O FIM DO INSTITUTO DA SAÍDA TEMPORÁRIA PELO PL 2253/2022: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS EVIDÊNCIAS E DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

28/02/2024

A saída temporária se constitui em um direito do preso que cumpra pena no regime semiaberto de sair do estabelecimento prisional sem vigilância direta, para fins de visita familiar, freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução e/ou participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Tal possibilidade acontece para aqueles custodiados que possuam bom comportamento e se dá 5 (cinco) vezes ao ano pelo prazo de 7 dias, findo o qual o preso deve retornar ao estabelecimento prisional.

Outrossim, encontra previsão legal nos arts. 122 a 125, da Lei 7.210/84, Lei de Execução Penal (LEP). A partir das disposições da lei, identificam-se requisitos subjetivos e objetivos para obtenção do direito, respectivo objeto, procedimento, prazo, condições a serem observadas pelos presos, ocorrências que levam a revogação do direito e formas de recuperá-lo.

Para além de uma análise positivista da LEP, tem-se que o instituto da saída temporária é um importante instrumento no desenvolvimento da autodisciplina da pessoa presa – sendo fundamental para quem irá experimentar o re-convívio com o meio social – e também de gestão prisional na medida em que a existência desse instituto incentiva o cumprimento das regras da prisão, a fim de em algum momento o encarcerado poder fruir desse direito.

A subseção na LEP que trata da saída temporária já foi objeto de alteração pelas leis 12.258/2010 e 13.964/2019, as quais, incorporaram restrições a assunção do direito como: possibilidade de aplicação de monitoração eletrônica (doravante abreviadamente, ME) ; concessão com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra; proibição de concessão para condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte, entre outras.

Mais recentemente, o parlamento voltou a debater acerca da inserção de novas alterações no instituto, aproveitando o PL n. 583/2011, oriundo da Câmara dos Deputados, e transformado no PL 2253, na casa revisora, o Senado Federal.

Nesse contexto, vale assinalar, que a casa autora, a Câmara Federal, tinha a intenção de revogar a legislação vigente por completo, contudo no dia 06 de fevereiro de 2024, a Comissão de Segurança Pública do Senado votou no que tange ao instituto em análise, por revogar os incisos I e III, do art. 122, da LEP e suprimir a revogação da Câmara do inciso II, art.122, art. 123, 124 e 125, da LEP, além de aprovar nova redação ao art. 122, alterando o respectivo § 2⁰ e incluindo o § 3⁰ [1], sendo mantido nesses termos pelo plenário daquela casa alta em votação realizada em 20.02.2024, assim por modificar o mérito do PL este seguirá para a Câmara dos Deputados a fim de ser realizada nova votação e adiante para a Presidência da República que poderá vetar ou sancionar.

Com isso, embora não se possa dizer tecnicamente que houve a revogação do instituto da legislação pátria, na prática, diante da ultra restrição estabelecida e da extinção daquilo que era a essência daquele direito, pode se dizer sim, com absoluta certeza, que houve o fim da saída temporária.

Nessa perspectiva, a manutenção na lei de uma parte ínfima do que se circunscreve o instituto, pode se ter apenas como uma estratégia legislativa para possivelmente querer suavizar críticas.

Assim, referido estratagema não tem o condão sobremaneira de infirmar o estudo pelo caminho das evidências e de constitucionalidade que se pretende realizar nesse artigo pela supressão do núcleo do direito que o PL busca efetivar.

Nessa medida, a partir da compreensão da necessidade de uma política criminal e penitenciária de evidências, bem como da necessidade de que leis interventivas em direitos devem observar o princípio da proporcionalidade, visa-se demonstrar não só o equivoco, mas a inconstitucionalidade que o fim da saída temporária determinada pelo PL 2253/2022, representa.

Suscitar a consecução de uma política criminal e penitenciária de evidências é sugerir a elaboração racional da legislação penal e penitenciária, calcada, portanto, em estudos empíricos, a fim de nos permitir confrontar êxitos e fracassos.

