Coluna Empório Descolonial
O mundo assistiu atônito as imagens do brutal assassinato do refugiado congolês Moïse Kabagambe em um dos bairros mais famosos do Rio, a “cidade maravilha”. Este linchamento mostra ao mundo uma cara hedionda de um Brasil perverso, que nós, negras, negros e indígenas, conhecemos com intimidade há cinco séculos. Desgraçadamente, Moïse não morreu de forma excepcional, ele é mais um entre milhões de africanos e africanas que jazem neste cemitério de corpos negros chamado Brasil. Este episódio de múltiplas dimensões, descortina a outra face desta nação que instrumentalizou a sua política externa para performatizar uma auto-imagem positiva, com vistas a cumprir uma dupla funcionalidade: em primeiro lugar, a de negar e manter a estrutura racial hierárquica internamente - com todos os privilégios que isto representa para a branquitude que sempre esteve no poder; e, também, para conseguir posições de privilégio ao lado de nações ditas civilizadas no cenário internacional.
Para entender a relação do assassinato de Moïse Kabagambe com as duas caras que o Brasil ostenta, preliminarmente é necessário historicizar o assassinato do jovem congolês, pois ele se revela como um dos efeitos da colonização portuguesa que instituiu um sistema de hierarquização fundado nas interconexões entre raça, gênero e sexualidades, e que segue ativo na contemporaneidade. Ou seja, o Brasil é alicerçado na violência contra pessoas africanas. Estas nunca tiveram direitos de imigrantes neste país. Elas foram coisificadas, mercantilizadas, traficadas, escravizadas, e exploradas em solo nacional. Esta é a verdadeira a certidão de nascimento de um país chamado Brasil.
Aliás, o Brasil foi um dos protagonistas da maior tragédia da mobilidade humana forçada, o tráfico atlântico, um negócio extremamente lucrativo que contou com a gestão, participação e conveniência da velha Europa ávida para lucrar e internacionalizar o seu capitalismo racial. E logo após a abolição formal da escravidão, no alvorecer da República, o Marechal Deodoro impôs a interdição de pessoas não-brancas, com a edição do Decreto 528 que proibia o ingresso de nacionais de países africanos e asiáticos, ou seja, não-brancos. Depois de revogada esta determinação expressa, até a primeira década deste século o país acionou seus dispositivos legais e administrativos para dissuadir, inviabilizar, ou dificultar este movimento populacional, impondo duras regras para a regularização migratória e, por fim, agindo de forma ostensiva para controlar os corpos de africanos e afro-diaspóricos que ousaram a atravessar a fronteira.
Os governos de esquerda, na sua estratégia de condução de uma geopolítica do dito Sul Global, mostraram certa sensibilidade para o adensamento das relações com o continente africano, e para a construção de um novo marco regulatório que se adequasse às normas internacionais estipuladoras dos direitos das pessoas em situação de imigração. Embora seja necessário admitir que houve alguns avanços formais na matéria, a chegada da extrema-direita ao poder, capitaneada por um mandatário que declarou que haitianos, senegaleses, bolivianos e iranianos “são a escória do mundo” - ao mesmo tempo que nega o racismo e o genocídio negro e indígena - , nos informa o quão longe estamos de subverter as hierarquias coloniais. Os discursos e práticas “anti-imigrantes” não-brancos, com aval dos donos do poder, reencenam as estigmatizações de imigrantes desejados e indesejados que durante séculos povoam o imaginário coletivo brasileiro, e acendem uma luz vermelha nesta sociedade construída sobre os pilares da barbárie. O homicídio do congolês demonstra que independentemente da “etiqueta” usada, seja africano-traficado, africano-escravizado, africano-imigrante, africano-refugiado, esses são ainda os corpos para os quais há licença para matar.
Em segundo lugar, mas na mesma linha, é fundamental contextualizar o ato de barbárie contra Kabagambe. Esta morte não pode ser isolada da necropolítica de Estado perpetrada neste território contra negros, negras e indígenas e pessoas dissidentes do sistema gênero-sexualidade. Portanto, estamos diante de mais um componente do genocídio negro e indígena que assegura que a “carne mais barata” deste “mercado” seja aquela cujo trabalho é explorável, e o corpo possa ser posteriormente descartado em praça pública, num cartão postal da cidade, como o de Moïse.
Em terceiro plano, no que se relaciona à representação imagética do Brasil na cena internacional, o evento em tela se traduz em novidade apenas para quem pouco conhece os subterfúgios da branquitude deste país que, organizada por meio de seus pactos narcísicos (BENTO, 1997), se utilizou de todos os expedientes de sua política externa para se mostrar como uma nação tolerante, do império da democracia racial, como a pátria acolhedora, a terra de imigrantes, de gente alegre e festiva, fruto de uma colonização lusitana, branca e branda. Esta auto-representação benevolente sempre foi agenciada para atrair vantagens para os gestores do capitalismo branco aqui, e para posicionar o país em lugar de destaque no palco internacional. Por um lado, os recursos discursivos e imagéticos foram mobilizados como instrumentos de política externa, enquanto política pública, para que o nosso Estado pudesse figurar no plano multilateral como uma nação promotora de consensos e, portanto, como uma agente da paz, uma mediadora de conflitos internacionais. Além disso, desde o debut do Brasil na arena internacional, sempre houve um interesse de mostrar-se como um país branco, dito civilizado, como um território povoado por descendentes de europeus assentados nos trópicos que souberam neutralizar conflitos raciais. Daí, se vê a aversão de ser confundida como uma nação negra, de ser associada à barbárie - ainda que, na verdade, tenham sido os colonizadores que formularam justificativas raciais para conquistar e usurpar riquezas -, e a repulsa durante séculos de promover alianças com o continente africano. Por outro lado, houve a utilização de investimentos pecuniários e ou benefícios jurídicos de diversas ordens para atrair imigrantes para servirem ao projeto de embraquecimento nacional.
