A segurança jurídica é um ideal que se espraia aos diversos ramos do ordenamento, encontrando uma de suas maiores expressões, em nosso direito positivo, no art. 5, XXXVI, da CR/88, que tutela "o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."
Segundo Canotilho, a segurança jurídica exige "fiablidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos de poder", sendo um ideal exigível "perante qualquer acto de qualquer poder: legislativo, executivo e judicial"[1].
Com a regra do art. 926, do CPC, esse ideal é reforçado naquilo que diz respeito às decisões judiciais, na medida em que se estabelece o dever de os Tribunais uniformizarem sua jurisprudência, mantendo-a "estável, íntegra e coerente."
Dentre os mecanismos que permitem a concretização dos deveres de uniformização, integridade e coerência, encontra-se o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), que pode ser utilizado quando se fizerem presentes, simultaneamente, os requisitos da "efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito" e "risco de ofensa à isonomia e segurança jurídica" (art. 976, I e II, do CPC).
Na esteira daquilo que vem decidindo o STJ, “o novo Código de Processo Civil instituiu microssistema para o julgamento de demandas repetitivas – nele incluído o IRDR (...) –, a fim de assegurar o tratamento isonômico das questões comuns e, assim, conferir maior estabilidade à jurisprudência e efetividade e celeridade à prestação jurisdicional.” (STJ - AgInt na Pet 11.838, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. p/ Ac. Min. João Otávio de Noronha, DJe 10.9.2019)
Tratando-se de instituto positivado no CPC, e inexistindo correspondente específico na legislação processual penal, é de se indagar se o IRDR também possui aplicabilidade à esfera penal.
A nosso ver, a resposta é positiva, por algumas razões.
Em primeiro lugar pois, como se disse, a segurança jurídica é um ideal a ser perseguido em todo e qualquer ramo do ordenamento. Logo, não faz qualquer sentido, seja do ponto de vista lógico ou mesmo jurídico, que se busque estabilidade, coerência e integridade no processo civil, e que estas mesmas garantias não sejam um norte no processo penal.
Aliás, sabendo-se que no processo penal são tuteladas as liberdades públicas do cidadão submetido à persecução penal estatal – tutela-se no processo penal o SER, como adverte Carnelutti[2] –, é exatamente nesse espaço que a segurança jurídica se faz mais necessária, de modo a se evitar decisões arbitrárias.
Em segundo lugar, tratando-se de instituto que busca uniformizar a jurisprudência, o IRDR contribui para a eficácia da isonomia em matéria de decisões penais, maximizando também a celeridade e a duração razoável do processo. O argumento é endossado na doutrina de Renato Brasileiro de Lima:
"(...) ante o silêncio do CPP em relação ao assunto, é perfeitamente possível a aplicação subsidiária ao processo penal do incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976 a 987 do novo CPC), que, doravante, poderá ser instaurado em qualquer Tribunal, inclusive nos Tribunais de Justiça dos Estados e nos Tribunais Regionais Federais. (...) a aplicação desse incidente ao processo penal vem ao encontro do princípio da celeridade e da garantia da razoável duração do processo, contribuindo para diminuir a carga de recursos pendentes de julgamento pelos Tribunais."[3]
Em terceiro lugar, do ponto de vista estritamente legal, o transplante do IRDR, do processo civil ao processo penal, é plenamente possível por força da regra do art. 3º, do CPP, segundo o qual "a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como suplemento pelos princípios gerais de direito". Essa tem sido a tendência de diversos setores da jurisprudência:
"DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL CIVIL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. CONTROVÉRSIA DE NATUREZA CRIMINAL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CPC/2015 AO PROCESSO PENAL. POSSIBILIDADE. (...). 1. É possível a instauração de IRDR para resolver questão repetitiva de direito penal. Aplicação subsidiária dos arts. 976 e ss. do Código de Processo Civil de 2015, a teor do disposto no art. 3º do Código de Processo Penal. (...)" (TJ/AC - IRDR 1000892-29.2016.8.01.0000, Rel. Des. Laudivon Nogueira, Julg. 28.9.2016)
A possibilidade de se instaurar IRDR na esfera criminal, aplicando-se por analogia os dispositivos do CPC, na forma do art. 3º, do CPP, é chancelada na jurisprudência do TJ/PR (RA 1.592.743-6, Rel. Juíza Subst. Simone Cherem Fabrício de Melo, J. 9.3.2017), do TJ/SC (IRDR 4009173-78.2016.8.24.0000, Rel. Des. Ariovaldo Rogério Ribeiro da Silva, D.E. 4.7.2019), do TJ/MS (IRDR 1600952-10.2017.8.12.0000, Rel. Des. Ruy Celso Barbosa Florence, Julg. 28.11.2018), do TJ/MT (IRDR 101.532/2015, Rel. Des. Pedro Sakamoto, Julg. 2.3.2017), do TRF3 (IncResDemR 0000236-97.2018.4.03.0000, Rel. Des. Fed. Fausto de Sanctis, Rel. p/ Ac. Des. Fed. Paulo Fontes, e-DJF3 28.2.2019), do TJ/SP (IRDR 2103746-20.2018.8.26.0000, Rel. Des. Fernando Torres Garcia, Julg. 24.5.2018), dentre outros.