O conjunto de leis criminais e penitenciárias não pode se afastar da análise técnica como é exigido acontecer em outros campos da vida.

Por outro lado, a atuação inconsequente na seara criminal e penitenciária, já deu sinais de colapso afetando claramente a qualidade de vida do brasileiro de todos os níveis de renda, mas precipuamente como sempre, daqueles mais despossuídos economicamente.

As diversas rebeliões em presídios, o tamanho da população carcerária brasileira, o número de homicídios registrados a cada ano, entre outros dados, demonstram o que aqui está se declinando.

Malgrado se reconheça não haver na sociedade movimento que seja aleatório, logo, sempre inserido no âmbito de um contexto e dentro de uma racionalidade dominante [2], desse modo, o chamada “casuísmo” no plano criminal-penitenciário deve ser visto com reserva e mesmo peremptoriamente afastado.

No que tange a saída temporária, o PL 2253/2022, ganhou tração a partir da lamentável morte de membro da Polícia Militar em janeiro desse ano por pessoa condenada que estava em fruição de saída temporária [3].

Embora, trate-se de situação absolutamente contingente, quando acontecem são generalizadas e o debate volta a tona.

Diz-se isto, pois consoante os dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais – SENAPPEN do 1⁰ semestre de 2023 [4], apenas 6,3% das pessoas presas que fruíram do direito da saída temporária não retornaram, sendo que o próprio relatório sequer tem os números daqueles que posteriormente retornam fora do prazo sem delito, praticam delitos no lapso temporal da saída temporária, são recapturados posteriormente sem delito ou com delito.

A luz da prática, a pequena minoria pratica crimes no período da saída temporária ou são recapturados com delitos fora do prazo daquela.

Nesse diapasão, claramente o número de pessoas que não retornam já é ínfimo, soma-se ainda haver ausência de dados daqueles que posteriormente retornam fora do prazo sem delito, praticam delitos no lapso temporal da saída temporária, são recapturados posteriormente sem delito ou com delito, desse modo, tal assertiva contraria o texto do relatório do Senador Flávio Bolsonaro que justifica a revogação do instituto, quando assinala que:

A revogação do benefício da saída temporária, da mesma forma, é medida necessária e que certamente contribuirá para reduzir a criminalidade. São recorrentes os casos de presos detidos por cometerem infrações penais durante as saídas temporárias.

É necessário compreender que o nosso sistema carcerário infelizmente encontra-se superlotado e, em muitos Estados, com instalações precárias, o que impede a devida ressocialização dos presos. Assim, ao se permitir que presos ainda não reintegrados ao convívio social se beneficiem da saída temporária, o poder público coloca toda a população em risco.

Tal afirmação, também pode ser confrontada a luz da análise do recorte de gênero, de unidades da federação e regiões do Brasil, pois o supramencionado relatório da SENAPPEN [5] demonstra que há unidades da federação nas quais existe 0 (zero) de evasão masculina e feminina e outras em que há 0 (zero) de evasão feminina, mesmo também regiões em que os índices são mínimos, logo, sem evasão, as praticas delitivas no período de saída temporária não acontecem, pois sequer houve não retorno.

Como exemplo em relação ao recorte gênero tem-se que as mulheres no Pará onde saíram 168, e houve 0 (zero) de não retorno; Pernambuco onde saíram 85, e houve 0 (zero) de não retorno; Maranhão onde saíram 128, e houve 1 (um) não retorno, em verdade no que toca a esse recorte apenas SP e RS, tiverem números que pudesse ser feita alguma avaliação em relação ao que pode ser aprimorado para se reduzir o não retorno, mas absolutamente em hipótese nenhuma no que tange ao gênero feminino pode se cogitar que esse direito esteja gerando algum problema para a sociedade ou para o sistema prisional, muito ao contrário retirá-lo ou suprimi-lo, pode gerar distorções ou impactos que sequer podem ser calculados.

