sentidos de interesse público. Com certeza a democracia é muito mais.

Mas nem tudo está perdido.

No final a ambulância venceu a enquete e de lavada! Enquanto a festa conseguiu 1.598 votos, a festa angariou 11.779 e não sabe 679 votos.

Trouxe a questão não para fazer galhofas com algo tão sério, mas exatamente para problematizar o modo como gestores públicos, com a convicção de realizar a democracia, lidam com questões fundamentais da República. Mas há também a gama de gestores, inseridos no paradigma liberal-individualista, que ainda possuem alguma dificuldade para significar os princípios democráticos.

Festa ou ambulância? Sinceramente, se o alcaide deseja democratizar sua gestão pública basta cumprir a Constituição Federal. Ao aplicar o termo interesse público não é o detentor do monopólio de como fazer, bem como não está autorizado a delegar dúvidas para a comunidade. Há muito, doutrinadores, advogados, juízes, promotores de justiça, defensores públicos, procuradores dos municípios e Estados discutem o melhor modo de realizar o conjunto de regras e princípios constitucionais. Não precisa inventar a roda para fazer uma administração de qualidade, basta realizar o programa constitucional duramente discutido no processo constituinte.

Mas tenho certeza de uma coisa. Não passou pelo horizonte de sentido dos debates de 1988, após sairmos do regime ditatorial que algum dia alguém em sã consciência ficaria na dúvida: festa ou ambulância?


Notas e Referências:

[1] Princípios de Direito Administrativo. 7ªed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 24.

[2] GORDILLO, Augustin. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo 1, 2ª ed., Buenos Aires: Macchi, 1994, I-2.

[3] Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, Volume I, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 25.

[4] La Teoria General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 165.

[5] El Interés Público Como Fundamento del Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 249.

CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 7ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.

ESCOLA, Héctor Jorge. El Interés Público Como Fundamento del Derecho Administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989.

GORDILLO, Augustin. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo 1, 2ª ed., Buenos Aires: Macchi, 1994.

SCHMIDT-ASSMANN. La Teoria General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, Volume I, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994.


 

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