O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO NO BRASIL E EM PORTUGAL

04/12/2019

Coluna Espaço do Estudante  

Apesar de ser marcado por máculas incuráveis, o século XX representou também um enorme passo para o Direito. Após a Segunda Grande Guerra, assistiu-se um notório desenvolvimento doutrinário na seara constitucional, pelo qual restou consagrada a supremacia hierárquica da Constituição, bem como a ampliação dos poderes dos Tribunais Constitucionais no que tange ao controle de constitucionalidade. Além disso, acentuou-se, igualmente, a constitucionalização do Direito, com a irradiação de suas normas sobre outros sistemas jurídicos.

Particularmente ao Direito Civil pátrio, possível compreender tal fenômeno a partir da discussão a respeito das funcionalizações dos institutos clássicos, tais quais o contrato (art. 421, do CCB) e propriedade (parágrafo único do artigo 2.035, do CCB), aprimorados, sobretudo, com o movimento da metodologia civil-constitucional, crescente no Brasil, apesar de não lhe faltarem críticas. Além disso, a relação entre Constituição e Direito Civil encontra especial destaque nas relações entre direitos fundamentais e o Direito Privado, principalmente, após a paradigmática decisão do “Caso Lüth”, na Alemanha.

Essa, com base no desenvolvimento de teorias de Hans Carl Nipperdey e Günter Dürig, fez prevalecer a possibilidade de vinculação de particulares perante os direitos fundamentais, de forma indireta, a partir de uma ordem objetiva de valores e efeitos de irradiação no ordenamento privado, devendo o Judiciário verificar a viabilidade no caso concreto para tanto.

Neste contexto, indagava-se a respeito da possibilidade de dois particulares, em um negócio jurídico, estarem vinculados ao respeito dos direitos fundamentais, tendo em vista que se tratava de uma cristalina colisão horizontal. Afinal, a vinculação vertical com o Estado há muito era inquestionável.

Com efeito, sobrevindo a promulgação do Código Civil Português de 1966, Constituição da República Portuguesa de  1976, bem como a Constituição Federal pátria de 1988 e o vigente Código Civil de 2002, ganha força o movimento na civilística no tocante a relação entre direitos fundamentais e Direito Privado. Diante disso, urge ilustrar o eventual fundamento constitucional desta vinculação em ambos os ordenamentos.

 

Direitos Fundamentais e Direito Privado no Ordenamento Constitucional Brasileiro

A doutrina defensora da eficácia direta dos direitos fundamentais é majoritária hodiernamente no ordenamento brasileiro. Para tanto, são utilizados, especialmente, argumentos referentes a constitucionalização do Direito Civil, com o intuito de buscar uma permanente releitura deste perante a Constituição, de forma que o “ter” ceda para o “ser”, isto é, uma prevalência das relações existenciais sobre as patrimoniais (TEPEDINO; 2004; p. 170).

Ademais, elencam-se argumentos relativos a indubitável desigualdade social presente no país e, por conseguinte, assimetrias entre as partes contratantes (SARMENTO; 2004; p. 303-304), unidade jurídica, força normativa da constituição e o próprio caráter dos direitos fundamentais, os quais expressam valores aplicáveis sobre toda a ordem jurídica (SARLET; 2000; p. 62-63).

Contudo, a temática destas breves considerações insere-se na localização do fundamento constitucional que possibilitaria a argumentação nesse sentido, isto é, o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988:

Art. 5º [...]

§1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Segundo a doutrina majoritária, o mencionado dispositivo, por si só, é suficiente para demonstrar o lugar privilegiado que os direitos fundamentais assumem no ordenamento constitucional e, por conseguinte, fundamentar a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Implica-se, assim, uma vinculação do Poder Público, incluindo obviamente o legislador e o órgão jurisdicional, ao desenvolvimento dos direitos fundamentais no Direito Privado, com a sua consequente aplicação no caso concreto (Idem, Ibidem, p. 74).

Outrossim, sendo os direitos fundamentais a concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, restaria irrefragável a vinculação não somente do Estado, mas também dos particulares perante aqueles (Idem, Ibidem, p. 80). Citam-se, ainda, os direitos exclusivamente privados, como os direitos sociais.

Deveras tenha papel dominante na doutrina pátria, é crescente o movimento de defesa da teoria da eficácia indireta nas relações privadas. Além da preservação do estatuto epistemológico do Direito Civil, argumenta-se acerca da interpretação do próprio parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição Federal, isto é, consoante Virgílio Afonso da Silva trata-se de uma “confusão entre a eficácia dos direitos fundamentais, sua forma de produção de efeitos e seu âmbito de aplicação” (2005, p. 57). Em outras palavras, o dispositivo supra seria referente tão somente a aplicabilidade das normas.