Já no que tange a unidades da federação as únicas que se poderia cogitar fazer qualquer incidência a fim de verificar alguma problemática seria SP e MG, pelo número de não retornos, pois todas as outras unidades possuem índices de normalidade com números tão reduzidos de não retorno que torna impossível parar de pé os argumentos de Sua Excelência o eminente Senador da República, de forma que tal como mencionado em relação ao gênero feminino seria uma punição para as pessoas presas nas mais diversas unidades da federação do país e para os respectivos sistemas prisionais haver restrição ou supressão do aludido direito, cujas consequências são igualmente inimagináveis, seja para as pessoas que cumprem pena, seja para a gestão prisional.

Outrossim, mister salientar que o magistrado da execução penal em praticamente 100% das saídas temporárias aplica a monitoração eletrônica, mecanismo inserido por meio da Lei nº 12.258/2010.

Anteriormente à edição da aludida lei, o apenado que tinha o direito à saída temporária, ou à prisão domiciliar não tinha o ônus da monitoração eletrônica, porém, agora, ao menos do ponto de vista jurídico-formal, o possui e como se mencionou é aplicado como regra.

Nessa medida, observa-se que, no plano da execução penal, o diploma legislativo especial ensejou unicamente agravamento na punição perpetrada pelo Estado, sem que fosse conferida nenhuma promoção no âmbito do direito à liberdade e agora mesmo com o reforço do acompanhamento tecnológico, ainda assim, quer-se revogar o instituto.

Outrossim, vale dizer, já se expressava que a aludida alteração não se balizou em nenhum estudo que demonstrasse qualquer aprimoramento com a inserção da medida [6] e neste momento, indo adiante, sem igualmente nenhuma pesquisa e contra os números quer-se por fim ao próprio direito.

Nessa senda, fica latente que o incremento legislativo da monitoração eletrônica e nessa quadra a tentativa de supressão do direito se deu tão somente em razão de populismo penal alimentado pela grande mídia que desconhecendo/desconsiderando os dados acerca da realização do instituto da saída temporária a partir de questões pontuais, como não retornos (evasões) ou praticas de delitos por alguns em realização do instituto, acaba por potencializar respectivos fatos colocando a população contra a existência desse direito no âmbito da execução da pena [7].

Não obstante, estudos empíricos, como o estruturado por Daniel Nicory [8], demonstram que deve manter-se na legislação o direito a saída temporária, porquanto relevante instrumento para o sistema progressivo de pena, assim como, faz ser visto a desnecessidade de o direito ser efetivado com a adição da ME (o objeto da pesquisa desenvolvida pelo autor ora mencionado não contempla a análise da ME, porém as informações nela contida são extremamente úteis para o presente estudo, inclusive para concluir ser desnecessária a adição da ME para o cumprimento da medida. A aludida pesquisa foi utilizada como principal referencial neste artigo).

Segundo o mencionado autor, o número de não retornos (evasões) de presos quando da fruição do direito em nível nacional na saída temporária do natal de 2011, foi de 5,3%, ou seja, de 2.300 evadidos em um total de 43.344 internos que obtiveram a autorização, já na casa penal analisada localizada na Bahia, Colônia Penal de Simões Filho (CPSF), considerando o período de 2010-2011, na qual foi concedida 993 saídas temporárias, tendo havido 83 evasões, o percentual de não retornos foi de 8,35% do total das concessões, assim pela proximidade dos números da média nacional e o fato da casa penal em análise possuir dificuldades como: ser distante de um município da Região Metropolitana de Salvador (RMS); está localizada em território que para chegar as opções de transporte coletivo são caras; e também ter em sua população carcerária custodiados vindos de diversas cidades do interior da Bahia, são ingredientes que tornam o retorno mais difícil, por isso para o objetivo da pesquisa a casa penal escolhida pelo pesquisador faz dela um universo de análise representativo de um universo mais amplo, o universo prisional brasileiro. [9]

Então, em razão dos números consignados acima, Daniel Nicory indaga: “o instituto da saída temporária, é, na prática, uma iniciativa de reintegração social bem sucedida? ” [10]

Buscando responder o questionamento realizado, expõe que considerando o retorno de 91,65% dos internos em saída temporária na CPSF somente considerará insatisfatório o instituto quem assimile que seja suficiente para descredenciar o direito de saída temporária toda e qualquer evasão. Porém, afirma o autor que tal compreensão não é plausível na medida em que desconhece a essência humana dirigida a liberdade e que, portanto, mostra-se irremediavelmente radical. [11]

Mas, compreendendo pertinente formular uma resposta a indagação inicial, contudo de maneira racional, entendeu por bem encontrar um parâmetro de comparação.