Por outro lado, existem alguns julgados que seguem linha diametralmente oposta, sustentando o descabimento do IRDR no âmbito do processo penal. Há, em essência, três fundamentos que dão guarida a esta tese.
Em primeiro lugar, afirma-se que na esfera penal, a individualidade de cada hipótese concreta impede que se possam formular teses gerais e abstratas, aptas a resolverem um multiplicidade de casos penais. É o que se depreende do julgado abaixo transcrito, do TJ/RJ:
"INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO EM RAZÃO DA INCOMPATIBILIDADE DO INSTITUTO COM O PROCESSO CRIMINAL. 1 - O IRDR tem por finalidade uniformizar as decisões judiciais a fim de prevenir julgamentos conflitantes acerca do mesmo tema jurídico. 2 - O processo penal se caracteriza pela análise do caso concreto, das suas peculiaridades, do exame exaustivo dos fatos do delito, das características do réu e da vítima. Por isso, não se pode obrigar o julgador na esfera criminal a adotar tese genérica, ainda que de direito, quando o que se julga é o indivíduo e o seu comportamento. Não há dois indivíduos idênticos ou dois comportamentos exatamente iguais. (...)" (TJ/RJ - IRDR 0010473-50.2017.8.19.0000, Rel. Des. Gabriel de Oliveira Zefiro, Julg. 2.10.2017)
Em segundo lugar, afirma-se que a aplicação, por analogia, do IRDR na esfera penal, representaria a criação de um recurso penal novo, em violação ao devido processo legal. É o que se extrai do julgado abaixo, do TJ/RS:
"Não é cabível, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, a instauração do incidente de resolução de demandas repetidas (IRDR). Primeiro, e comezinho dizer, trata-se de instituto previsto no Código de Processo Civil (art. 976 e segs), que serve à uniformização de decisões no âmbito civil, não podendo ser importado a matéria penal, sob pena de, a vingar tal pretensão, que o sistema processual penal passe a contar com recursos como (v.g. Agravo de Instrumento) não previstos expressamente no CPP. Assim seria, por exemplo, em questões irrecorríveis no âmbito do rito penal sumaríssimo, serem recorríveis desde que se adequassem às hipóteses de cabimento do recurso cível antes mencionado. Não é assim, e a dicção do artigo 3º do CPP, quando informa a subsidiariedade de aplicação do CPC, serve aos casos de complementação da norma, nunca de supressão de norma existente ou mesmo de criação de instrumento jurídico expressamente não previsto na lei processual penal, que é em ultima análise o que quer o proponente. É caso de não conhecer, portanto, do pedido, pois que ele viola o sistema do devido processo legal, pretendendo criar ou inserir no processo criminal regra processual civil para ampliar o número de recursos postos à disposição das partes no processo penal." (TJ/RS - RC 71007829120, Rel. Luis Gustavo Zanella Piccinin, Julg. 20.8.2018)
Em terceiro lugar, há julgados afirmando a incompatibilidade do IRDR na esfera processual penal, tendo-se em vista que a admissão do incidente implica, na forma da regra do art. 982, I, do CPC, em suspensão de todos os processos subjetivos que versem o mesmo objeto da controvérsia a ser decidida no incidente, não havendo, porém, a correspondente possibilidade de transplante, por analogia in malam partem, da previsão que versa a suspensão dos prazos prescricionais, o que poderia gerar a prescrição dos crimes nos processos suspensos. Nesse sentido, recentíssimo julgado do TRF-3:
"EMENTA: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ÂMBITO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. (...) 1. A suspensão de feitos pendentes é incompatível com os processos criminais, pois a lei penal não a prevê como causa interruptiva da fluência do prazo prescricional. (...)" (TRF-3 - IRDR 5030366-48.2019.4.03.0000, Des. Fed. Mauricio Kato, Int. 4.3.2020)
Contudo, é de se ponderar que absolutamente todos os três argumentos centrais que sustentam o descabimento do IRDR na esfera penal são contornáveis, mediante sólidos argumentos jurídicos, razão pela qual não subsistem razões para se afastar o IRDR da esfera penal.
O argumento de que o direito e o processo penal não comportam soluções judiciais uniformizadas, dado que os casos penais são sempre singulares, contém um grave equívoco.
É que embora as provas e os fatos possam variar na casuística, o que se pretende através do IRDR é a uniformização de questão de direito (art. 976, I, do CPC). E, como parece sintomático, existem questões exclusivas de direito em todo e qualquer ramo do ordenamento jurídico, inclusive no direito penal, processual penal e de execução penal.