 

Direitos Fundamentais e Direito Privado no Ordenamento Constitucional Português

A Constituição da República Portuguesa já foi objeto de várias revisões, contudo, sempre resguardou a importância da consagração dos direitos fundamentais em seu ordenamento, demonstrando uma verdadeira reação ao período precedente, semelhante ao que ocorreu no Brasil. O catálogo é mais diverso e espalhado pela Constituição, incluindo “direitos, liberdades e garantias” e direitos econômicos, sociais e culturais.

O fundamento constitucional da eficácia dos direitos funamentais nas relações privadas é alusivo aos “direitos, liberdades e garantias”, no artigo 18, nº 1, da Constituição:

Art. 18. Força jurídica

1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

Trata-se de um artigo muito mais cristalino que o parágrafo primeiro do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Ora, não bastasse a utilização da palavra “aplicáveis”, reforça-se, ainda, por intermédio de “vinculam””, referindo-se a entidades públicas e aquelas privadas.

Na interpretação de Canotilho e Vital Moreira, resta indubitável a vinculação dos particulares perante os direitos fundamentais. Não parece demonstrar outro sentido a mera interpretação literal, sendo que se aplicaria também “às relações entre particulares e, em princípio, nos mesmos termos em que se aplicam às relações entre particulares e Estado” (2007, p. 385). Assim, também os particulares restariam impedidos de pertubar os direitos fundamentais de seus semelhantes.

Os constitucionalistas de Coimbra ainda frisam:

Do que não há dúvida, porém, é que a Constituição portuguesa faz aplicar expressamente os direitos fundamentais às relações entre entidades privadas, sem qualquer restrição ou limitação, não sendo portanto legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que a doutrina estrangeira a admite quando nada na respectivas leis fundamentais a impõem. (Idem, Ibidem, p. 386).

Pois bem, em que pese este efeito aparente de que não haveria discussões, ou seja, que seria uníssono a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, as controvérsia em solo português também não é esgotada.

Ora, deveras a literalidade da norma assim indique, depreende-se a incompreensão acerca da forma que os direitos fundamentais entrariam nas relações privadas. Em outras palavras, qual seria a intensidade e quem seriam essas “entidades privadas”, isto é, estaria aqui incluso todos os particulares ou somente aqueles com grande poder econômico? Paulo Mota Pinto, por exemplo, ao interpretar o dispositivo supra conclui pela impossibilidade de admitir uma “generalizada eficácia horizontal imediata, com transformação global da Constituição no estatuto imediato das relações particulares” (2007, p. 151).

Diante disso, cumpre frisar que nem mesmo a literalidade da norma impede o antagonismo doutrinário.

 

Conclusão

Essas breves considerações buscaram trazer à baila o eventual fundamento constitucional da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares no ordenamento brasileiro e português. Evidente que, além disso, há diversos outros argumentos para centralizar uma tese no tocante a teoria direta ou indireta, mas aqui, objetivou-se, tão somente, ilustrar o dispositivo positivado que serviria como principal pretexto para tanto.

Na ordem constitucional pátria, não há um dispositivo que remeta de modo tão claro a adoção da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais entre particulares tal qual em Portugal. Não obstante, adota-se o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, nesse sentido. Contudo, compreende-se uma interpretação demasiadamente extensiva, visto que o artigo supra refere-se a aplicabilidade direta das normas, de forma que independa da uma regulamentação da lei infraconstitucional e não uma suposta vinculação entre particulares. Apesar disso, há diversos outros fundamentos na defesa da tese, como brevemente escrito no presente texto.

Em Portugal, a situação parece ser mais clara, afinal, o dispositivo constitucional utiliza expressamente a palavra “vinculação”, lhe remetendo para o Estado e entidades privadas. Todavia, ainda assim, abre-se margem para dúvidas, principalmente, no tocante ao modo de entrada dos direitos fundamentais neste espaço privado.

Portanto, conclui-se que, independente de previsão constitucional, o flagelo da relação entre direitos fundamentais e Direito Privado, ultrapassa fronteiras de interpretação, persistindo, especialmente, um problema metodológico de aplicação, com o intuito de preservação do estatuto epistemológico do Direito Civil.

 

Notas e Referências

CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol I. 4ª ed. Coimbra. Coimbra editora. 2007;

MOTA PINTO, Paulo. A influência dos direitos fundamentais sobre o Direito Privado português. In MONTEIRO, António Pinto, NEUNER, Jörg, SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Uma perspectiva de direito comparado. Coimbra. Almedina. 2007, p. 145-163;

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro. Forense. 2019;

SARLET,  Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em torno da Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. In Revista do Direito do Consumidor. v. 26. 2000, p. 54-104;

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2004;

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo. Malheiros. 2005;

TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. In Revista Da Faculdade de Direito de Campos. Ano IV. Nº 4. 2003; p. 167-175.

 

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