Assim, optou por estabelecer as taxas de comparecimento e abstenção nas eleições como parâmetro para o sucesso ou insucesso do instituto da saída temporária. O paradigma encontrado, anota o autor não ter sido arbitrário, sendo devido em função da obrigatoriedade do voto, além do que possui como ônus tão somente o eleitor se dirigir no domingo de votação a um local que tenha uma urna e votar, perdendo com isso alguns segundos, porém se descumprir a obrigação terá como sanção a restrição provisória de diversos direitos perante o Estado até que haja regularização, seja por meio da apresentação de uma justificativa ou pagamento de uma multa. Malgrado, aprofundada e detalhada a mencionada opção, peculiariadades, aproximações de cada instituto e ainda os dados de comparecimento e abstenção da eleição presidencial, em nível nacional e na Bahia, de 2010.

Após o manejo dos dados de forma comparativa entre as evasões na saída temporária e as abstenções nas eleições Daniel Nicory, conclui:

(...) o percentual de comparecimento voluntário do preso ao final do prazo determinado (91,65%) é plenamente satisfatório e permite a conclusão de que, pelo menos sob esse aspecto, a saída temporária é, sim, uma iniciativa bem sucedida de integração social e de exercício da liberdade e da autodisciplina. [12]

Desse modo, o aludido autor vai além da evidência lógica e, para demonstrar a efetividade do instituto da saída temporária traz a perspectiva comparativa com instituto que envolve características similares, tal como a abstenção nas eleições, portanto, deixa claro a importância da manutenção do instituto e, no que interessa também para este trabalho, aponta para a não adequação, desnecessidade e não observância da proporcionalidade em sentido estrito a aplicação de ME na saída temporária conforme será mais detalhadamente explicitado.

Outrossim, evoluindo na análise, o autor passou a identificar o perfil dos poucos internos que evadiram-se, tendo feito a partir das respectivas variáveis comuns presentes na ocorrência, a fim de que se pudesse trazer à tona fatores de risco para o descumprimento do dever de retorno.

Nesse contexto, encontrou dois principais fatores de risco que entendeu poderem ser generalizados ao sistema prisional brasileiro, ser o evadido marinheiro de primeira viagem e ter experimentado morosidade judicial em seu processo (não desenvolveremos este fator tendo em vista fugir aos propósitos do trabalho). [13]

Sobre a hipótese que o autor nomina “marinheiro de primeira viagem”, demonstra que esta foi confirmada na medida em que analisando as ocorrências pesquisadas, de um universo de 83 evasões, na primeira saída houveram 37 evasões, equivalendo ao percentual de 44,57%.

Na sequência, aponta também que aquele grupo que teve 1 saída anterior, possuiu o número de 15 evadidos, correspondendo a 18,07%, já o que teve 2 saídas anteriores, possuiu o número de 12 evadidos, correspondendo a 14,45%, aquele que teve 3 a 5 saídas anteriores, possuiu o número de 7 evadidos, correspondendo a 8,43%, aquele que teve 6 a 10 saídas anteriores, possuiu o número de 7 evadidos, correspondendo a 8,43% e aquele que teve mais de 10 saídas anteriores, possuiu o número de 5 evadidos, correspondendo a 6,02%.

Como aponta o autor é um dado de relevo 22,89% dos evadidos terem voltado de mais de 2 saídas anteriores.

