O país ficou estarrecido com as imagens de uma mulher tentando fazer com que um homem, já morto, assinasse documentos a fim de formalizar um empréstimo bancário no nome dele.
A cena bizarra, inacreditável e constrangedora ocorrida no Rio de Janeiro, ganhou a internet nesta quarta-feira e foi objeto de discussões jurídicas acerca da tipificação (classificação de um fato) do suposto crime praticado por aquela senhora, parente do cadáver.
Presa, ela foi acusada de ter incorrido na prática do crime de vilipêndio de cadáver – quando há desrespeito, ridicularização ou ofensa à honra do morto –, (art 212, CP) e, também, pela tentativa de furto qualificado mediante fraude (art 155, §4, II) contra o banco.
Art. 212 - Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
Contudo, há o entendimento de que ao invés daquela modalidade do citado furto – além do vilipêndio de cadáver –, a acusada teria desejado cometer o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, cuja redação menciona em o autor:
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa
Notadamente, cumpre pontuar a interessante e sutil diferenciação entre o furto mediante fraude e o estelionato.
No furto mediante fraude, a vítima (o banco) não faz ideia de que está sendo lesada e, assim, tem algum bem (ou valor) sendo subtraído de si. Já no estelionato, a vítima (o banco) é ludibriada para que, espontaneamente, entregue o seu patrimônio ao autor.
No ponto, a fim de solidificar tal diferenciação, o jurista Cezar Roberto Bitencourt entende que:
“No furto, a fraude visa desviar a oposição atenta do dono da coisa, ao passo que no estelionato o objetivo é obter seu consentimento, viciado pelo erro.”
Bitencourt também ensina que:
“Há unilateralidade do furto majorado pela fraude, pela dissensão da vítima no apoderamento, e há bilateralidade do estelionato, pela aquiescência – embora viciada e tisnada – do lesado.”
Coadunando com tal entendimento, o promotor de justiça, Rogério Sanches Cunha, entende que:
“No furto mediante fraude, a fraude é aplicada no intuito de diminuir a vigilância da vítima sobre a coisa e possibilitar a subtração. A vítima não percebe que está sendo despojada de seu patrimônio. No estelionato, por outro lado, a fraude objetiva fazer com que a vítima, em erro, entregue o seu bem espontaneamente ao agente”.
Significa, portanto, pontuar que a tentativa de estelionato contra o agente bancário melhor se amoldaria à conduta supostamente perpetrada pela mulher.
Diz-se supostamente porque, em depoimento, a acusada afirmou que o idoso estava vivo quando ela o levou à agência bancária. Neste caso, se tal versão for ratificada pela perícia – e a senhora não houvesse percebido o falecimento do homem no momento da tentativa de assinatura documental –, se estaria diante de um fato atípico (aquele não punível por não constituir crime).
O fato é que, segundo noticiado pela imprensa, o corpo do idoso apresentava os chamados livores cadavéricos, que são “manchas” ocasionadas pela evolução temporal da morte.
Assim, somente a perícia poderá atestar o horário aproximado da morte e, de tal modo, aferir a veracidade da versão apresentada à autoridade policial. Até a conclusão deste artigo, não havia essa informação pericial.
Por fim, a dúvida: afinal, a internet execrou uma inocente que não percebeu o momento de falecimento do seu ente querido ou, de fato, aquela mulher queria enganar o banco com um financiamento “a perder de vista”?
Notas e referências
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.
BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 4. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 239.
CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal: parte especial. v. 3. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 137.
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