Abdias Nascimento chama atenção para o fato de que “os olhos azuis do Itamaraty” (NASCIMENTO, 1980) não só não queriam enxergar o povo negro brasileiro, como buscava apresentar no exterior um retrato distorcido da realidade nacional, à medida que pretendiam informar que a população brasileira seria composta majoritariamente pelo componente branco e que o povo negro estaria desaparecendo. Nascimento (1980) aduz que uma publicação de 1966 do MRE intitulada Brazil - época em que ironicamente o seu Ministro era Juracy Magalhães, ex-governador do “estado africano da Bahia” - , e que tinha como objetivo promover o país no palco internacional, comunicava que a maioria da população brasileira era branca, sendo “diminuta a porcentagem de pessoas de sangue misto”. Este verdadeiro “linchamento estatístico” que, aliás, contrariava o próprio censo demográfico da época, era uma tentativa de maquiar a imagem do Brasil e “torná-la mais agradável aos olhos dos másters metropolitanos”. O “desprezo institucionalizado” pelos corpos negros aparece em outro capítulo do mesmo folheto quando informa que a taxa de mortalidade dos “negos e mulatos” era mais alta do que a dos brancos “como consequência dos baixos padrões de vida e higiene”. Mas a publicação esconde o racismo, a exploração e as várias formas de massacre físico e psicológico que as elites impunham aos afrodescendentes.
Assim, outra funcionalidade da política externa, historicamente, foi a de negar e de fazer perpetuar o genocídio do povo negro (NASCIMENTO, 1980) pois, afinal de contas, os privilégios da branquitude burguesa dependem do racismo. Aliás, sem ele não existe a própria branquitude. E a política migratória em sua perspectiva internacional, incluindo a concepção de políticas de ações afirmativas para atrair imigrantes europeus, foi um agente importante para a estruturação do racismo. (SILVA, 2020)
Por fim, e portanto, a derradeira dimensão que quero levantar sobre o homicídio de Moïse é que, quando o Brasil reconhece o status de refugiado a um congolês, ou regulariza a situação migratória de algum africano ou haitiano, etc., não se está fazendo favor algum, é uma obrigação porque as riquezas deste país fundado no trabalho escravo e na desumanização de racializados como não-brancos pertencem a todas as pessoas negras do mundo. Por isso é que tenho defendido em vários trabalhos (SILVA, 2020; BORBA DE SÁ; SILVA, 2021; SILVA; MÜLLER; BORBA, 2020) a racialização das Leis de Migração (13.445/2017) e de Refúgio (Li 9.474/1997) brasileiras, para incorporar a raça como categoria balizadora para a reparação da dívida histórica com africanas, africanos e afro-diaspóricos que construíram esta nação, e para proteção assertiva de todos os direitos humanos destes grupos. Raça, gênero e nacionalidade são categorias fundamentais para compreender as dinâmicas deste movimento populacional para o Brasil. Do mesmo modo, tenho argumentado em favor da concessão de nacionalidade brasileira de forma automática para todas as pessoas negras africanas e da diáspora, e a implementação de políticas de ações afirmativas para estes contingentes. Estas medidas são imperativas porque todos os dados e estudos (SILVA; MULLER; SILVEIRA, 2018; SILVA, MORAIS, 2021) comprovam que os imigrantes não-brancos são os mais atingidos pelo racismo sistêmico em todas as suas facetas. O relatório do OBMigra (2020) revela, por exemplo, que imigrantes negros e negras são os/as que recebem os menores salários. A precarização laboral, bem como as dificuldades de ingresso no mercado com carteira assinada com tratamento digno é realidade muito comum a qual o refugiado Moïse Kabagambe experimentou.
Infelizmente, esse é o retrato horrendo que o Brasil brancocentrado nunca quis ver e nem revelar. Mas, enquanto a máscara não cai, o mínimo que se espera é que as instituições executivas, judiciárias e legislativas assumam suas responsabilidades neste caso. No âmbito internacional, é fundamental que haja pressões de diversos setores, incluindo uma posição contundente do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, já que se trata da morte violenta de uma pessoa refugiada a qual o Brasil se comprometeu a proteger ao assinar a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967.
Notas e Referências
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil, IPUSP, SãoPaulo, mimeo, 1997. (trecho deste texto foi publicado no portal do CEERT e fez parte do conjunto de formações realizadas pelo sindicato. Disponível em: http://www.media.ceert.org.br/portal-3/pdf/publicacoes/branqueamento-e-branquitude-no-brasil.pdf
BORBA DE SÁ, Miguel; SILVA, Karine de Souza. Do Haitianismo à nova Lei de Migração: Direito, Raça e Política Migratória brasileira em perspectiva histórica. Revista Nuestra América, Vol. 9, Núm. 17 (2021). Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/5519/551968077004/html/
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