Para o autor esses números demonstram que parece está confirmada a hipótese de que a aposta na confiança da autodisciplina do interno, essencial ao sistema progressivo é bem sucedida, considerando que 91,65% dos que saem retornam, portanto, a maioria absoluta.

Entende-se, mister acrescer a análise do autor que sendo constatado que dentre aqueles que evadem, a concentração é maior na primeira e segunda saída, o que de alguma maneira é natural, pois como explicita Daniel Nicory ainda não arraigaram em si a vivência do retorno, poderia se realizar trabalho com equipe multidisciplinar com este apenado que fruirá do direito nas primeiras oportunidades e respectivas famílias que deseje participar do programa, a fim de fortalecer naquele interno o senso de autodisciplina e na família para que contribua no incentivo de retorno para a continuidade do cumprimento da pena.

Todavia, vale registrar, que mesmo sem o implemento da ideia acima mencionada, tem-se como desnecessária a aplicação de ME para o interno que esteja no gozo do direito de saída temporária, inclusive, para os fins precípuos que se busca com o instituto da saída temporária relativo a construção da autodisciplina, o equipamento de ME deve ser considerado medida inidônea, pois nada favorece.

Como se verifica, a ME aplicada no âmbito da saída temporária mostra-se inadequada (quanto mais, então, a respectiva revogação do direito) [14], porquanto os números que já demonstravam ser o instituto da saída temporária uma medida exitosa (registre-se, mesmo antes da implantação da ME, a qual no Estado da Bahia se deu apenas a partir de 2017), automaticamente demonstram a mencionada inidoneidade do meio, haja vista que em nada soma para atingir os fins que se pretende, bem ao contrário, possui potencial para desfavorecer o objetivo que o instituto almeja.

Por outro lado, pelos mesmos fundamentos, entende-se inadequado a respectiva supressão do direito de saída temporária em razão de o projeto de lei não realizar e nem ao menos fomentar os fins a que se propõe como sobejamente se demonstrou.

Do mesmo modo, a ME na saída temporária verifica-se ser desnecessária, pois a aplicação da saída temporária sem ME já se mostrava a contento, sendo que acontecia sem o ônus que a ME representa para os direitos que restringe, além do custo financeiro que enseja [15]. Outrossim, a partir dos resultados da pesquisa de Daniel Nicory, pode-se ainda implantar programas multidisciplinares de acompanhamento dos internos que estão fruindo de saída temporária e nomeadamente aqueles que foram identificados com fator de risco para reduzir mais ainda a taxa de não retorno.

Em igual sentido, fica evidenciado a desnecessidade da extinção do direito de saída temporária, pois referido direito potencializa a própria segurança pública, quando prepara o custodiado para o re-convívio e funciona como instrumento de gestão prisional, logo, a sua supressão no anverso da moeda implicará em onerosidade ao apenado sem atingir o fim que almeja como já foi amplamente verificado.

Ademais, em 03 de outubro de 2023, o julgamento da ADPF 347 foi retomado a partir do voto-vista do Ministro-Presidente Luís Roberto Barroso, sendo finalizado em 04 de outubro, após o voto do Ministro Gilmar Mendes, determinando em linhas gerais, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional – ECI do sistema carcerário brasileiro, e que após a publicação do acórdão que está em vias de acontecer, seja elaborado os planos de atuação pela União, Estados e Distrito Federal que será acompanhado pelo próprio STF visando solucionar o ECI do sistema prisional pátrio.

Nesse cenário, embora, se observe que nenhuma das medidas fixadas pela Suprema Corte tenha sido dirigida ao Poder Legislativo, compreende-se que se não houver interação do legislativo para solução desse problema estrutural que é o alusivo ao sistema prisional, dificilmente haverá êxito.