A propósito, existem diversos mecanismos aptos, na esfera criminal, a uniformizar essas questões – como súmulas vinculantes, afetação de casos ao regime de repercussão geral etc – sendo que, nesse contexto, o IRDR seria apenas mais um instrumento para buscar esse ideal de uniformização, garantindo estabilidade e coerência das decisões penais.
No que se refere à suposta criação de novo recurso, através de analogia, com o transplante do IRDR do processo civil ao processo penal, tem-se outro equívoco.
É que, ainda que vigore no processo penal o princípio da taxatividade recursal – pelo qual os recursos no processo penal são somente aqueles previstos expressamente em lei –, o IRDR não ostenta, propriamente, natureza jurídica de recurso, tratando-se de um incidente em fase recursal, que pode inclusive ser suscitado de ofício (art. 977, I, do CPC).
E mesmo que se cuidasse de recurso propriamente dito, nada impediria que o IRDR fosse utilizado no processo penal, por força do art. 3º, do CPP: "embora o rol de recursos e as hipóteses de recorribilidade sejam taxativamente previstos em lei, é possível o emprego de interpretação extensiva (CPP, art. 3), quanto às hipóteses de cabimento"[4]. Nada obstaria, portanto, a interpretação extensiva para se admitir o incidente de resolução de demandas repetitivas na esfera penal, quando presentes os requisitos legais para a sua admissibilidade.
Por fim, a questão da suposta impossibilidade de suspensão de todos os processos criminais, por ausência de previsão legal de suspensão dos prazos prescricionais, pode ser resolvida de forma simples, porque o instituto não exige a suspensão de todos os processos criminais, admitindo a hipótese contrária de exame caso a caso do incidente.
Esse entendimento decorre da interpretação conferida pelo STF à regra do art. 1.035, § 5º, do CPC, que deve também ser aplicada à regra do art. 982, I, do CPC. A análise deve começar pela comparação de ambas as regras:
Art. 1.035, § 5º, do CPC |
Art. 982, I, do CPC |
Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional. |
Admitido o incidente [IRDR], o relator suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso. |
Como se vê, a redação de ambos os dispositivos, na parte de interesse do argumento, é praticamente idêntica. E, com relação à regra do art. 1.035, § 5º, do CPC, o STF possui julgados afirmando que a suspensão de todos os processos não é medida imperativa:
“(...) o reconhecimento da repercussão geral não implica, necessariamente, em paralisação instantânea e inevitável de todas as ações a versarem sobre a mesma temática do processo piloto.
De fato, a situação prevista no art. 1.030, inciso III, do CPC, é distinta daquela delineada no art. 1.035, § 5º, do mesmo Codex, posto que, nessa segunda hipótese, inexiste sobrestamento imediato decorrente automaticamente da lei.
A redação do dispositivo – “o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento” – sem sombra de dúvida faz transparecer uma forte recomendação; mas, ainda assim, uma recomendação, não uma obrigação.” (STF - RE 1.055.941, Rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática de 15.7.2019)
Assim, aplicando-se a mesma lógica interpretativa da regra do art. 1.035, § 5º, do CPC, em relação ao disposto no art. 982, I, do CPC, a suspensão de todos os processos criminais que versem a matéria do IRDR não representa um imperativo hermenêutico, mas uma mera recomendação, que será efetivada ou não conforme a análise casuística dos casos penais individuais. Assim, por exemplo, seria absolutamente possível, se adotada a solução proposta, não se determinar a suspensão dos processos penais em hipóteses de risco evidente de prescrição.
Por fim, não se pode ignorar a hipótese de que, admitido o IDRD, o incidente deve ser julgado no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da sua admissão e, no caso de superação desse prazo sem análise do mérito, cessa a suspensão dos processos, salvo situações excepcionalíssimas (art. 980, caput e parágrafo único, do CPC). Tem-se, aqui, mais um argumento apto a afastar a ideia de que a suspensão dos processos – caso fosse um imperativo – poderia gerar situações de impunidade pela prescrição.
Em resumo, o IRDR é um mecanismo apto a otimizar os julgamentos criminais, maximizando ideais de segurança jurídica mediante a uniformização de jurisprudência, quanto a questões exclusivas de direito. A não aplicação do instituto na esfera penal representa um retrocesso, além de ser insustentável do ponto de vista dogmático.
Notas e Referências
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 257.
[2] CARNELUTTI, Francesco. Cenerentola. Rivista di diritto processuale. v. 1, n. 1 (1946), p. 73-78.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 3. Ed. Salvador: Juspodivm, 2015. P. 106-107.
[4] BADARÓ, Gustavo. Manual dos Recursos Penais. 2ª Ed, rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 60.
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