Tal percepção se extrai do próprio julgamento da Corte Constitucional Colombiana sentencia T-153/98 (disponível em : <T-153-98 Corte Constitucional de Colombia> acessada em: 20.10.2023), que inspirou a absorção da Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional pelo STF, naquele processo o Diretor da casa penal que fora ouvido traz um aspecto importante e interessante, que igualmente acontece no Brasil, relativo ao fato que para aquele agente a responsabilidade pela superpopulação carcerária no interior do Presídio Nacional de Bellavista não era da Instituição que custodia o preso “INPEC”, “sino que es consecuencia de que la política criminal del país sea en realidad una política penitenciaria.”.

Nesse sentido, o magistrado relator destacou o assinalado pelo Diretor “A manera de ilustración, señala que las Leyes 40 de 1993, 228 de 1995, 292 de 1996 y 360 de 1997 buscan todas apelar a la reclusión, al incremento de penas y a la restricción de los beneficios de excarcelación como remedio para hacer frente a los desajustes sociales.”

O expressado pela autoridade prisional colombiana é a total expressão da realidade, mutatis mutandis é em igual medida o que acontece no Brasil, basta verificar a Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos, Lei 8.930/94, Lei 9.677/98, Lei 11.464/2007, Lei 12.015/2009, Lei 12.978/2014, Lei 13.964, tais leis alteraram a lei dos crimes hediondos acrescentando novos tipos penais ou agravaram o respectivo cumprimento de pena, além da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas e outras que poderiam ser destacadas que alteraram ao Código Penal e mesmo disposições de leis penais esparsas.

Por outro lado, o Brasil que no ano de 1990, tinha uma população carcerária de 90.000 pessoas, no primeiro semestre do ano de 2023, viu esse número crescer para 834.874 pessoas em seu sistema prisional (SENNAPEN, 2023), sendo que tal quantitativo é representativo da população estática (fotografia do sistema prisional em junho de 2023, quando o levantamento foi fechado), se for considerada a chamada população dinâmica este número fica ainda maior (número representativo da população que entra e sai do cárcere, a qual normalmente atinge um número de duas a três vezes mais de pessoas que no mesmo período passam pelo sistema prisional).

Oportuno, também registrar que nesse período de tempo (1990-2023) a população brasileira mesmo com o crescimento exponencial de encarcerados não pode perceber uma elevação da sua sensação de segurança, muito ao contrário as pessoas seja no campo ou nas cidades temem a criminalidade.

Com isso, deveria se pensar em medidas que não foram declinadas na inicial da ADPF 347, mas que entende-se são extremamente salutares, relativas a medidas não de caráter vinculante, todavia de cunho propositivo para que o legislativo se abstenha durante o saneamento do ECI de editar leis que tornem a legislação criminal e prisional mais rigorosa como a que consubstancia o PL 2253/2022.

Assim, diante do que fora declinado, tem-se como inconstitucional a revogação do direito de saída temporária, por ofensa a observância de uma política criminal e penitenciária de evidências – o PL em questão desconsidera dados oficiais produzidos por órgãos governamentais, bem como pesquisas acadêmicas, além também de considerando o recorte de gênero atingir as mulheres que não se tem sequer notícia de estarem envolvidas em nenhum incidente, e igualmente unidades da federação que estão em plena normalidade sem nenhuma intercorrência, aduzindo, que em verdade a se considerar os números a saída temporária é uma política pública absolutamente exitosa em todo o país não podendo fatos e casos contingentes infirmarem o todo, aqui deve prevalecer a compreensão como se faz para a preservação do próprio corpo, ou seja, se uma parte do corpo como o dedo está ferida, deve-se cuidar para que fique boa e não amputá-la para “resolver” a situação. Aqueles que mais evadem, sabe-se, são os chamados marinheiros de primeira viagem, desse modo, fazer um trabalho multidisciplinar com estes e suas famílias é a medida mais correta e não acabar com o instituto – por conseguinte, essa ordem de ideias atinge ao princípio da proporcionalidade [16] já que a medida interventiva no direito das pessoas que cumprem pena, por todo os fundamentos supramencionados se mostrou inadequada e desnecessária. Tal perspectiva sobreleva-se considerando o quadro de reconhecido ECI do sistema carcerário brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, a Câmara dos Deputados deve ao receber o PL 2253/2022, debatê-lo de forma mais ampla, a fim de ao final rejeitá-lo, ou em sendo aprovado naquela casa legislativa, mister seja vetado pela Presidência da República.  

 

Notas e referências

[1] O texto aprovado ficou “Art. 122. (...) § 2⁰ Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa.; § 3⁰ Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.”.

[2] Sob o prisma das racionalidades, Rubens Casara em “Contra a miséria neoliberal”, nos traz que a racionalidade dominante atual no país é a neoliberal, a qual convive com outra racionalidade, a escravocrata, cujas bases permitem hierarquizar e objetificar pessoas (descartar seres humanos). Essa compreensão, certamente, ajuda-nos a entender o atual cenário da normatividade penal e penitenciária, para além do “casuísmo”.

[3] Notícia constante no portal do Senado Federal. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/07/fim-de-saida-temporaria-de-presos-pode-ser-votado-apos-carnaval#:~:text=Ser%C3%A1%20votado%20com%20urg%C3%AAncia%20pelo,pautada%20%22em%20momento%20oportuno%22.> Acessado em: 18.02.2024.

[4] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS – SENAPPEN/MJSP. Relatório de Informações Penais – RELIPEN. Brasília, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf> Acessado em: 18.02.2024.

[5] Ibid.

[6] SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Tornozeleira Eletrônica: análise comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos parâmetros e limites constitucionais da utilização da monitoração eletrônica. Curitiba: Juruá Editorial, 2021, p. 82-90.

[7] Matéria jornalística evidenciando o não retorno de presos que usufruíram do direito da saída temporária, mesmo no conteúdo do texto estando expresso que o percentual foi de menos de 5%. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2019/01/16/apos-saidinha-de-fim-de-ano-125-presos-nao-voltaram-para-as-cadeias-na-regiao-de-sorocaba.ghtml>. Acessado em: 14.11.2019. Matéria jornalística a partir de casos pontuais colocou o instituto da saída temporária em questionamento. Disponível em < http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/06/saidas-temporarias-de-presos-trazem-medo-e-inseguranca-no-interior-de-sp.html>. Acessado em: 14.11.2019.

[8] PRADO, Daniel Nicory do. Evasões durante as saídas temporárias: estudo empírico do desempenho do instituto e do perfil do evadido. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 21, vol., 104, set.-out./2013, p. 307-346.

[9] Ibid, p. 312.

[10] Ibid, 312-313.

[11] Ibid, p. 313.

[12] Ibid, p. 317.

[13] Ibid, p. 341.

[14] Acerca dos contornos do teste da adequação conferir SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Tornozeleira Eletrônica: análise comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos parâmetros e limites constitucionais da utilização da monitoração eletrônica. Curitiba: Juruá Editorial, 2021, p. 47-52.

[15] Sobre o conceito do teste da necessidade conferir SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Tornozeleira Eletrônica: análise comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos parâmetros e limites constitucionais da utilização da monitoração eletrônica. Curitiba: Juruá Editorial, 2021, p. 52-53.

[16] Tem-se neste texto a compreensão do princípio da proporcionalidade na sua versão contemporânea, relativa aos três testes, associada a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA), sendo marcos históricos os casos “Farmácia e Luth”, ambos de 1958, e consistindo o triplo teste na aplicação pelo tribunal, conforme aponta Robert Alexy, nas “três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), cf. Ibid, p. 46. Nesse sentido, mister destacar que embora seja adotada a expressão “princípio da proporcionalidade” a denominação “princípio” não é feita sob a concepção, por exemplo, a que alude Robert Alexy (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 2ª. tir. São Paulo: Malheiros, 2012. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã, Theorie der Grundrechte, publicada pela Suhrkamp Verlag (2006), p. 90), sendo em verdade concebido cada teste como uma regra (Ibid, p. 91 e 117, nota de rodapé 84), logo, não atendendo a medida que intervém em direito fundamental ao respectivo teste será considerada inconstitucional, é dizer, a medida interventiva tem que ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.  

 

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